18.9.18

banquete com torta de climão

O amor é tema que não se esgota. Sabe-se que alguns afirmam senti-lo e por isso são supostamente indicados a contribuir via testemunho. Trata-se de caso antigo. No clássico Banquete de Platão, cada um dos participantes era convocado a compartilhar uma contribuição a respeito do amor. Um mais embriagado que o outro e ainda assim tais relatos são tomados enquanto ditos de verdade até hoje. No início da psicanálise o amor não só se fez presente como foi a mola inaugural da coisa: o amor de Ana O. por Breuer, dele por ela e das histéricas que amaram o saber suposto em Freud, condição imprescindível para que houvesse transferência e consequentemente análise. Só se fala desse assunto neste blog. A repetição é proposital para testar o paladar do leitor, afinal não se trata de um jantar, mas sim de um banquete. Logo, o amor se apresenta em maior variedade de sabores e significações. Com a direção de Daniela Thomas, O Banquete (2018) não é um convite à reflexão apenas, mas sim a oportunidade inescapável de servir-se do amor, de tomar doses deste xarope, de embriagar-se dele, portanto, e ainda assim manter-se de pé até o final da sessão. 


Em termos mais diretos e realísticos, o filme é a ocasião certeira para romper a ligação do amor com o romantismo, este que implica na doação de si ao outro para unificação de dois seres. A abordagem retrata-o com um amargor consequente de relações reais. No roteiro, tem-se uma anfitriã que promove um banquete em comemoração aos 10 anos de casados de amigos. A mesa foi luxuosamente ornamentada e cada um dos oito lugares seria ocupado por um convidado que contribuiria com algum discurso sobre o amor. Certo é que o tema de um jantar foi algumas vezes trabalhado no cinema. Ainda assim, tem-se aqui uma singular atmosfera de tensão e expectativa. Desde a chegada do proprietário alcoolizado seguida pela amante do homenageado é notória a percepção de que vai dar merda. Esta não é uma expressão adequada a um veículo de comunicação como este, no entanto, poderia ser substituída por qual? Vale a reflexão de que “dar merda” nada mais é que a certeza da emergência daquilo que o corpo repugna. É o que obrigatoriamente tem que ser expelido e cuja forma não é agradável de modo que assim deve ficar fora da visão. Pois bem, é justamente este o conteúdo do banquete, o amor. Ora, um material que atinge a consciência enquanto excrescência certamente é da ordem do recalcado. No roteiro, isso não poderia ser mais verdadeiro, já que se trata de uma ocasião especial para um acerto de contas, para se revisitar o passado bem como as diferentes formas de amar até então vividas. O filme sustenta-se em uma abordagem que vai contra a cultura que demarca e valoriza o amor enquanto afeto ligado à ternura, sensibilidade e compaixão. A celebração dos anos de casados, no estilo em que foi feita, é um mais além do “final feliz”, de maneira a afirmar que este não passa de uma ilusão. Em síntese, este trabalho de Daniela Thomas é uma desconstrução de tudo o que a sociedade se apoiou no que diz respeito à sustentabilidade de um casamento. Os discursos sobre o amor denunciam não apenas a fragilidade das alianças matrimoniais como também a sordidez e o escapismo humano frente ao dever de manter-se unido e fiel ao ser amado. 

Assim como o filme desconstrói o romantismo envolto na noção de amor, seu roteiro vem ao encontro da noção de completude tão comentada em psicanálise. Desde sempre, sustenta-se que a busca do sujeito por se tornar completo no encontro com o outro amado e eleito é uma ilusão. Contudo, é nesta que se baseiam os encontros amorosos, é uma perspectiva para resolução do problema da falta. Sabe-se que é da singularidade da escuta analítica o fato de que o amor enquanto encontro é tomado como solução para posterior descoberta de sua problemática, a permanência da falta. Ora, é um encontro de faltas não-exitoso a matéria-prima do que se ouve em análise. Tem-se o sujeito em confronto com a queda de uma perspectiva e com a necessidade de lidar com um vazio inesperado. O testemunho sobre o amor implica na testificação de que algo não saiu como planejado, em palavras mais belas, a emergência da falta supostamente já resolvida foi sentida como dissabor. Cada analisante é, portanto um contribuinte à noção do amor. Em seu percurso, ele pode transpor uma condição inicial de desilusão na qual há a procura pelo erro, pelo que faltou, para assim, deparar-se com a sordidez envolvida nestes encontros. Pode-se sentir os discursos do filme como puramente sórdidos em sua composição, já que eles testemunham o retorno do recalcado, a derrota da censura e um acerto de contas entre seres que não mais se apegavam ao romantismo das relações amorosas. São personagens para as quais o encontro de faltas, um dia sonhado, não deu certo... O que não significa que elas deixaram de amar. O fato de reunirem-se e se colocarem a dialogar sobre o amor é a maior evidência de que eram capazes de amar, em uma dimensão tanto física quanto emocional. O que lhes escapava era a já derrotada ilusão de um amor incorruptível, sagrado e permanente. A linguagem do amor expressa no filme não apenas cede lugar à zombaria das ilusões como se mistura a esta. Assim, o mal-estar decorrente de uma abordagem des-romantizada do amor é resultado previsto. Prevalece, contudo, um sentimento apaixonado em meio ao resto, aos traços, as sobras, aos seres despojados, aos cacos. É este que viabiliza ainda alguma forma de ligação. Certo é que não há faltas bem resolvidas em sua plenitude, de forma que filmes assim se configuram libertadores.

Abraços,

Renato Oliveira

19.8.18

recordar, repetir e apagar

O sujeito sofre de reminiscências. A assertiva não é nova, pelo contrário, é o que há de mais clássico e singular do discurso psicanalítico. Trata-se, contudo, de coisa moderna ao mesmo tempo. Se a memória de um falante fosse deletada, seu sofrimento desapareceria para a construção de uma nova história de vida, mais ou menos sujeita aos mesmos percalços e ciladas de antes. Este procedimento pode ser o desejo de alguns, de maneira que ao analista é demandado que lhe extraia fragmentos de passado cuja função não parece nada além de um fazer-sofrer. Certo é que uma mente sem lembranças é objeto de desejo tão somente porque seu alcance é da ordem do impossível. Na realidade, o que se faz em análise é recordar, a fim de que as inevitáveis repetições na vida cotidiana possam ser efeitos de uma elaboração de situações vividas. Se o analista não oferece nada muito além de uma reaproximação da dor, há, por outro lado, quem ofertou um mecanismo para que o sofrimento não mais existisse. Este cara enriqueceu e seus clientes foram felizes para sempre. Não foi este o fim da história. As reminiscências de dor são importantes em sua singularidade e, por alguma razão, ao recordá-las se produz mais dor bem como um apego e anseio por superá-las. É por conta desta contradição no sujeito que o tema se torna instigante, de maneira a dedicá-lo aqui alguma abordagem. Créditos ao brilhante roteiro de Michel Gondry que atualizou o “recordar, repetir e elaborar” de Freud em uma roupagem lúdica. Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (2004) é título analítico por si só. Ainda que não fosse filme, apenas a frase seria material de trabalho. A mente humana só alcança sua resplandecência quando a lembrança associada à dor deixa de existir? É o que ofertam certos tipos de terapias contemporâneas. Neste filme, bem como em uma análise, recordar o que faz sofrer é tarefa crucial.


Com efeito, o que faz sofrer é o amor. Afeto investido e mesclado a ilusões tão essenciais e que em algum momento pode ser necessário deixar de investi-lo. A originalidade do roteiro articula a propensão humana para amar e a dor de uma separação com a ficção científica. Ora, um médico oferta um serviço no qual todas as memórias relativas a um ser outrora amado seriam apagadas. Aqueles que se submetessem ao procedimento obtinham a chance de um recomeço com a garantia de que “ex bom é ex-morto”. Não mais se sofreria de reminiscências, já que o antigo amado passaria a ser um desconhecido. No roteiro, Joel (Jim Carrey) e Clementine (Kate Winslet) submeteram-se ao procedimento e tiveram suas vidas renovadas. Não é isso. Ainda que o tema deste ensaio seja a memória e não o amor, vale destacar que no filme algo de considerável valor e intensidade se produziu no relacionamento do casal. A isto pode ser dado o nome de “amor” ou qualquer outro, desde que não se desconsidere o fato deles não saírem ilesos dessa relação, mas sim de tê-la vivida com profundidade e entrega emocional. Rompimentos não são dolorosos caso a barreira para um real envolvimento tiver sido plenamente mantida. O que se destaca da vivência de Joel e Clementine é a descoberta de que o outro investido era revelador de imperfeições, de forma que a falha emergiu e em algum momento tornou-se insustentável. A saída encontrada foi esquecê-lo. Para tanto, todos os significantes relacionados a esse outro foram levados ao consultório, de forma que no procedimento as memórias eram apagadas uma a uma, a começar pela mais recente. Ainda que a garantia de êxito fosse de 99%, é este um por cento que falta que aqui interessa. Esta porcentagem mínima fomenta os questionamentos: mas é isso que o sujeito queria? Numa realidade contemporânea em que nota-se o medo de envolvimentos, livrar-se de toda e qualquer memória associada à dor é objeto de desejo? O procedimento, se real, teria público?

Ter as memórias apagadas implicava a necessidade de revisitá-las. Eis aí o problema. Revisitá-las pela última vez, mas ainda assim estabelecer algum contato. Como em um sonho, os momentos vivenciados junto ao ser amado um dia investido eram despertados para que só assim deixassem de existir. A ficção traz um elemento essencial ao que interessa enquanto leitura psicanalítica: a não-passividade do sujeito. Joel e Clementine submeteram-se a esquecer e para tanto tiveram que sentir “tudo de novo” e reagir a isso. Nesta posição de agentes da demanda seria possível questionar o próprio desejo. Assim, Joel decide por agarrar-se às reminiscências que o faziam sofrer. Ele se implica em uma auto-sabotagem enquanto dormia, na tentativa de impedir que tais memórias fossem deletadas para sempre. Mais que um apego às recordações, ele junta-se a Clementine para que fossem salvos do alcance de uma mente sem lembranças. Na ficção, como na análise, o desejo de esquecer é uma demanda inicial e aparente. A possibilidade de lembrar é temida bem como recordar o que causa dor é uma via necessária para que exista tratamento. Conforme consta desde os primórdios de Freud, não se trata de esquecer, mas de elaborar, de se produzir a fala de uma situação dolorosa, de descolar significantes e significados. Algo deixado por esta obra de Gondry é a real de que memórias fazem sofrer, mas existe a oportunidade de elaboração. Neste tipo de dor é certo que existe beleza bem como a chance de se produzir algo novo a partir disso.  

Renato Oliveira