17.11.10

Que felicidade é esta?

As artimanhas do cinema nada mais são que linguagens. O cinema é um brincar de linguagem: oposições, chistes, metáforas, sentidos figurados, hipérboles, etc. há inúmeras possibilidades. Hoje iremos nos referir ao passado para falar do que é próprio da linguagem, assim como abordar a temática da morte, do sangue e da perda afim de encontrar alguma representação para a felicidade.

Uma bucólica sensação dos anos 50. Aqueles que viveram nesta época certamente saberão descrevê-la. Aos demais, são as imagens, o som e a fala de um outro que nos remete à este momento. O final da Segunda Grande Guerra se apresenta como o início para um novo período de sonhos e conquistas. O filme “A Suprema Felicidade” de Arnaldo Jabor retrata um universo de sonhos, marcado pela necessidade de dar significado ao desejo, a falta e a sexualidade. 


O roteiro apresenta diferentes períodos da vida de um casal: desde o encanto da paixão inicial aos momentos de questionamentos de seus próprios papéis. Trata-se aqui de pessoas marcadas por sonhos. Marcos | Dan Stulback | era aquele que sonhava voar, para ele pilotar um F80 constituia um propósito de extrema importância, mas o sonho masculino contrastava com o sonho feminino ilustrado por Sofia | Mariana Lima |, que representava a dona de casa que almejava um emprego e uma maior autonomia para o seu desejo. Um discurso que não se encontrava: o desejo de Sofia era divergente dos propósitos de Marcos, e esta, enquanto uma mulher desejante e desejável era capaz de provocar-lhe fúria. É neste desencontro de falas, de saberes e de posições que a história acontece e a temática da felicidade se evidencia. 


Ora, são as percepções do único filho deste casal, Paulinho | Caio Manhente, Michel JoelsasJayme Matarazzo | que nos faz assimilar este universo que se mostra. Aos oito, 13 e 19 anos, diferentes etapas: todas elas marcadas por um olhar. A compreensão do que é a felicidade seria internamente elaborada para ele a partir de seus primeiros referenciais, que além de seus pais incluía o seu avô Noel | Marcos Nanini |. É interessante observar que desde o início há uma busca por tentar representar a felicidade de algum modo, de dar fala, de trazê-la em palavras, de articular um discurso a respeito dela. Mas trata-se de algo muito abstrato, portanto, foi preciso fazer uso da criação, das sucessões causais e de coisas opostas afim de que a Suprema felicidade, da qual Jabor nos fala, pudesse ser representada. 

Sendo assim, a felicidade se mostra neste primeiro momento relacionada ao sonho, às expectativas e às ilusões. Contudo, a Psicanálise nos faz dirigir o nosso olhar para o inverso: é o avesso e a oposição que nos interessa, e será por meio da análise do significante que encontraremos um novo modo de enxergar a supremácia da felicidade implícita neste trabalho.


Pois bem, no roteiro, há a repetição da presença do sangue, da morte e da virgindade. Estes três elementos centrais nortearão a idéia de felicidade que por si só não é possível apreender. O sangue é algo que se mostra desde as primeiras cenas, na qual um menino faz um corte em sua mão durante uma reza. O sangue é a presença de uma perda, de algo que se vai. Posteriormente ele aparece em um teatro de anões, no qual é simulado um esfaqueamento provocando um tremendo horror nas crianças que o assistiam. Vejam: sempre que o sangue aparece, ele se apresenta acompanhado de uma perda, desvelando a morte a partir de tal. 

Em síntese, a morte e o sangue se apresentam em outros contextos: via repressão do ato masturbatório, o qual é associado à morte de espermatozóides; na experiência dos espectros, em virtude de um corte na mão de Paulo e com a prostituta morta a facadas. Enquanto a presença real do sangue afirma o temor da morte, a suposição imaginária do sangue ilustra o desejo pela perda da virgindade.


De modo contextualizado, o diretor aborda o tema da virgindade a partir do fascínio do corpo e da descoberta da sexualidade. Paulinho lidava com o temor desta descoberta a partir de uma falta e esta não somente no que diz respeito ao ter outro objeto, mas na falta pelo saber, pela representação. Ele não sabia o que queria ser, mas sim o que não queria: “não quero ser igual a esta gente e nem igual aos meus pais”. Foi esta insatisfação quanto as noções de felicidade que se mostravam até então, que o fez encontrar um outro comum nesta linguagem. Ele identificou-se com Marilyn | Tammy Di Calafiori | uma jovem de 16 anos que trabalhava para seus pais como dançarina. Era feito uso de sua virgindade na apresentação de um corpo intocável, disponível apenas ao olhar daqueles que lhe pagavam. “A virgindade vale ouro”, conforme ela afirmava. Observem que o tema da felicidade apresenta-se novamente, apontando um modo de gozo a partir daquilo que se retém, ainda que a custa de privar-se de uma satisfação.

A Suprema Felicidade em momento algum se mostra como tal, ela é apresentada via linguagem: com a dança, o riso, o som, a arte e os chistes. Ela é linguagem e se constrói na relação com outros sujeitos faltantes (desejosos). O pânico diante da presença do sangue que aponta o temor da morte, assim como o sangue que imaginariamente ilustra uma satisfação, afirma que este significante possui diferentes significados no decorrer do roteiro. 


Observamos também que a felicidade pode ser encontrada e experenciada de um modo singular. Noel afirma a seu neto: “ninguém é sempre feliz, com sorte dá para ser alegre; a vida gosta de quem gosta dela”. Podemos relacionar esta fala com a clássica afirmação de Freud: “A felicidade é um problema individual. Aqui, nenhum conselho é válido. Cada um deve procurar, por si, tornar-se feliz". Estas duas citações nos mostram que a felicidade é compreendida no âmbito do singular, na aproximação do sujeito àquilo que trás significado para as desgraças, anseios e prazeres da própria realidade humana. Esta noção é trabalhada por Freud em seus textos sociais, localizando a civilização como uma esfera potencializadora do sofrimento psíquico, a qual não incluiu em seus projetos a responsabilidade pela felicidade do homem.

O descontentamento e o temor diante da perda faziam com que aqueles sujeitos elaborassem novas noções a respeito da felicidade. Era preciso deparar-se com o vazio, com a falta e com o temor da morte para assim constatar que em suas vidas era possível encontrar-se com satisfações momentâneas e significativas. Deste modo podemos compreender que a suprema felicidade é uma construção singular, que se articula nas ações daquele que acreditam ser capazes de exercer ações transformadoras.

Super abraços,

Renato Oliveira

18 comentários:

Franck disse...

'A suprema felicidade', o filme, está no meu roteiro de parada em algum cinema, só não tive tempo, ainda!
Abçs!

renatocinema disse...

Uma amiga tinha falado mal do filme.......mas, após sua visão acho que preciso assistir. Talvez, ela não esteja preparada para tudo o que viu.

Valéria lima disse...

Ótima sua crítica. Não estava muito empolgada em ver. Pois um tempo atrás li um livro de Arnaldo Jabor "Eu sei que vou te amar", não foi muito do meu agrado. Quem sabe minha opinião sobre o autor através desse filme mude, não é mesmo.

BeijooO'

Anônimo disse...

Renato

Obrigado pela visita e poe estar me seguindo. Vir aqui é ter garantido uma boa resenha e certeza de uma critica clara e bem feita dos filmes.

Vou assistir.

Abs

M. disse...

Esse filme tem recebido muitos elogios por aqui. Um abração.

Paula Figueiredo disse...

Oi Renato!

Que surpresa boa a tua aparição lá no blog! E que surpresa boa essa análise do mais novo filme de Jabor. Achei muito legal você ter participado também do pré-lançamento do filme... Parabéns!

A falta é melhor forma de se notar a presença! E a felicidade é algo singelo que depende, sobretudo, do nosso olhar!

Abraço!
E vamos confiar na vida! :)

Juci Barros disse...

Sempre construtivas abordagens, o olhar que você tem acerca dos filmes é fascinante.
Beijos.

Maria Regina de Souza disse...

Sua visão é sempre inteligente e clara do que vê nos filmes.
Um abraço

Évelyn Smith disse...

Olá caríssimo Renato! Como vai? Eu vou bem!

Nossa, esse filme parece ser demais! Vou ver também! E o outro também, que fala sobre bullying e sobre pedofilia, né? Perdõe a minha ignorância de não saber o nome... Assuntos de bullying mexem comigo, pois eu já fui vítima. Uma dia eu te conto.

Que é isso, sempre que é necessário temos que falta à aula mesmo. Às vezes rendemos mais do que indo! Rsrs... Depois me conte sim o seu tema!

Sim, caríssimo, comecei a elaborar a minha teoria antes de ingressar no curso de Psicologia, 2 anos antes. Nossa, que honra! Pode sim fazer isso, é... colocar "tag"... Como eu faço isso?? Aliás, eu nem sei o que é isso! Rsrs... Eu parei no tempo do disckman, sou muito atrasada em tecnologia. Eu disse que eu tenho mentalidade de 42 anos, tentei avisar... Bom, depois você me explica com se faz a "tag"?? Daí eu faço isso sim com o maior prazer! Será uma honra ter um pouca da minha teoria de iniciante no super Cine Freud, do super Renato! Rsrs...

Olha, eu fui aí em SP em Janeiro deste ano, nas férias. Viajei pro interior de SP, na verdade. Como eu amo andar de ônibus, peguei um de Brasília até a capital, parei na Rodoviária do Tiête e achei o máximo! Tenho saudade de cidade grande assim! Fiquei um tempão rodando na rodoviária, vendo as pessoas, sentindo aquele cheirinho de poluição de cidade grande... Rsrs... Depois peguei um micro ônibus que vai pro interior, fui pra Cachoeira Paulista, conhece? Lá é lindo demais! Já fui lá quatro vezes, mas esta aventura foi a primeira vez que fiz. Queria fazer isso de novo agora, em Janeiro do ano que vem, mas vamos ver se terei "tempo", entende... Rsrs...

Ahh, que pena... Eu só tenho o Gtalk. Assim que lançou o MSN, em 2002, eu era umas das únicas pessoas que tinha. Depois quando lançou o Orkut, em 2004, eu também era umas das únicas pessoas que tinha. Desfiz de tudo há algum tempo. Fiquei sem contato social-virtual, só com o e-mail mesmo. Atualmente entro de vez em quando no Gtalk. Se um dia você tiver me avise, então eu te adiciono, digo, add! Rsrs...

Eu que agradeço pelo seu carinho e atenção. Confesso que conheço pouquíssimas pessoas assim como você. Aqui em Brasília é tão difícil ter amigos, ao menos pessoas sinceras. Creio que os seus amigos devem ter orgulho de terem um amigo como você! E olha que eu te conheço pouco ainda, hein... Você cativa a todos que te cerca!

Agora estou em época de provas, estou estudando muito, muito. E depois é férias! Com as graças de Deus e assim espero! Logo, logo você estará de férias também e assim podemos nos atualizar mais, né.

Eita, escrevi um bucado! Então até mais ver e tudo de bom pra você!

Beijo,
Évelyn

Anônimo disse...

a felicidade como um símbolo, pra ser possível de ser compreendida.

Anônimo disse...

de fato o cinema é uma troca de linguagens, e acho incrível como essas linguagens são passadas para o espectador.
Não assisti ainda este filme, não tenho uma simpatia por produções brasileiras, mas procurarei abrir mais uma exceção.

Sebo disse...

Texto esplêndido e eu, curioso em relação ao filme!
Deve ser bom!

abs,
sebosaukerl.blogspot.com

Anônimo disse...

Quero assistir.
Fiquei um pouco apreensiva em ve-lo porque algumas pessoas me falaram que era um filme bem ruinzinho...mas depois de ler teu post, vou seguir tua dica e minha intuição!
bjossssss

Zé alberto disse...

Olá,
Renato, apreciei sobremaneira este teu texto, pela simplicidade/linearidade/estruturação dos conceitos que dissecaste, tendo em conta a dramaturgia do filme em análise.
Foram minutos felizes, estes que passei em frente a este teu texto tão bem elaborado.

Ando para aqui a ensaiar o monólogo que escrevi e queria colocar no meu blog, em registo audio.

Grande abraço!

Erica Vittorazzi disse...

Que texto rico, Renato. Como seres faltantes e conscientes disto, acreditamos que a felicidade, talvez tenha um preço, por isto o sangue e a perda são relacionadas. E esta busca, pela suprema felicidade, realmente como disse o Mestre Freud, é singular. E nós 'psis', somos muletas, para muitas dores.
Renato, eu me nego a ser muleta... ;)

Super Beijos

Histórica! disse...

Olhando por esse lado... estou até com vontade de ver este filme. Olha só Renato, eu ouvi uma crítica dura em relação ao filme e por isto perdi o tesão! Contudo, foi através dos seus olhos que reencontrei o prazer e a curiosidade de espiar essa tal "Suprema felicidade!".
Um abraço, Hilda freitas (Belém)

Priscilla Marfori... disse...

Oi, resolvi visitar e gostei muito!
Te seguirei.
Com prazer,
B-Jos.
=)

Anônimo disse...

Adoro este blog!! Este site..estes posts...alias coloquei como dica de visitaaa no meu último post!! Parabéns pelo blog.