O cinema é tido por algumas pessoas como a arte de criar. Existem aqueles que acreditam, inclusive, numa certa correspondência entre criador e criação. Se por um lado conhecemos uma infinita série de personagens caridosos que mostraram a todos o seu dom de fazerem do mundo um lugar melhor, é certo que eles não subsistiriam se não houvesse o seu inverso. Por décadas os vilões foram aqueles que evocaram os mais tórridos sentimentos de repulsa e admiração, dando lugar, assim, para que um ser do bem pudesse reinar. Hoje uma mulher com um dever para com os vivos irá reinar, colocando aqueles que ao mal entregam-se à uma segunda posição. Assim será? As contradições e reversibilidades podem ser admitidas porque trata-se do cinema de Luis Buñuel, o palco em que o sádico e o sagrado podem desvelar-se conjuntamente. Se o dever para a presente ocasião consiste na arte de interpretar é válido que adentremos na história de Viridiana | Viridiana – 1961 | uma afetuosa mulher que além do dever para com os vivos terá que lidar com a suportabilidade de uma missão para com os mortos.
Imaginem vocês que após épocas de uma estável tranquilidade em um convento, uma notícia desvirtuou o rumo daquela serena sucessão de dias: Viridiana | Silvia Pinal | foi designada por uma das madres superiores a ir visitar um tio distante, como cumprimento de uma missão que implica o dever de acolhimento àqueles que estão prestes a encarar a passagem desta vida à outra. A poesia que envolve este dever não foi satisfatória para que a jovem se motivasse a deixar um lugar comum para apresentar-se ao desconhecido, pois ao fazê-lo poderia estar sujeita a toda sorte de concupiscências. Os argumentos da madre foram, contudo, mais relevantes, pois o tio ao qual Viridiana deveria visitar a ajudara em seus estudos, oferecendo, conforme lhe foi relembrado, um dote para que aqueles anos de total dedicação religiosa fossem possíveis. Assim, ela admitiu passar dois ou três dias em “um sitio muito tranquilo, como um convento”. Saberemos tão logo que a realidade não seria exatamente esta.
Ao chegar à residência de seu tio, Viridiana assumia junto à todos que ali encontravam-se uma representação estética de perfeição, um ideal de pureza apreendido por meio de seu olhar terno e suas ações honestas para com os outros. Ela foi cordialmente recebida por seu tio Don Jaime | Fernado Rey |, ciente de que o seu dever para com ele e para com as autoridades eclesiásticas – representantes de Deus na Terra – seria consumado em questão de dias. A sucessão de fatos, entretanto, foi distinta ao esperado. Na véspera do retorno da jovem ao convento aquele perspicaz homem em parceria com Ramona | Margarita Lozano |, sua empregada, executaram um maléfico plano com o intento de que Viridiana ali permanecesse por mais algum tempo. Primeiramente, Don Jaime solicitou afetuosamente que ela se vestisse com a roupa que sua falecida esposa usara na noite de núpcias, quando faleceu. Após contestar a incongruência deste pedido, ela consentiu, dizendo “não posso te negar nada” e ao caminhar pela casa com a fantasia da antiga mulher, Viridiana afirmou sentir-se feliz “por lhe ter feito a vontade porque, ao contrário do que cheguei a pensar, acho que o tio é uma boa pessoa”. Se a solicitação não tinha maiores pretensões em primeira instância, bastou apenas que a jovem recusasse enfaticamente o real pedido de casamento de seu tio para que outras medidas fossem executadas.
O desejo não correspondido de Don Jaime era expresso nestas palavras: “quero que não saia desta casa”, justificando-se “não me julgue mal, só o faço para tê-la mais perto de mim”. Impedida de retornar ao convento e à sua devoção, a afetuosa aprendiz fora transformada em Bela Adormecida após a ingestão de soníferos, medida esta de grande utilidade para que ela se tornasse um instrumento manipulável nas mãos de um outro. Em estado de plena inconsciência, ela foi entregue ao bem ou mal-querer daquele homem que mesmo após tê-la tido consigo mantinha-se em estado de angústia por temer que Viridiana se fosse.
A estratégia elaborada pelo tio teve sua eficácia apenas temporariamente, pois na manhã seguinte Viridiana apartou-se daquele mundo, levando junto a si a vergonha e o sentimento de culpa por ter sido feita objeto ao querer de um outro. A princípio, ela não teria condições de supor que voltaria em breve àquela residência absolvida de qualquer intento pérfido de seu tio. Logo lhe foi informado que Don Jaime ao suicidar, confiou-lhe o direito de usufruir de todos os seus bens. O impacto desta eventualidade foi a ocasião oportuna para que a jovem encontrasse uma solução cabível à seus valores morais, assim, Viridiana admitiu ser a proprietária daqueles bens, mas não exclusivamente: ela optou por abrir as portas da mansão para que pessoas humildes pudessem gozar de uma vida digna – “a minha intenção é criar um albergue (...) onde os pobrezinhos, de passagem, encontrem teto, comida e um pouco de calor humano”. Se pensarmos em uma equivalência entre dinheiro e poder – conforme Freud evidenciou na análise do homem dos ratos (1909) – o fazer pelo outro foi a solução encontrada por Viridiana para o seu sentimento de ter sido afortunada pelo falo do tio, benefício ao qual ela mostrou-se relutante em aquiescer. A aceitação foi admitida apenas em termos de uma renúncia na qual a personagem resolveu-se por dividir os bens e o próprio espaço da residência com aqueles que se encontravam em uma condição desfavorecida.
Por meio desta obra, Buñuel faz incisivas críticas ao império da Igreja Católica e denuncia uma renúncia à satisfação narcisista, concepção esta que encontra-se em concordância com apontamentos feitos por Freud em 1925 sobre a sexualidade feminina. Desta maneira, observa-se que Viridiana preferia ser o amante e não o amado, ou seja, ela estava identificada com o lugar daquele que transmite o seu favor ao outro por meio de ações sem esperar recebê-lo de volta. Se jogarmos com a homofonia entre estas duas palavras, podemos substituir o adjetivo amante por beneficiário, deste modo, a personagem mostrara predileção em ser o beneficiante, e não o beneficiado.
A recusa pela satisfação narcisista para Buñuel (1982) está relacionada com o preceito bíblico que impõe a necessidade de expressão do amor ao próximo; para Freud, de outro modo, esta renúncia observada na conduta moral de mulheres pode ser entendida a partir do abandono de um prazer primitivo. A menina elabora a sua condição de não ser completa ao constatar a ausência de um suporte fálico em si mesma, de algo que na dimensão do corpo seja capaz de representá-la, e neste aspecto, unicamente, ela reconhece que não poderá competir com meninos. A decisão de Viridiana, portanto, pode ser analisada mediante a posição de não-ter ou não-ser-toda assumida por ela. O desmerecimento é compreendido, portanto, como uma admissão provavelmente associada à sua capacidade para reconhecer que o objeto narcísico não lhe era propriedade, de modo que sua única possível saída seria atribuí-lo a um outro em detrimento de si própria. A atitude de renúncia enquanto saída para sua condição de afortunada, contudo, não eximiu Viridiana de maiores complicações, a qual inevitavelmente teve que deparar-se, portanto, com os enganos e insuficiências de suas próprias saídas. Ficá-nos, portanto, a ressonância daquela intrépida questão: será possível, ao mesmo tempo, comer o doce e guardá-lo?
Abraços fraternais,
Renato Oliveira
Abraços fraternais,
Renato Oliveira
11 comentários:
Amigo seu texto começou soberbo: "Arte de criar." Gostei também da junção entre criação e criador.
Gosto de Buñuel, entretanto esse filme ainda não assisti.
Angústia, desejo....fiquei instigado.
Viridiana ao abrigar o outro (abrigar o carentes) inconscientemente livrou da culpa.
Esse filme me fez lembrar da série Criminal Minds, esse tio parece um psicopata. Muito boa sua análise, bjs Cynthia
Este filme não para os fracos, como diria minha amiga. è tanta coisa subentendida por entre as ações de Viridiana, o desejo do tio, as críticas - inteligentes - a Igreja católica... E tão atemporal ao mesmo tempo. Uma visão de lá que explica coisas por aqui.
;D
Um filme poderoso... Ótima resenha, Renato.
Cumprimentos cinéfilos!
O Falcão Maltês
interessante o seu ponto de vista deste filme, mas, em realção a pergunta se você vai comê-lo como ira guardar? A não ser que você consiga repartir o doce? Assim consegue guardar um pedaço? Mas, se não consegui repartir fica um pouco complicado guardar algo ja mordido, não acha?
Um abraço.
Ah esse filme preciso ver sim! Me chamou atenção tudo o que foi apresentado até agora sobre ele. Sua análise nos faz refletir justamente no momento em que vamos ou pretendemos assisti-lo. Ótimo domingo e bom Carnaval!
Oi Renato, tudo bem?
Menino, estamos sumidos damais, rsrs
Gente, filme forte esse né? Os filmes antigos tem todo aquele mistério né? Isso fascina mais ainda a gente.
Se cuida menino
Abraços
Olá caríssimo Renato! Como estás?
Atualizei o meu blog ontem, mas não coloquei nenhum texto, apenas um vídeo de música na seção "Gozo". Depois devo escrever algo de acordo com o contexto desta seção.
Ahh... E esse feriado, hein... Não aguento mais ouvir por aí axé ou samba. As pessoas ficam empolgadas e resolvem escutar só este tipo de música. Pelo menos o feriado foi produtivo pra mim... Dormir, dormir e dormir... Rsrs... Brincadeira, dormir, dormir e estudar!
Esse filme é um clássico! Ele já passou em algum desses canais de filmes cult da TV fechada... Infelizmente eu não vi, só o trailer. A minha mãe já vi este filme.
Achei demais as suas percepções! Os filmes do Buñuel sempre deixam esta mensagem latente... A sua percepção psicanalítica foi exatamente aquilo que estava lá, mas que às vezes não percebemos. A jovem freira fez esta renúncia, de fato, por sentir-se incapaz de "competir" com o seu tio, resultado "do abandono de um prazer primitivo": "ela estava identificada com o lugar daquele que transmite o seu favor ao outro por meio de ações sem esperar recebê-lo de volta". Pior que vivemos muito disso... Ainda mais quando queremos comer o doce e guardá-lo (essa foi muito boa!).
E as novidades? Depois me conte o que tem feito! E depois eu te conto do lamento do meu TCC... Infelizmente não vai ser, mesmo, da forma que eu queria em todos os aspectos. Pelo menos estou fazendo um assunto que gosto na iniciação científica... Enfim, depois eu te conto.
Tudo de bom pra você! Saudades!!!
Beijão
Adoro "preto e branco"!!! Gosto muito de suas análises sobre tais filmes, sua linguagem é saborosa! Obrigado pela dica e pelo carinho de sempre!
Olá, Renato, saudades de suas postagens. Não deixe o "Cine Freud" sem inovações por muitas semanas. Perde-se leitores.
Abração e volte logo.
O Falcão Maltês
Renato, adorei teu texto!
A parte que você fala sobre a castração é tudo a ver com o 'amor' de Lacan, 'dar o que não se tem'.
Mas, sobre o narcisismo, me pergunto: será mesmo uma "renúncia à satisfação narcisista"?
E quando Viridiana faz aquela carinha de 'estou gozando' quando o pintor diz que, para fazer um retrato da Virgem, teria que pedir que ela ser a modelo?
Não seria a satisfação, narcisista, de ser 'A Esposa do Senhor'?
Se foi pra renunciar algo, acho que seria a sexualidade.
Abraço!
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