2.10.13

paixão diabólica

Não existe nada suficientemente sagrado que não possa vir a ser profano. Para que a análise do filme de hoje seja compreendida é preciso que as pessoas não fiquem “sem corda”, que mesmo que elas se surpreendam com o fatídico pacto entre dois jovens ainda existam formas para falar sobre o que se sente. Como não sentir entusiasmo ao ser convidado para um elegante jantar? No entanto pela experiência é constatado que caso seja servido champagne, vale questionar a razão para tanto. Como fora dito “é Freud quem vê um sentido para todas as coisas”. Numa data remota comentei sobre um grupo de amigos que se esforçava para oferecer um jantar sem conseguir concluí-lo. Desta vez, contudo, todos os preparativos estavam prontos, inclusive, o principal prato: um jovem morto, recém-assassinado que ocuparia um lugar de destaque abaixo da superfície da mesa. Com ênfase, era um “jantar peculiar” organizado por uma pessoa possuinte de um humor mórbido e uma devoção sem igual para realizar grandes feitos. A homenagem em forma de declaração é a Hitchcock, mais uma vez, que mostrou uma apurada compreensão freudiana ao dirigir o festim diabólico | Rope – 1948 |.


Claro que não é de hoje que se comenta sobre temas próprios a psicanálise presentes nos filmes hitchcockianos. É possível que desde os anos na Inglaterra ele não perdia uma nova edição das obras de Freud que na época ainda não eram completas. Um biógrafo pode confirmar esta hipótese. Ou talvez não seja nada disso, pois pode ser que meramente se vê seres humanamente perturbados em seus filmes ou “mais saudáveis e naturais” do que seres bonzinhos. Para a ocasião basta reconhecer que uma caixa pode ter inúmeras funções, principalmente caso possua um bom espaçamento interno. Os amigos Brandon | Johl Dall |e Phillip | Farley Granger | resolveram cometer um “crime colegial” e elegeram o celebrado da vez: David Kentley | Dick Hogan |, que fora enforcado pela dupla supracitada e em seguida foi destinado ao desconforto de uma caixa de madeira. O termo “caixão” não se aplica ao contexto, absolutamente. O jovem assassinado seria celebrado como um ser faltante que poderia surgir em qualquer momento. Ora, estava planejado um jantar e a fatídica caixa seria a mesa. Talvez resida nesta criação o pressuposto de que ocasiões de morte não necessariamente precisam ser experienciadas com pranto ou em cenários fúnebres.


Os promotores do evento, contudo, não assimilavam aquele acontecimento de igual modo. Brandon sentia-se cheio de júbilo e anunciava sua expectativa para o jantar. Ele contemplava a si mesmo como aquele que não somente maquinava intentos no mundo das ideias, mas os transpunha para uma cena real. Ademais, ele estava a serviço de si mesmo, de seu intelecto ou de algo que em si lhe revelava o seu próprio desejo.

Enquanto para Brandon toda aquela circunstância era motivo de festa, Phillip estava diante de um real difícil de ser traduzido em palavras. Arrependimento não é um termo adequado para explicar o que se passava com ele. O foco de Phillip estava no crime realizado com sua participação – “acho que uma pessoa era tão boa ou tão ruim como qualquer outra. Você me assusta. Sempre me assustou. Desde o primeiro dia de aula. Talvez faça parte do seu charme. Não fico calmo como você, e resolvi brincar com você”. Para resumir a posição dele, seria dito, com base nas informações que se tem da história, que Phillip fora convidado para uma brincadeira e, sem ameaças, ele falou “sim”.


Eles discutiam a relação na presença do falecido jovem que escondido naquela caixa não deixava de ser testemunha da desrazão produzida no encontro entre os dois amigos. Brandon não conseguia convencê-lo de que a realização do crime os colocava em um status superior àquele dos que somente maquinam o mal, entretanto, com eloquência, prosseguia: “o poder de matar é tão gratificante quanto o de criar. Um assassinato impecável. Matamos pelo prazer do perigo de matar. Estamos vivos. Verdadeira e maravilhosamente vivos. Nem champagne se compara conosco ou com a ocasião”. Por alguma razão parece que somos instigados mais a querer saber dos motivos que levaram Phillip ao acordo do que entender a causa do assassinato, afinal, não somos detetives civis, e uma vez acontecido... Há pistas significativas a serem consideradas. O “jovem culpado” também faz o outro falar. Ele quer saber como o amigo se sentiu durante a realização do ato. A finalidade do grifo será entendida mais adiante. Brandon retrata que não era fácil explicar-lhe, mas que não se lembra de nada até que o corpo de David amoleceu, de maneira que ele sentiu “uma exultação tremenda”.


Ora, a linguagem do crime anuncia, na realidade, a realização de outro ato entre dois homens abominável aos preceitos civis e morais daquela civilização. Phillip não fora enganado ou levado a ser um simples cúmplice, mas ele se submeteu a tudo por amor e devoção ao amigo. Com a realização deste “crime colegial” ele pode estabelecer uma aliança com Brandon, este outro desejado. Qual era o seu verdadeiro remorso? Provavelmente em sua consciência ele se sentia culpado pelo homicídio de David, mas é possível considerar que o conflito de Phillip estava localizado no “choque” e na oposição entre um desejo homossexual e as leis internalizadas e a moral sexual civilizatória que condenava este tipo de afeto. Com o crime fora constituído um “nós” no discurso entre os amigos e esta certeza de que o desejo se transformou em ato causava-lhe ainda mais angústia. Phillip queria saber sobre o prazer do outro, ou seja, ele fazia um inquérito a fim de averiguar se valera a pena a submissão ao ato, revelando, portanto, que assim fizera para satisfazer o desejo do outro amado. Em síntese, entende-se que Phillip tinha características de um sujeito apaixonado que burla suas leis internas por devoção ao encanto suscitado pelo outro. Ademais, o crime foi uma relação sexual, pois retrata uma circunstância em que dois sujeitos cederam ao desejo. Eles brindam a David, afinal foi ele que na condição de oculto faria com que aquele jantar se realizasse.   


Conforme acertavam os últimos preparativos, Brandon anunciara a Mrs. Wilson | Edith Evanson |, a funcionária responsável pelos serviços domésticos, que a mesa seria destinada a leitura e os alimentos e bebidas seriam expostos acima da caixa que estava na sala. É evidente que a ela esta subversão toda pareceu uma decisão desprovida de qualquer sentido, principalmente, pelo uso de candelabros sobre a mesa, que sugeriam, segundo Brandon, “um altar cerimonial onde pode amontoar comida para o sacrifício”. Realizar uma ceia sobre uma grande caixa retrata exatamente a fusão entre o comer, considerado um ato sagrado, com a celebração do profano representada na prova do crime oculta aos olhos, mas ao mesmo tempo presente no interior da caixa.


Aos poucos começaram a chegar os convidados: Kenneth | Douglas Dick |, sua ex-namorada e a “atual” de David, Janet | Joan Chandler | e os pais de David, Mr. Kentley | Cedric Wardwicke | e Mrs. Atwater | Constance Collier |. Não é necessário decorar os nomes. O participante mais importante ainda não chegara. Na realidade todos participariam da festa e notariam os “comportamentos cabreiros” de Phillip que seriam justificados por Brandon: “ele está um pouco antissocial hoje”. Durante a festa também foi revelado pelo amigo que Phillip passaria um tempo na casa da mãe de Brandon. Talvez ele se sentisse ansioso. A bem da verdade é evidente que Phillip estava “sem corda”, ele se sentia desconfortável por supor um saber nas pessoas presentes. Ir à casa da mãe de Brandon seria uma solução possível, pois o ato de estar confinado em uma casa distante remete ao conforto de um armário em sua denotação popular. A ele seria permitido sossegar-se caso encontrasse um lugar seguro para o ocultamento de seu crime motivado pelo desejo por Brandon.  


A festa não começa antes da chegada da pessoa mais importante. Claro que o real promotor do evento já estava lá, mas oculto. Assim o mais importante seria aquele que desconfiaria da existência do faltante, e não, não seria o analista. Para a surpresa dos amigos, Rupert | James Stewart | compareceu. Caso não seja uma fantasmagoria da minha cabeça, ele fora professor dos amigos e da vítima e possuía um humor privativo apropriado para uma “festa peculiar” como comentado. No tempo em que bebiam e conversavam, aos poucos os presentes começaram a questionar a ausência de David, que não tinha o hábito de se atrasar. Enquanto isso Phillip bebia mais ainda como uma tentativa de aplacar o horror da possibilidade da caixa ser aberta, e a Brandon, de outro modo, tudo parecia ser cômico, inclusive, convidar o ex-namorado e atual rival do “aniversariante” para a celebração.


Entre os diversos assuntos que animadamente falavam, Mrs. Atwater comentava sobre suas predileções cinematográficas. Brandon, com seu “humor canastrão” decide contar a todos acerca de um episódio no qual Phillip torcia o pescoço de três galinhas, “uma tarefa que realizava com eficiência”.  O acusado se expressou: “Não é verdade! Nunca estrangulei uma galinha!” Ao olhar de crítica de Rupert, Janet comentou: “perdão, mas é engraçado ficarem alterados por uma galinha morta”. É possível que aquele encontro tenha sido organizado de acordo com o interesse de Brandon em “chocar” realmente, ou seja, revelar um dito de verdade que transformaria todos os presentes em coparticipantes de um ritual profano, mas caso não fosse este o objetivo então é certo que o maior erro da dupla criminal foi se pôr a falar. Sempre há alguém apto a encontrar sentido onde não se aparenta existir. Como perceberam, a Rupert o desaparecimento súbito de David não era um fato comum, aos poucos lhe pareceu concebível associar a ausência do jovem com o temor de Phillip e a eloquência exacerbada de Brandon.

Quero ressaltar que, para além da disputa entre revelar ou manter oculto estava posto em cena um conflito entre instâncias psíquicas representadas naqueles três homens. Brandon, Phillip e Rupert representavam, respectivamente, as três instâncias psíquicas formuladas na segunda tópica freudiana: id, ego e superego. 


Ora, o que faz o primeiro senão ansiar o tempo todo por satisfações infantis? Que criminoso daria um jantar para proclamar o seu crime e possivelmente ser punido? Os seus atos eram propriamente manifestações desprovidas de sentido lógico. Ele constituía-se como uma pessoa de caprichos e não fazia uso de uma diferenciação entre o certo do errado. A discussão sobre a “galinha estrangulada” nada mais foi do que uma afronta do id ao ego, pois Brandon desejava revelar o fatídico acontecimento. 


Phillip é a materialização de um ego em estado de calamidade por haver cedido a seu desejo. Ele tentava – como sabiamente revelou Freud – atender a dois senhores, a conciliar as exigências pulsionais de Brandon, bem como sua devoção por ele, com as espreitadas de um superego quase onisciente. A ingestão de bebida alcoólica, neste contexto, pode até mesmo aludir a uma tentativa fracassada de afastar-se da realidade, de se retirar deste campo de conflito. Ademais, ele não sabia a quem agradar e temia o seu futuro – “rezo para acordar e ver que não fizemos nada ainda”.


Rupert era o juiz da história, o representante moral. O superego, por sua condição tirânica, assume a função de agente criminal, ele interpreta o conto do id sobre a galinha morta como um dito de verdade, como algo que aponta outro caminho. Ele age via discurso e aumenta a tensão do ego ao lhe exigir a mesma atenção e obediência cedida ao id. O seu propósito final era confirmar suas hipóteses para incidir mais ainda a lei sobre Phillip fazendo com que o mesmo tivesse que elaborar alguma saída possível ao sentimento de culpa.

A história nunca termina enquanto não se responder às perguntas: seria um homicídio mais admissível socialmente do que o sexo? Por qual finalidade um pode ser visto sem maiores pudores e outro tem que ser escondido? Ademais, não há dúvida de que atender as paixões pode ser excitante a um amigo e terrificante para outro. Em festas peculiares observe as mesas.  

Com apreço,

Renato Oliveira

11 comentários:

Anônimo disse...

E essas expressões, hein? Um luxo.

http://3.bp.blogspot.com/-3Y5OdIdKjXA/UktGoAO4dWI/AAAAAAAAC3k/cmePzAXSi_4/s1600/rope_18.jpg

Evandro L. Mezadri disse...

Olá Renato!
Seus comentários são sempre ricos em detalhes, nos deixando interessados em assistir aos filmes, além do mais Hitckock sempre merece uma reverência!
Grande abraço, sucesso e grato pela visita!

Gilberto Carlos disse...

Um filme bastante empolgante e dos primeiros a tratar o homossexualismo mesmo de que forma velada.

Verlaine Freitas disse...

Muito bom comentário.
Eu também escrevi um texto sobre a psicanálise em alguns filmes de Hitchcock: http://verlainefreitas.blogspot.com.br/2013/08/a-ausencia-presente-uma-leitura.html

Abraço.

Rodrigo Mendes disse...

Ótimo texto, parabéns!

Adoro esse filme e amo a filmografia de Hitchcock.

Sem mais.

Abraço!

Rodrigo

http://cinemarodrigo.blogspot.com.br/search/label/Hitchcock

Iza disse...

Festim Diabólico é um baita filme. Assisti ele num dia chuvoso, no qual eu estava doente e havia faltado aula - hahaha eu sempre detalhada. Achei-o magnifique, brilhante e um clássico q todos deveriam assistir. Achei o personagem do James Stewart, no começo, meio "deslocado", sabe? Como se ele não pertencesse àquele núcleo - porém, no decorrer da história, percebi que ele era uma peça chave essencial no roteiro, ainda mais depois do baita diálogo que ele tem, no final do filme, com o suposto "casal". Gostei muito de sua análise, realmente ótima, viu? Você sabe que eu adoro seus posts hehehe.
Beijão <3

Évelyn Smith disse...

Caríssimo!

Quanta perversão... porém, nunca o bastante pra Hitchcock!

É nítido mesmo as instâncias psíquicas id, ego e superego nos personagens masculinos. Foi muito bem elaborado. Sempre algum desses prevalece em nós, é inevitável...

Nos falamos em breve. ;-)

Tudo de bom pra você!

Beijão

renatocinema disse...

Banquete de Platão li recentemente........amei.

Francys Oliva disse...

Ah, Renato depois que te conheci a cada leitura mato uma princesa e o príncipe que sempre fantasio quando assisto um filme. Mas, mesmo assim adoro as tuas observações meu querido. Beijos.

Homem, Homossexual e Pai disse...

Filmaço! Hitchicock nunca deixa nada barato e fácil! tem que por a cabeça da gnete para funcionar! parabéns pelo post!

Évelyn Smith disse...

Caríssimo! Muito chique, como sempre! A sua monografia ficou excelente. Continue os seus estudos nesta perspectiva... é algo inovador e que gera curiosidade nas pessoas. Sempre achei magnífica a simbiose entre psicanálise e filmes. Saudades!!! Tudo de bom pra ti. Beijão.