15.7.15

filmar e punir

Acho fascinante a experiência de rever filmes vistos a long time ago e ter a sensação de nunca tê-los visto. ~~Coisas do subconsciente~~ alguém poderia dizer. É ao som de hardcore que se inicia Ken Park (2002) e se por acaso parece que será uma comédia teenager-pastelão, essa impressão subitamente se esvai quando um jovem, junto aos skatistas retira uma filmadora da mochila e uma arma. Em seguida se mata – "o nome dele era Ken Park".


Filmes alternativos: uma iniciativa nobre e profícua para mostrar aquilo que a censura não deixa. Longe de ser um conhecedor do gênero, sei, contudo que grandes são os desafios daqueles que desejam realizar obras cinematográficas sem para tanto terem considerável apoio financeiro e marketing. “Cavar lugar” é o tipo de missão que alguns assumem a responsabilidade de aceitá-la. A minha opinião é de que os cidadãos Larry Clark e Edward Lachman fizeram um significativo buraco e hastearam uma bandeira ao realizar esse filme. É certo que a metáfora não é das melhores, mas é uma forma de expor minha acepção de que o resultado ficou fantástico e digno de apreciação! Vida longa, portanto aos amigos que ousaram enfrentar a censura ao realizar filmes, cada um à sua época. 

Sobre o filme a ser comentado, fico a imaginar como foi a determinados círculos sociais recebê-lo há 13 anos. Não há necessidade de fazer mistério acerca de seu conteúdo: é um filme com cenas de nudez e sexo, tão apenas. Ao pensar na dicotomia entre revelar e ocultar, é certo que, em vocabulário simples, uma das principais descobertas de causa analítica é a de que o homem, por razões de seu conforto mental, esconde coisas de si próprio. Assim, o roteiro é pautado, primordialmente, na exibição de sentimentos ocultos no âmbito doméstico trazidos a tona.


Após a cena de suicídio, são apresentados os quatro protagonistas em questão, todos adolescentes e imersos em circunstâncias familiares perturbadoras. Acerca de detalhes do cotidiano desses falantes, me detenho a relatar apenas o estritamente necessário ao que pretendo comentar em seguida. 1. Shawn | James Bullard | >> submetia o irmão mais novo à prova de amor numa quase exibição de bondage – “diga que sou seu mestre e você me ama”. Fazia sexo com a jovem e sensual sogra. 2. Claude | Stephen Jasso | >> vivia com uma mãe grávida e um pai hábil no supino (levantamento de peso). 3. Peaches | Tiffany Limos | >> órfã de mãe, morava com um pai religioso para o qual a falecida ainda estava muito vivamente presente na vida deles. 4. Tate | James Ransone | >> vivia com avós e não denotava ter afeição por eles. No jogo de palavras, formou “whiplash” (som do chicote).

Ainda com este intuito de síntese, quero responder a pergunta quanto ao que ocorrerá no decorrer da história sem que, para tanto, o final do filme seja revelado. A resposta chega a ser blasé: a vida deles será mostrada em articulação com suas particulares relações com o sexo, o corpo e a agressividade. Podem-se destacar alguns elementos que se repetem, úteis para se elencar similaridades entre os principais envolvidos.

Shawn, Tate e Peaches submetiam alguém a soft bondage (dominação leve), os meninos utilizavam o irmão mais novo e um cachorro, e ela, amarrou às grades de sua cama um “colega de igreja”. O tom de ameaça que Tate falava com o animal era similar ao empregado pelo pai de Claude, que também se envolvera em prática agressiva, só que demasiadamente hostil, ao insistir para que o filho levantasse um pesado halter e ao agredi-lo após quebrar seu skate.


Nota-se que Peaches, assim como Claude, estavam colocados em um ideal de eu pelos pais. No primeiro caso, o viúvo a exortava quanto ao cumprimento do dever religioso, de modo que a filha era associada à “imagem virginal” da mãe. Claude era não correspondente ao lugar de idealização, seu pai o desmerecia, o rebaixava a condição de ser fraco, desde o momento em que o acusava de não ter músculos. Essas acepções se reforçam, em conversa com a esposa, ao referir-se a ele como “a menina da mãe”. Não é somente o retrato de um pai tirânico, é primordialmente a apresentação de uma hostilização gratuita, sem causa. A intensidade desse sentimento é similar a “cegueira religiosa” do pai de Peaches.

São muitos nomes mencionados ao mesmo tempo, contudo, creio que com estes poucos exemplos é possível àqueles que não viram o filme assimilar que a atmosfera produzida não é doce. Trata-se de jovens diariamente convocados a dar provas de força, a corresponder a ideais estabelecidos e a lidar com uma censura socialmente imposta. Os diretores tiveram uma iniciativa parecida com a de Freud, no início de seu trabalho: falar sobre relações perturbadoras em seu caráter de normalidade. Ora, as situações retratadas podem parecer, numa percepção superficial, como a descrição do “mundo caótico” de adolescentes, do desafio de “crescer com dores” e adaptar-se ao mundo ET AL. No entanto, não compartilho dessa opinião. Os protagonistas não são meramente vítimas, e sim falantes em uma sociedade marcada pela censura e pelos ideais compartilhados.


O clássico comentário de Freud – “somos feitos de carne, mas temos que viver como se fôssemos de ferro” – é uma ótima ilustração. Ele anuncia que se espera do sujeito força para enfrentar o teste de realidade, noção difícil de conceituar, mas que se refere ao poder de suportabilidade social. Vejam os termos isoladamente: ferro, força, poder e suportabilidade. Todos aludem à noção fálica. Claro que há pênis no filme, mas não é de órgão sexual nem mesmo de sexo que se trata, mas da censura dos sujeitos um sobre os outros. Aqui o ato de censurar não esta relacionado à imposição de limites em medidas educativas, mas sim a iniciativa em tolher a liberdade do indivíduo, à suposição de que as pessoas não são capazes de escolherem por elas mesmas e sobretudo ao sadismo de impor-se como o mais forte. Quem assume este papel? Não são os nomes que serão citados, mas sim os lugares em que esse tipo de controle é exercido: famílias, empresas, escolas e mídia.

A experiência inicial de Freud com a psicanálise revelou a censura como um elemento das relações sociais, uma noção que ele tão brilhantemente articulou com a moral sexual civilizada. Claro que é inviável tecer correlações pormenorizadas da sociedade daquela época com a nossa realidade tupiniquim, contudo, a principal comparação que ouso comentar é referente ao desprendimento dele e a produção do filme: ambos retratam a posição do sujeito frente ao proibido. 

A teoria das pulsões, desde quando se falava em pulsões de autoconservação, foi um conceito enriquecido pelo que se pode apreender do sujeito em sua relação com os fenômenos de amor, agressão e sexualidade. Em linguagem comum, “pra que a coisa fique bem, é bom que as pulsões andem juntas”, ou seja, fundidas. Uma espécie de encontro da tendência à destruição com as vivências no campo do amor, da construção, do elo social. O filme, todavia é um verdadeiro retrato da desfusão das pulsões.


A relação sexual de Shawn com a sogra seguida pela briga de Claude e seu pai ilustra essa acepção acima. Tem-se um jovem em playground no corpo do outro em investimentos de prazer, na primeira cena, e uma intencionalidade em destruir, na segunda. A problemática de quando uma pulsão se manifesta sozinha se dá pela tendência ao aniquilamento do objeto.

A crueldade da tratativa do pai de Claude, difícil de ser detalhada, desperta, ainda assim, uma indagação: com base em que? Qual a razão da hostilidade? É necessário haver motivo ou determinadas relações familiares são propriamente hostis por sua configuração? Tenho uma hipótese: a hostilidade pode ocultar um desejo de incorporação. É uma atualização daquele princípio adolescente-escolar em que dois jovens que se detestam, podem vir a se casar. A conduta hostil é uma defesa para não admitir um sentimento tido como repulsivo. O objeto é atacado numa espécie de tentativa de provar a si próprio o quanto ele é detestável. Sem querer fazer “psicanálise de portão”, saiba que se um dado número de pessoas te detesta, considere que você possa ser objeto do desejo de grande parte delas. A dica é: não responda desse lugar e não siga conselhos.


As atividades sexuais e as drogas, mostrados com naturalidade, exatamente como deve ser, nesse contexto aludem à noção de que os infortúnios da vida cotidiana precisam ser compensados. E como Freud mencionou, a compensação deve ocorrer com medidas paliativas que possam equivaler à frustração experimentada. Os recursos para a suportabilidade são descobertas resultantes da busca por prazeres que amenizem as vivências ruins. Isso não significa, de forma alguma, que o sexo seja paliativo, mas ajuda-nos a pensar na alienação de práticas compulsivas. 

Ken Park pode até ser um filme para adolescentes, mas não somente. A certeza é de que não é um filme de adolescentes, uma vez que sua essência não é retratar um universo jovem, mas sim fomentar uma discussão em torno da censura. A exibição de cenas de órgãos genitais geralmente proibidas pela indústria cinematográfica é tema de discussão justamente ao se fazer o que não pode.


A propósito, Claude comenta sobre uma sociedade em que os envolvidos transam até 16 vezes ao dia – “é tipo uma sociedade perfeita, nunca ninguém briga, se dão todos bem”. Por fim, ele questiona se esta seria ou não uma sociedade utópica. Ainda sobre os fenômenos da sexualidade, não penso que o problema esteja na existência da lei, mas sim o enjaulamento do sujeito baseado em regras que estão além do "não pode", pois contemplam o estabelecimento de modelos e formas aceitáveis. Ademais, é assustador a rigidez disso, a alienação na forma como normas de comportamento e padrões de beleza são aceitos. Em síntese, toda uma educação moral civilizatória cujo enquadre do sexo deixa pessoas de fora, delimita posições e reforça uma transgeracionalidade sexual opressora. Vive-se ainda tempos de "doenças de sexo", cuja origem é um sepultamento, uma rigidez moral que bloqueia o diálogo e o conhecimento do corpo. 

Acredito que o inverso da censura, no contexto hostil em que ela foi abordada, seja a liberdade do sujeito com responsabilização. É nessa direção que o filme culmina, quando ousa mostrar-nos possíveis cidadãos livres, cuja ilustração somente pode ser possível se iniciada com uma liberdade em relação ao conhecimento do próprio corpo. Foi, portanto sobre certas “coisas ocultas” trazidas à luz em filme que se abordou aqui, às quais, uma vez consciente, aumentam o valor de veracidade da experiência de encontro.

Com afeto,
Renato Oliveira

Um comentário:

André disse...

Assisti esse filme há alguns meses, vi muitas críticas, mas não conseguia enxergar bem elas, pois não tinha coragem de indicar o filme a alguém para depois discuti-lo. Obg pela sua opinião, continuarei visitando essa página. Abraço.