30.7.10

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O lado absurdo e nonsense do cinema me atrai. Não sei bem como explicar isso, até mesmo porque a provocação de riso é um efeito difícil de ser esclarecido. Costumo nomear por humor negro as provocações indiretas que apresentam o bizarro e o proibido como focos de gozação.

Certamente “Depois de horas” | After Hours – 1985 | é o avesso do comum. O diretor Martin Scorsese apresentou um roteiro ilógico, desorganizado e imprevisível para ilustrar os infortúnios na noite de um jovem. Assim, a história parte do compreensível para dar lugar ao insano. 


Em um horário de pouco movimento, Paul | Griffin Dunne | encontrava-se solitariamente em um café lendo “Trópico de Câncer”, de Henry Miller. Inesperadamente foi como se o livro falasse por ele, despertando a atenção de uma garota ali presente. Poucos diálogos foram o suficiente para ele se encantar por Marcy Franklin | Rosanna Arquette | e desejar que aquele momento se estendesse. Afinal, tudo tendenciava a ser uma noite como qualquer outra. Marcy contou-lhe sobre uma amiga artesã que confeccionava “pesos de papel” e lhe ofereceu um meio para obter estes objetos. Ao retornar para casa, Paul decidiu ligar para o número memorizado e após falar com Kiki Bridges | Linda Fiorentino | lhe foi dado o endereço que o conduziria a obtenção daqueles objetos. Esta ligação foi o start para um novo universo, para a sequência de discursos e transições que colocariam Paul frente à insanidade de uma noite não planejada. A busca pelos pesos de papel estava relacionada a um anseio sexual que adveio da atração repentina por Marcy, e buscá-los seria como envolver-se com os significados dela e com o mistério da figura feminina. 


Após uma rápida e frenética viagem de táxi, Paul localizou aquele endereço e se deparou com a produção de Kiki que não se tratava de pesos de papel, mas sim de uma estátua humana confeccionada de papel e cola. No reencontro com Marcy, ele sutilmente apreendeu o mistério daquela jovem, e o súbito desaparecimento dela foi a oportunidade para a entrada de Paul em um universo maior. O encontro com outras mulheres o levou à uma condição alienada, de maneira que os fatos seguintes o invadiam e ele não conseguia nem sequer compreender o significados deles.

Na busca por Marcy, Paul perdeu 20 dólares e envolveu-se em diferentes infortúnios que o fizeram querer uma única coisa: voltar para casa. Seguidamente, ele se frustrava diante da impossibilidade de fuga. Paul é tido como uma marionete na mão das diferentes figuras femininas. Ele perdeu o seu lugar de dominio quando encontrou e se deixou envolver por uma feiticeira – aquela que engana, a astúcia da mulher temível. A figura ameaçadora da mulher que o perseguia remetia-lhe à angústia de castração, que o levava a fugir daquelas cenas como uma tentativa de não perder o seu lugar de segurança, pois a sua potência e condição masculina encontravam-se ameaçadas.


Neste contexto a castração refere-se ao temor do masculino pelo femino e enfatiza as diferentes posições de poder. No filme há várias representações simbólicas da castração, tais quais: perda dos $20, desenho de um homem mordido por um tubarão, a figura humana engessada, feridas no corpo e o temor em ter o cabelo raspado. As variadas figuras femininas eram objetos desejados e temíveis, simultaneamente. Assim como Paul não compreendia suas falas, também era difícil entender o porque daqueles sucessíveis infortúnios que dificultavam o seu retorno ao apartamento. Portanto, ele presenciava uma condição de descontrole. O temor da castração representava o medo do discurso do outro, e ao correr, Paul buscava assegurar o seu lugar, distanciando-se desta imago da mulher temível. O desejo em retornar ao lar consistia na certeza de que permaneceria portador do órgão fálico (poder), o encontro com o lugar de tranquilidade era a garantia de novos investimentos e buscas prazerosas. Certamente, era o desejo de um gozo futuro que o mobilizava neste retorno.


O discurso que o atraiu foi aquela fala enganosa, que ao apontar um novo modo de prazer retirou toda a certeza de domínio e de objeto do desejo do outro. Paul deparou-se e se iludiu pela fala de uma feiticeira. Assim, depois de horas pensando em como encerrar esta resenha, posso concluir afirmando o deboche que Scorsese faz da posição masculina, no qual mostra que a astúcia da linguagem é capaz de ludibriar até mesmo os mais seguros e confiantes em si. 

Tenham um final de férias feliz. :)

Renato Oliveira

21 comentários:

O+* disse...

Você é bom. Tentei interpretar um pouco Mademoisele Chambon. Mas preciso aprender a descrever as cenas. Isso que você faz.

Franck disse...

Vi esse filme na locadora e não me despertou o interesse, mas depois de ler sua critica fiquei com uma curiosidade de vê-lo amnhã msm... Essa noite me encontra com 'O Visitante' e 'Milk', o que vc diz sobre eles?
Um bom fim de semana!Abçs!

M. disse...

O lado absurdo e nonsense do cinema também me atrai muitíssimo. Amei o texto. Um abração e ótimo fim de semana.

Anônimo disse...

Muito obrigada.
Fico feliz que você tenha nos visitado, esperamos que volte mais vezes!

Seu blog é extremamente interessante, também iremos visita-lo sempre que puder.

Até a proxima!

Alan Raspante disse...

Mais um filme que ainda não vi. Não sei como, mas eu apenas conhecia a imagem do homem tendo opênis mordido por um tubarão, rs. Bem devo ter visto a imagem em algum lugar...

Estranho, mas eu vi poucos filmes do Scorsesse, preciso ver algo desse diretor. E pra ontem! hahaha.

Abs.

Érica Ferro disse...

"...no qual mostra que a astúcia da linguagem é capaz de ludibriar até mesmo os mais seguros e confiantes em si."

É lábia, meu amigo. A lábia!
A grande responsável pela nossa desgraça ou nosso sucesso, rs...

Beijo.

Rodrigo Mendes disse...

Gostei de sua classificação humor negro. Acho o filme mais divertido do Scorsese, melhor que O Rei Da Comédia neste quesito.

O Griffin Dunne está ótimo neste filme, que parece que foi feito pra ele. Como no clássico: Um Lobisomem Americano em Londres.

Também gosto do papel da Rosanna Arquette neste filme.

Muitas vezes o surreal faz mais sentido.

Ótimo texto.

Abs,
Rodrigo

Évelyn Smith disse...

Olá caríssimo Renato! Como vai você? Eu vou bem, graças a Deus.
Não estamos muito diferentes não, apenas 3 dias nos separam. As minhas aulas começam na quarta que vem. Bom, acho que já chega de férias, né... Dois meses de férias é muito! Espero que eu consiga passar direto em tudo no próximo semestre, e aí serão 2 meses e meio de férias de fim de ano!
Estou lendo uns textos sensacionais do Freud: Cinco Lições de Psicanálise, A História do Movimento Psicanalítico, O Futuro de uma Ilusão, O Mal-Estar na Civilização e Esboço de Psicanálise. Já leu algum? Estou lendo um do Rogers também, Um Jeito de ser. Já leu? Você curte Humanismo? Eu gosto bastante, viu...
É isso! Tudo de bom pra você! =)

Beijos,
Évelyn

Luciana disse...

Obrigada pela visita e comentário
Bjs e um bom fim de semana

Ná Lima disse...

Adorei tropeçar no teu blog.
Sua descrição me fez ter muita vontade de ver esse filme!
Voltarei aqui com freqüência.

Me permita disse...

Complexo de castração: a raiz de todos os nossos males, o princípio de todos os nossos medos... Nem sempre conseguimos lidar com esse nosso medo ancestral que se reproduz às vzs na nossa realidade...

Juci Barros disse...

O deboche é de uma inteligência fantástica. Quanto ao filme, sempre me empolgo após ler suas considerações.
Beijos,

Erica Vittorazzi disse...

A mulher não existe, segundo o nosso querido Lacan.

... e ao mesmo tempo, capaz de provocar tanta coisa, não?

A angústia da castração, por exemplo. Atualmente, somos nós que provocamos.

AH, o cinema italiano!! Faz tempo que não o vejo. Juro que o último foi O Quarto do Filho.
Bom, te chamei no facebook. Vamos conversar mais...

beijos

Carolina disse...

Hum não conheço este filme. Gostei, vou atrás. Dever ser bem interessante.
Valeu a dica, Renato!

bjos queridos pra ti!

Valéria lima disse...

Mais um relato muito intressante que vc escreve. como sempre grande leitura aqui.

BeijooO*

Dil Santos disse...

Oi Renato, tu tá bem?
Menino, vc como sempre com ótimas sugestões heim? Rsrs
Ah menino, quer ser meu concorrente é?
kkkkkkkkkkk
Brincadeira, mas eu sou um ótimo terapeuta sem diploma, ainda, kkkkkkkkkkkkk
Adorei o "nossa, que horror", eu todo dizendo isso, depois de um comentário meio assim, sei lá, kkkkkkkkkkk

Abração menino

Anônimo disse...

Nossa, já te disse que a maioria dos filmes que vce coloca me fazem ir atrás pra assistir por vários motivos, mas principalmente pela forma como vce fala deles. *-*

Ana Corina disse...

Oi Renato, desculpa, mas só agora realmente li o comment q vc deixou lá no Mãe de Cachorro em dez/09 (!) e vim agradecer o carinho. Como adoro filmes, já vou fuçar teu cantinho! Abraço!

Carolina Rezende disse...

Todas as vezes que venho no Cine Freud eu vejo como tem filmes que eu tenho que assistir ainda...

Eu sempre fui apaixonada por vampiros, desde pequena, aí quando eu assisti Drácula com Bela Lugosi, 1931, gente, foi muito nostálgico pra mim! Mas a música Bela Lugosi's Dead do Bauhaus você conhece?

UHASAUHUAHS Eu quis opinar sobre Crepúsculo depois de assistir MTV Debate! Eu precisava falar também...
E te adicionei no Facebook!

Aaaahhh sim, eu achei super legal o site. Mas faz séculos que não entro lá UHAUAHAU Vou entrar e te adicionar, e dar uma atualizada também!

Eu fui num sábado e voltei no domingo, só pra ver a exposição! Aaai cara, foi tão foda, né?! Eu quase morri quando vi as Campbell's Soup, as Marilyns, foi muito muito muito bom! ASUHASUH eu também pensei isso... Morro de vontade de aprender a fazer coisas em pop-art! Sou apaixonada.

Assisti! Lindo lindo lindo! É tão sutil... Ai, é lindo!

EEI, falando em modinha, te falei que descobri de onde vem a modinha pela Audrey (Hepburn, não a Tautou hahahah)?!

Beijoos!

Gorete . SoLua disse...

Análise excelente!

Tenha uma semana maravilhosa!

Doces beijos :)

Zé alberto disse...

olá,

O seu Blog é brilhante!! adorei. Meus sinceros parabéns!


Zé alberto, colaborador do Blog "Cenas Gagas" - Cinema & Psicanálise