Vamos falar de sapatos. Aqueles que acompanham o blog há algum tempo devem se lembrar que não é a primeira vez que este tema aparece por aqui. Em outro dia eu comentava que um sapato que não é somente um sapato, localizando este objeto num thriller muito querido por alguns. Hoje, o sapato reaparece. Pedro Almodóvar fez uso deste elemento junto a cores intensas para ilustrar uma relação ambivalente entre mãe e filha. Uma filha identificada com a mãe: foi a primeira percepção que tive. É a partir desta afirmação que será possível discutir sobre o lugar do feminino, conforme o diretor apresentou em “De salto alto” | Tacones Lejanos - 1991 |.
Enquanto aguardava o retorno de sua mãe em um aeroporto, Rebeca | Victoria Abril | relembrava alguns fatos de sua infância. Duas recordações merecem destaque: uma na qual sua mãe Becky del Páramo | Marisa Paredes | comprava-lhe brincos em uma feira, e outra na qual ela se encontrava trancada no banheiro, aprontando algo. Estes fatos eram de certo modo dolorosos porque localizavam o lugar de desvantagem de Rebeca diante da posição de sua mãe com as figuras masculinas. Rebeca era a “menina sem voz” que disputava a atenção de sua mãe com o lugar do masculino, o qual, desde muito cedo, foi apreendido com hostilidade.
Pois bem, voltemos à segunda lembrança: a criança que aprontava. Não tratava-se apenas da menina arteira, pois ao acompanhar a discussão de Becky com seu namorado, Rebeca resolveu facilitar as coisas para sua mãe, ela trocou comprimidos de uma embalagem à outra e possibilitou uma viagem sem fim ao padrasto. Aquele que impedia o desejo de sua mãe não mais atrapalharia suas vidas. Esse fato ainda era bastante nítido para Rebeca, mas até então, Becky nada sabia a respeito dele.
Mas quem era aquela mãe? Becky ilustrava o lugar da mulher desejante, daquela que é ativa em relação ao seu desejo. Ela buscava sucesso como atriz e cantora, e com passar dos anos o seu lugar se fez conhecido: ela tornou-se admirada por muitos, sendo referenciada enquanto alguém de valor. Este reencontro entre mãe e filha marcaria uma oportunidade para a construção de novos laços, mas ainda assim as marcas do passado e os conflitos mais primitivos impactariam esta estadia.
Ao retornar, Becky continuava a desejar o status que considerava merecedora. Conversando a respeito do período em que estiveram juntas, Rebeca lhe diz: “eu te odiava, mas até nesses momentos não deixava de te amar”. Esta ambivalência sustentava o amor pela mãe, a qual era tida como um referencial e também como um objeto ameaçador, pois apontava o lugar da mulher que era independente em relação ao que deseja.
Mas quem era aquela mãe? Becky ilustrava o lugar da mulher desejante, daquela que é ativa em relação ao seu desejo. Ela buscava sucesso como atriz e cantora, e com passar dos anos o seu lugar se fez conhecido: ela tornou-se admirada por muitos, sendo referenciada enquanto alguém de valor. Este reencontro entre mãe e filha marcaria uma oportunidade para a construção de novos laços, mas ainda assim as marcas do passado e os conflitos mais primitivos impactariam esta estadia.
Uma contradição se mostra neste momento, contudo, o psiquismo admite estas duas condutas opostas, pois no inconsciente não há oposição, ódio e amor coexistem. Isto nos ajuda a compreender que mesmo sentindo-se rejeitada pela mãe, Rebeca também era capaz de amá-la e tê-la como um referencial. Trata-se aqui de um jogo simbólico entre a ausência versus a presença materna, e da possibilidade de Rebeca se ver no discurso que nomeava o desejo da mãe. Um desejo que ia além da própria filha e que relacionava-se ao anseio pela fama e ao masculino. Podemos supor que ao elaborar a ausência paterna e a castração, Rebeca se viu desprovida do falo materno, ou seja, sem lugar no desejo da mãe, a qual tinha inúmeros interesses além do exercício da maternagem. Sendo assim, a ilusão de Rebeca em ser participante deste movimento desejante não se sustentou.
Isto nos remete à dinâmica do desejo da histérica que se vê na condição de militar pelo ter. Ao constatar sua condição de faltante, ela busca ativamente assegurar o seu lugar junto a algum objeto que seja capaz de dar conta da angústia. No caso de Rebecca, isso era bastante evidente na relação com seu esposo. Após o casamento, ela ainda mantinha-se identificada com a mãe, de maneira que as humilhações infantis eram postas em ato (revividas) com o esposo, que afirmava: “ela aproveita todas as situações para me humilhar”.
Afinal, de que sapato se tratava? De um salto alto chanel colocado nos pés de mulheres capazes de agir em relação a seu desejo. Daquelas que não admitem um lugar de não-fala e se posicionam como militantes na busca pelo o que desejam.
Até a próxima semana, abraços.
Renato Oliveira
23 comentários:
Adoro Almodovar, vejo tudo dele! Boa dica!
Qto ao 'Comer Rezar Amar', vi sim, uma fotografia bela, meio enfadonho na parte do rezar e alguns pecados, como dizer que brasileiro beija os filhos (homens) na boca...
Abç!
Oi Renato, fiquei feliz com sua visita... Gosto de seus comentários.
Quanto a este filme aí, nossa, que disputa!! Pior, entre mãe e filha...
Beijos e que sua semana seja muito boa...
Almodovar =}
Oi Renato!!!! Que texto maravilhoso! Quando vi esse filme pela primeira vez eu sentia nitídamente esse conflito entre Rebeca e Becky. E você com esse seu discurso ao nível de "Análise" é que nos faz clarear tudo a respeito dessas intrigantes personagens.
Sexta-feira em minha cidade estive pessoalmente conversando com o diretor espanhol Vicente Aranda, mas durante um colóquio do diretor com o público ele falou que o filmes dele são muito freudianos. Então, gostaria de saber se você já viu mais algum filme do Vicente Aranda? Eu só vi dois: "Carmen"(2003) e "Luna Caliente"(2009).
Ah, Almodóvar é tudo, também não é?! Fico no aguardo do próximo filme do Almodóvar aqui no Cine Freud. Posso te fazer uma pergunta: Posso publicar seu texto (claro, depois que você postar outro) lá no Sala Latina? Citarei a fonte e divulgarei seu blog lá. Quem ainda não leu aqui, nesse espaço maravilhoso, lerá lá.
Bem, escrevi demais por hoje! Um abração e ótimo domingo.
Sim, sapatos são tudo!!!
É sabido que, entre mãe e filha [principalmente se for primeira filha] existe um desconforto competitivo e ao mesmo tempo identificação, quanto mais se parecerem mais competirão.
Esse já ta anotado, verei sem duvida.
E queria saber se voce já escreveu aqui sobre alguma obra de David Lynch, especialmente do longa "Cidade dos sonhos"
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Gostei demais daqui, voltarei sem duvidas. ;)
Beijo
Vã
Parece ser bem interessante. Me agradou.
BeijooO*
Olá,
Renato, li no outro dia a tua análise anterior, sobre o filme "Blue" do Kieslowski, em que tu tão claramente dás a entender, se bem percebi, que é o "livre arbítrio" que está em causa na conduta da personagem principal após o falecimento do companheiro e sua filha.
Que é da liberdade que a personagem principal concede a si própria para viver "o seu luto" pelos familiares mortos.
Nas palavras que deixaste no meu blog, referes as narrativas mitológicas...sim, tens razão, pois essa é a matéria que mais me seduz, nos livros dos meus escritores favoritos, nomeadamente na portuguesa Agustina Bessa Luís, de que estou a postar alguns pensamentos, no blog "Cenas Gagas".
Grande abraço!
Olá!
Muito obrigada pelas visitas no canal 1, fico muito contente :D
Esse filme parece ser bem legal, gosto do jeito como você "esmiuça" a mente das personagens.
Beijão
Eu queria passar um dia na cabeça do Almodovar. Adoraria saber o que se passa lá dentro. Não conheço este filme, ainda.
Freud, acho que foi ele que disse, que o primeiro amor das mulheres é homossexual, nossa mãe. E vamos do amor ao ódio, ou ao ódio ao outro que nos rouba este primeiro amor. Por isto, nós mulheres somos mais histéricas ou histriônicas, como preferir...
beijos, Rê
Até a próxima com certeza!
Beijos.
Almodovar é gênio; espetacular; magistral. No cinema poucos possuem seu talento. O meu predileto é Matador. Mas, gosto de todos.
O seu único trabalho que me decepcionou, e não foi cinematográfico, foi no campo literário. Seu livro "Fogo nas Entranhas" é bom. Mas, confesso, que esperava algo nota 11.
Apreciei cada momento da leitura deste seu texto. Refleti enquanto mãe e filha. Sinto-me capaz de buscar o que desejo, e realizo a cada dia esta "fala". No entanto, ser mãe me faz querer questionar meus desejos e aprender a observá-los passarem, não respondendo tão intensamente a cada um deles.
Devagar e sempre. ;) Adorei aqui. Adoro psicanálise e cinema! Casamento perfeito! Abraço! E vamos confiar na vida!
É difícil mesmo se haver com seu desejo, com a "falta" que remete a castração e tudo isso que faz parte do sujeito "militante"...
Boa análise essa.
Abraços.
Já o assisti, mas não gostei muito, infelizmente. Porém, suas criticas, como sempre, são inovadoras.
Parabéns pelo blog!
Sou fã de Pedro Almodóvar. Acho que Tacones Lejanos foi um de seus melhores filmes e Marisa Paredes é uma excelente atriz, uma das queridinhas do Almodóvar, merecidamente.
Também escrevi um post com os melhores filmes do Almodóvar no meu blog. http://bit.ly/boP8Tt
Oi,Renato!Obrigada pela visita volte sempre.
Ainda não assisti esse filme do Almodovar,mas já fiquei curiosa para assistí-lo.
Uma ótima semana!
Beijos
UAUUUUUUUUUUUUU!
Vim retribuir a visita, e me deparo com um Blog maravilhoso e interessantissimo!
Sim, exite vida na Blogosfera!
Ameiiiiiiiiiiiiiii!
bjossssssss
Olá! Vim te fazer uma visitinha e posso confessar? Eu não deveria ser 'Nanda', eu deveria ser uma centopéia, adoro sapatos!
beijos doces
Vim agradecer sua visita e me deparei com esse texto interessantíssimo! Não conheço o filme, mas fiquei curiosa para conhecê-lo! Tenho uma certa paixão pela psicanálise!
Abraços!
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Terminarei de responder os recados amanhã! Beijos
Hey, I can't view your site properly within Opera, I actually hope you look into fixing this.
Olá,
Renato, cheguei tarde à leitura deste teu post, o trabalho, a disposição, nada tem ajudado, mas logo que ganhei forças de ânimo, dediquei os minutos que a leitura desta tua análise pressupõe.
Há pontos de vista que achei bem curiosos e novos para mim, formado em Semiótica, mas actualmente apaixonado pelas conclusões da Psicanálise.
Estou a lembrar-me, por exemplo, quando referes o "falo materno", sedutor conceito, pelo aparente paradoxo.
Os meus parabéns pelo aniversário deste teu maravilhoso projecto!!
Abraço!
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