20.2.11

Tudo sobre linguagem

Falar sobre bebês e suas mães é caso antigo na psicanálise. Não é de hoje que se comenta a célebre frase “antes de amar o seio, o bebê acredita ser este seio”. Popularmente, fala-se também que “mãe é tudo igual, apenas muda-se o endereço”. Os clichês são inesgotáveis, mas façamos um bom uso disso. A temática da família tem se apresentado como um motivo desencadeador de muitos questionamentos. Quem nunca escutou “tudo começa em casa”? Pois bem, a família como um todo é digna de análise, contudo, é sobre uma mãe que pretendo abordar hoje. Uma mãe que não possuia apenas um endereço distinto dos nossos, mas que tinha uma localização específica para o seu desejo.


O filme “Tudo sobre minha mãe” | Todo sobre mi madre – 1999 | nos apresenta o cotidiano de Manuela | Cecilia Roth | e seu filho Esteban | Eloy Azorín |. Em meio a cores de tons fortes, o diretor Pedro Almodóvar retrata alguns momentos valiosos desta pequena família. Façamos linguagem sobre esta mãe: Manuela era enfermeira, tinha um único filho e cozinhava muitíssimo bem. Outras informações sobre ela poderiam ser encontradas no caderno de anotações de Esteban, no qual novas notificações iam sendo inclusas diariamente afim de responder a seguinte indagação: quem é esta mãe? Trata-se aqui de um filho que elaborava uma linguagem enquanto tentativa de pôr em palavras e organizar uma fala autêntica sobre sua mãe. Contudo, algo lhe escapava. Logo nas primeiras falas do filme, observamos que para Esteban havia uma falta em questão: faltava-lhe uma representação da figura paterna. De qual pai me refiro? Não trata-se do pai real enquanto sua presença física e nem sequer do pai imaginário, mas de um pai simbólico, aquele que é a localização do desejo materno, pois Esteban somente sabia que seu pai havia falecido antes mesmo de seu nascimento. 


Conforme havíamos acordado, hoje falaremos de mãe e não de pai, porém é preciso fazer uma observação. Esteban pedia a Manuela que lhe contasse sobre a história de seu pai, e ela recusava-lhe apresentar um discurso a respeito dele. Vejam, na dificuldade em elaborar este pai simbólico, Esteban não era capaz de estruturar uma redação que falasse TUDO SOBRE SUA MÃE, era preciso haver um terceiro. Afinal, não saber sobre o pai era não saber sobre a localização do DESEJO DA MÃE que deveria incidir sobre algo externo que não fosse o próprio filho. 


No aniversário de Esteban, ele e sua mãe foram assistir a peça de teatro Um bonde chamado desejo estrelada pelas atrizes Huma Rojo | Marisa Paredes | e Nina | Candela Peña |. Esta história tinha um valor muito significativo para Manuela, pois há 20 anos atrás ela havia participado de uma apresentação amadora do mesmo roteiro. Logo, mãe e filho compartilhavam de um mesmo laço. No término da apresentação, Esteban convenceu sua mãe a aguardar a saída das atrizes afim de conseguir um autógrafo de Huma. Ambos aguardavam debaixo de chuva até que Huma e Nina saíram em direção a um táxi, provocando uma grande ansiedade em Esteban. Foi necessário correr em direção aquele carro afim de conseguir o tão sonhado autógrafo. Havia um sonho em questão que findou-se naquele mesmo dia. Ao perseguir aquele táxi, Esteban foi atropelado em um cruzamento e tendo como testemunha do fato, única e exclusivamente, sua mãe. 


A morte de Esteban desencadeou não somente uma intensa sensação de vazio e perda, como também transformações na dimensão da linguagem. Se buscarmos compreender do modo mais objetivo possível, entenderíamos que na ausência de um filho uma mulher é uma mulher, e não mãe. Esta compreensão é tida a partir do significado de mãe segundo o dicionário que considera enquanto mãe uma s. f. mulher, que tem um ou mais filhos. Todavia, esta descrição é insuficiente por duas razões: é preciso considerar a condição subjetiva do sujeito, e o significante mãe (assim como qualquer significante) não possui um significado próprio, logo, é esvaziado e pode ter diferentes significações. Como? Um homem, irmão, tio, avô podem ser “mães” no que diz respeito a função de exercer a maternagem. Sendo assim, mesmo após a morte de Esteban, Manuela ainda se considerava mãe, ela reconhecia a perda real do filho, mas ainda se apresentava enquanto sua mãe. Contudo, algo a angustiava. A perda? Não somente, a angústia de Manuela provinha da ordem do Real, segundo Lacan, na qual ela não conseguia converter em palavras a angústia decorrente da morte do filho, ela foi invadida por este Real.


Após estes acontecimentos Manuela decidiu ir ao encontro do pai de Esteban. Durante o percurso ela recordava-se de um fato curioso: 18 anos antes ela havia saído de Barcelona em direção a Madri, nesta situação ela fugiu do pai do menino com este nos braços, agora, ela retornaria a Barcelona ao encontro do pai real, e sem o menino. 

Com a morte do filho, parece-nos que Manuela também perdeu o seu papel, como se houvesse um estranhamento quanto a sua identidade de mulher. Contudo, não vamos nos contentar exclusivamente com isto. Tratando-se dos aspectos inconscientes, é de outra perda que o filme se refere: a perda pela representação. Enquanto mãe, Manuela era capaz de ter uma identificação própria, mas, na ausência desta função, ela foi invadida por uma angústia que afirmava a inexistência de um significante que representasse a mulher. Apenas enquanto mulher, sua representação era o vazio e o mudo. Manuela afirmava: nós mulheres fazemos de tudo para não ficarmos sozinhas. O estar só não diz respeito a ausência de um outro enquanto semelhante, mas de um significante que represente a condição de ser mulher. 


Vamos recapitular? TODO SOBRE MI MADRE: 1. mãe; 2. cozinheira; 3. atriz; 4. enfermeira; 5. assistente. Vejam, destacamos cinco significantes para dar conta de representar esta mulher. De modo semelhante, era isto que Esteban fazia por meio das anotações em seu caderno, contudo, algo novamente escapava. Não era possível compreender o TODO SOBRE ELA, pois não há este todo, o todo não existe porque há falta, e somente mediante esta é que é possível existir um sujeito desejante. A falta e a incompletude são próprias do indivíduo e a linguagem não consegue expressar uma completude, que por sua vez é inexistente. Deste modo, constatamos que realmente não foi possível conhecer tudo sobre esta madre, porém, conhecemos uma mulher forte que relacionava-se ativamente sobre o seu desejo, e que diante da perda e da ausência de uma significação foi atrás de verdades de sua vida buscando explorar um passado que impactaria o rumo daqueles próximos anos.

Renato Oliveira

25 comentários:

Ana Kalil disse...

Olha... Não gosto muito de Amodóvar, talvez por ele ser realista demais, e escancara a verdade doa a quem doer( sim , a verdade, por vezes, doi..), seja porque sou acostumada ao velho cinema americano. Mas pelo que vc descreveu, sinto-me na vontade de ver este filme,(assim como Cinderela em Paris e Socialmente Deliráveis). O lado do psicológico que o filme aborda, e que vc descreveu tão bem, deixou-me muito curiosa...

Beijos de bom domingo pra vc!

renatocinema disse...

Amo a loucura de Almodóvar, adoro suas insanidades.

Aprecio muito Tudo Sobre Minha Mãe, apesar de não ser meu predileto.

Nota 8 para o filme, na minha visão.

Franck disse...

Excelente dica, pq Almodóvar é um dos meus cineastas prferidos...
Abçs*

Anônimo disse...

Olá! Um filme interessante na opinião de uma leiga no assunto como eu. O fato dessa mãe não querer falar do pai ao filho me faz pensar se ela estava pensando mesmo no filho. Ela não falava talvez por medo da perda do amor (amor=filho), do motivo de sua existência e "localização" como ser humano? Medo de não ter se encontrado como ser humano? (Sobre meus posts: sou de fases também p/leitura, os livros que estou colocando que li há bastante tempo foi de uma fase de leituras mais simples, mais fáceis de compreender, minha rotina era histérica nessa época. Valeu pelo elogio ao layout). Abraços.

Xxx disse...

Olá, Renato,

Esta questão da linguagem proposta por Lacan é muito interessante quando faz a releitura de Freud e é uma pena que a maioria dos psicanalistas fujam da compreensão desta teoria tão interessante e profunda, até mesmo por sua compreensão exigir muita atenção e estudo. Acho que a análise que vc faz é muito coerente e, ao utilizar dos filmes para inserir as metáforas de Lacan, deixa a teoria "dura" mais meleável... quem sabe assim não seja atrativo para melhores compreensões da teoria, não?

Até breve!

Évelyn Smith disse...

Olá querido e caríssimo Renato! Saudades de ti! ;-)

Obrigada pelo belo e interessante comentário em meu blog. A sua análise sobre o que escrevi é de fato isso, hostilidade e empatia, há um esquecimento embaçado entre a relação destas ambas "práticas Vitais", diria.

Mais uma resenha excepcional, meu caro! Esta eu confesso que me chamou mais atenção ainda, pois é algo que estou (con)vivendo por estes tempos. Significado e Significante das coisas... Percebe-se a tristeza que envolve o erendo/trama deste filme. Mas é algo totalmente trivial em nossas Vidas, não acha? Quando perdemos o nosso significado, automaticamente queremos um significante para a nossa angústia (substituição de valores) e, muitas vezes, não conseguimos ter aquilo que representamos novamente. No caso, a perda do filho para a mãe do filme.

Nossa, estou tendo problemas com a matéria Psicologia Cognitiva. Problemas de Significado e de Significante: não empatizei com matéria e nem muito menos com a professora (muito imatura e sem experiência). Acredito que a Cognitiva me lembrou a Análise do Comportamento, mas cheias de critérios e emprirismos. E infelizmente esta é a matéria mais difícil do semestre, depois Psicanálise. Mas com meu amigos "Sigi" e Renato tudo ficará mais fácil! Rsrsrs...

Só sei que estou cheia de coisas para estudar... Fiquei parte da tarde lendo textos e ainda falta um de 51 páginas de Psicanálise. É assim, só tende a piorar, aliás, a melhorar! Coisas que já aprendi em Humanismo. =)

Então até mais ver! Tudo de bom!

Beijo,
Évelyn

Gisa disse...

Gostei do blog e da temática. Tua arbodagem é clara e precisa. Gostei muita da maneira como analisastes o filme, portanto, apresento-me e sigo-te
Um bj querido amigo

Carolina Rezende disse...

Sou suspeita para falar sobre os filmes do Almodóvar, pois sou completamente insanamente apaixonada por ele! e não há algum filme dele que eu não goste. No entanto, sobre este, é um dos meus prediletos. A primeira vez que o assisti foi comovente, quase chorei, mas como já até comentei com você uma vez, não é um drama apelativo, o Almodóvar não faz aquela coisa trágica que quer que você chore, é algo sutil, uma situação real e que te cativa numa maneira, que te faz no lugar da personagem inclusive. E a segunda vez que assisti foi na Feira do Livro que tinha como país homenageado a Espanha e passaram vários filmes do Almodóvar, fui assisti-lo com a minha amiga e do começo ao fim ela se desmanchava em lágrimas!

Enfim, outro aspecto que acho que ela volta para Barcelona é de algo não terminado, o Esteban pediu a ela como presente de aniversário para a mãe revelá-lo sobre seu pai, se eu não me engano. E ele morreu sem saber desse passado. A volta a Barcelone ao meu ver foi uma forma de voltar ao que ela escapou e uma forma de, de algum jeito, resolver assuntos pendentes, embora nunca serão resolvidos.

Enfim, adorei a sua análise! Principalmente por se tratar de um filme do meu querido Almodóvar, rs.
Beijooos!

C. Junior disse...

Renato,

Vou divagar aqui, mas fique a vontade para me corrigir. Aqui no seu BLOG, sou mais um aluno do que leitor. Então vamos lá...

Será mesmo que não há um todo?
Pergunto isso pois os significantes que você citou (mãe, atriz, enfermeira) são todos Personas de Manuela. Logo, nunca ninguem saberá Tudo dobre Manuella até por que a utilização que ela faz de sua Persona, para com os outros - e até mesmo para com ela - é inconstante. Obviamente a Manuela-Mãe não apresentar-se-a ao filho da mesma forma como se apresentaria a Manuela-amante, por exemplo. Em contrapartida, a Manuela-enfermeira pode muito bem pegar características da Manuela-atriz em seu trabalho.
O que eu estou querendo dizer é que tudo é um processo meio Gestaltico. O Todo existe, porque quando se perde algo, ganha-se algo. A Persona de "Mãe" dá lugar então a persona de "Viúva" (Não sei o termo para quem perde o filho, mas você entendeu o que eu quis dizer, rs). Logo, nunca haverá falta/incompletude, mas "Troca".
Certo!?
Até por que, quando aprendemos/absorvemos algo novo, não há a necessidade de 'esquecer' um outro 'algo' para dar espaço, mas sim nossa mente expande-se "elasticamente" para dar lugar à.

Enfim, a sua crítica está incrível!

Valéria lima disse...

Ela perdeu o chão. Que linda história, fiquei super grata pela dica - de verdade.
Estou louca para ver esse filme, um drama que comove, que história! Arrasou, Renato!

BeijooO*

Mione disse...

Sim, existem mesmo Renato. Tem trabalhos sensacionais que não precisam da fala, como Intolerância por exemplo, do grande Griffith, que é simplesmente magnífico!
Não vi esse filme não, mas procurarei por ele.

Ah, obrigada! =] Você é muito bem vindo também!

pois então, aquele link foi o que teve maior repercussão no meu projeto, o que teve de visita por lá não é no mínimo anormal haha! Inclusive fui criticada por ele, mas enfim, estamos sujeitos a tudo não é? (:

Adorei tua análise para esse filme, de fato não conheço quase nada do almodóvar, mas alguma hora passarei por ele, por estar na lista!

ótima semana pra ti também o/

Mione disse...

opa! É no mínimo anormal!"
quis falar uma coisa e acabei misturando tudo haha!

Luz disse...

Adoro o realismo de Almadóvar, e esse filme é riquíssimo.
Assisti faz um tempinho com um grupo de amigos, e que bom foi relembrar de tantas passagens...
Sua leitura é maravilhosa, algo que nos fugiu no momento, encontrei aqui na sua descrição.
Vc é bom!
Parabéns


*esperando o próximo já hehe

Erica Vittorazzi disse...

Renato, que Almodovar mais sensível que você me apresentou. Adorei a sua análise.

Sabemos que o bêbê não sabe o que é ele e o que é a sua mãe, eles são um só por muito tempo. Enquanto o pai sempre terá que ser apresentado para ele pela sua mãe, não importa se este pai é presente ou não.
Então, tudo é linguagem, significantes e simbolismo. É o simbólico que nos difere dos outros animais e o que nos dá uma certa individualidade e complexidade.
Sim, somos seres faltantes. Então, nunca será 'Tudo sobre alguma coisa' e que bom isto, pois sempre estaremos a espera de algo que nos complete (às vezes, confundimos isto com um filho).

(Lembrei disto agora) Eu estava em uma roda de psis e falei: o que uma mãe não faz por um filho? E a resposta foi: tudo, até traumatizá-lo, deixá-lo psicótico ou matá-lo. Faz sentindo, faz sentindo já que um filho é o 'nosso*' falo.

* Eu que ainda nem sou mãe, me solidarizando.


beijos

M. disse...

Oi Renato,

Você discorreu maravilhosamente sobre este filme. Não é uma história comum de uma mãe e seu filho, vai além da superação. A personagem da Cecília ROth é digna de admiração, pois é uma mulher forte. Antes de pensar sobre isto, vi que você assim a descreveu.

Gostei de sua ótica psicoanalítica dos fatos. Almodóvar vai no mais profundo de suas personagens. Estou curiosa para ver o novo filme, "La piel que habito". Um abraço.

Syl disse...

Ótima união do estudo subjetivo com a face realista deste soberbo diretor. Feito por uma pessoa que tem uma considerável percepção a respeito destes filmes delicados. Quer dizer que o autor deste texto não faleceu, caiu na toca do coelho ou foi levado por um furacão em Kansas?

Porque está imerso na MÃE não é desculpa para se esvaziar, como Lacan quer, e deixar de responder a fia do filmow que tanto tricota!!!

Desabafei, OK? Mantenha o bom trabalho. Estoy te mirando muy bién, sí?

Unknown disse...

Parece ser um bom filme :D

Juci Barros disse...

Fiquei bastante interessada.

Beijos.

Srtª Poulain disse...

oi adoro almodovar e esse é um dos filmes que sempre reassisto... muito consistente a sua análise, principalmente no que tange ao posicionamento da mãe, inicialmente, e a postura dessa mesma mulher ao perder seu filho e a sua busca pelo passado perdido, que tanto tentou ocultar do menino, e na ausência dele passa a incorporar os anseios como se pudesse sanar um pouco dos seus "erros do passado.

bom domingo

bjs

Luiz disse...

Estava doido para ler este post e adorei sua análise...Seus textos exigem um cuidado e tempo maior, já que não são circunstanciais. Um abraço.

P.s. Já ia me esquecendo de dizer que este é o meu Almodovar predileto!!!

Ilaine disse...

Oi, Renato!

Suas resenhas continuam ótimas, sempre muito profundas e abrangentes. E sim, fiquei curiosa. Beijo

Carolina disse...

Eu gosto muito de Almodovar, mas este filme eu não vi até hoje. Talvez encontre ali algumas portas que tenha que abrir, portas entreabertas, sei lá. Mas você me atiçou com suas percepções, como sempre ótimas e "suculentas" com a apresentação de cardápios variados de filmes.

Gostei Renato!
bjão

***Tenho te visto sempre no Face. Bom te ver por aqui tbém! rs

Daniel disse...

Hey amigo que forma absurdamente linda de escrever. Com toda certeza, quero ver este filme. Fiquei com pena da mãe, esse diretor é um pouco carrasco e realista rsrs mas mesmo assim adorei o post e quero ver o filme, tudo bem contigo?

abraços

Anônimo disse...

Achei interessante o contexto que abrange este filme e o fato de tocar em assuntos importantes relacionados à familia e aos seus pilares.
Gostei também da análise que vce fez, está perfeita.
Beijinho

Luna Blanca disse...

Muito interessante! Voltarei sempre.
Fica na paz.