Uma história que será contada em três tempos e com três diferentes cores. Lembram-se da trilogia das cores do diretor Krzysztof Kieslowski? Em outro dia eu havia escrito sobre a descoberta da criatividade para vivenciar a dor da perda de um ente querido. Um setting azul foi facilitador do reencontro de uma mulher com possibilidades de criação que lhe eram próprias. Hoje, o tema da criatividade será novamente trabalhado, mas desta vez, em tons de branco. Será por meio deles que lançaremos luz sobre o segundo filme da trilogia, cujo nome é A Igualdade é Branca | Trois Couleurs: Blanc – 1994 |.
Enquanto a primeira história contavá-nos sobre uma mulher que havia perdido o esposo e a filha em um acidente, esta segunda proposta apresenta um homem que temia perder sua esposa. Nas primeiras cenas do filme, Karol | Zbigniew Zamachowski | vivenciava a dor decorrente da fala de um outro em um tribunal de justiça. Nesta situação, sua esposa Dominique | Julie Delpy | reivindicava o direito pelo divórcio. Karol mostrou-se enfaticamente disposto a manter este laço conjugal. Contudo, quando sua esposa foi questionada sobre o motivo que a levava a querer desvincular-se dele, ela afirmou: “um dia o amei, hoje não o amo mais”. Deste modo, Karol passou a se relacionar com a perda da esposa e com o mundo a partir do vazio sucitado por este evento.
Nesta obra, Kieslowski novamente evoca a temática da perda de um ente querido assim como a ausência de sabor e prazer pela própria existência humana. Enquanto Karol tocava gaita próximo a uma estação de metrô na França, ele foi abordado por Mikolaj | Janusz Gajos |, um homem que reconheceu uma das canções entoadas. No encontro com ele foi possível haver uma experiência nova pautada na linguagem compartilhada entre ambos, foi um momento no qual Karol pôde expôr o seu mundo interno e comunicar a dor e o vazio que sentia.
Na ausência de trabalho e dinheiro, Karol ansiava por algo que fosse capaz de nortear a sua vida. Foi nesta ocasião que Mikolaj lhe informou que conhecia um homem que pagaria bem à alguma pessoa que fosse capaz de matá-lo. Diante disto, Karol questionou-lhe: “ele tem mulher, filhos, dinheiro... e quer morrer?” Para ele, que nesta situação possuía apenas uma mala e pouquíssimos bens, era difícil compreender este outro desconhecido. Ele não se propôs a realizar tal ato, mas solitou a Mikolaj que o ajudasse a retornar para Polônia. Tendo em vista que Karol possuía apenas uma mala, foi exatamente este o objeto aproveitado: ele a esvaziou e fechou-se dentro dela, convicto de que suportaria as próximas quatro horas de viagem.
Quando Karol arriscou retornar para o seu país, ele estava lidando com a sua própria capacidade em ser criativo e transformar uma situação terrificante em algo novo. “Enfim, em casa” – ele re-encontrou o seu lugar de origem e agora se arriscaria em uma busca pelos aspectos criativos do seu self que foram obscurecidos com a separação da esposa. Após rever o seu irmão, ele voltou a exercer sua atividade de cabelereiro, mas os seus projetos eram outros. Havia um roteiro inédito elaborado para os próximos meses e para tanto, ele se encontrou com Mikolaj afim de informá-lo que estaria disposto a realizar o homicídio.
É capaz que seja contraditório ou insano ou até mesmo de ordem absurda afirmar que na tentativa de matar um homem, um sujeito foi capaz de encontrar-se com aspectos criativos do self, mas foi exatamente o que aconteceu. O homem que desejava morrer era o próprio Mikolaj e ao mesmo tempo em que Karol se mostrou apto para matá-lo, ele também o questionou quanto à certeza deste propósito. Não sabemos quais causas eram desencadeadoras da desesperança de Mikolaj, mas diante da real desistência pela vida ele decidiu permitir-se uma oportunidade nova, e cumpriu sua promessa de pagamento.
Há uma cena em um campo coberto de neve que mostra dois homens capazes de explorar um setting no qual encontravam júbilo diante de uma oportunidade para brincar. A perspectiva do brincar adulto, segundo Donald Winnicott, envolve a capacidade de transformação e reconhecimento do valor da vida. É o encontro do mundo interno com a realidade externa em uma área intermediária chamada espaço transicional, no qual fenômenos transicionais ocorrem. Estes fenômenos envolvem um poder de criação. Assim como a criança é capaz de manipular um objeto real e lhe dar vida, o adulto pode usar a sua capacidade de abstração e imaginação para encontrar um novo significado para sua existência. Porém, se o mundo interno do sujeito encontrar-se em uma condição terrificante, o brincar não ocorre. As ansiedades limitam o gesto espontâneo e criador. Para Winnicott, o brincar é o tema por si só, e em uma terapia é preciso que seja resgatado esta capacidade para brincar, sendo fundamental que o paciente re-encontre a sua capacidade criativa.
Dentre algumas características que envolvem o brincar, destacamos anteriormente a criatividade e a imaginação. Pois bem, será válido nos atermos a estas. Karol elaborou um modo de reencontrar-se com a antiga esposa. Um testamento foi escrito no qual todos os seus bens seriam deixados a ela e uma morte fictícia seria realizada. Elaborar a própria morte pode parecer, no mínimo, uma ação delirante, mas neste contexto, envolvia um objetivo maior. Vejam, para Dominique era como se Karol não mais existisse, enquanto ele militava por um lugar junto ao desejo dela. Se ele estava simbólicamente morto para ela, então ele “se faria morto” na realidade para que ela pudesse objetivamente perceber como ele se sentia.
Enquanto falávamos sobre criação, outros dois nomes podem ser dados a esta atitude de Karol: vingança e prova de amor. Contudo, Karol não simplesmente queria mostrar o seu ódio para com a esposa e nem somente ilustrar o quanto ela era valiosa, ele ansiava, acima de tudo, que Dominique pudesse minimamente se projetar ao lugar dele, apercebendo-se da sensação de vazio que ele sentiu após o distanciamento entre os dois. Ele inventou um roteiro afim de que uma experiência de empatia pudesse ser presenciada. Somente por meio desta seria possível testificar a igualdade de um mesmo afeto.
Diante da dor de uma separação, Kieslowski mostrá-nos a capacidade criadora do sujeito, afirmando que, simbólicamente, a igualdade é branca no que diz respeito à horizontalidade da relação entre Karol e Dominique que foi pautada numa experiência de empatia, de testificação do valor e importância pelo lugar ocupado pelo outro.
Abraços à todos,
Renato Oliveira
15 comentários:
Das trilogia das cores, prefiro os outros dois. Porém, aprecio muito esse filme. Entendo que ele é muito acima da média sobre o que vemos pelo cinema hoje.
"Não Matarás" e "Não Amarás" acho obras espetaculares e imperdíveis do grande mestre do cinema europeu.
Abraços e parabéns pela ótima visão sobre o filme.
Olá, adoraria retornar aqui, como faço pra te segui. Não vi nenhuma opção. é blog ou site? deve ser site né. Okay, vou salvar em algum lugar. muito bom o trabalho. parabéns!
Da trilogia das cores, este é o meu favorito. Gosto muito de "A Liberdade é Azul", mas acho esse tão "insano" e até mesmo "fofo" que acabou me ganhando. Adoroa vingança de Karol contra sua esposa, acho bacana!
Ótimo texto, mesmo!
Abs.
Oi Renato, que felicidade tê-lo em meu cantinho.
Pois é Geminiano seu aniversário vai chegar logo. Possuidor do planeta Mercúrio, sendo a comunicação seu ponto principal.
Vc descobriu se é introvertido ou extrovertido?
Eu sou uma extrovertida, que estou me conhecendo mas acho que acesso a função superior da intuição e a inferior a sensação. Ainda estou na dúvida da sensação, mas estou trabalhando isso em terapia.
Mas os signos realmente dão um parâmetro e muitas vezes bate com a função dele como eu postei no blog.
Abraço Cynthia.
Oi Renato, tudo bem?
Gente, estamos sumidos demais heim? rsr
Menino, esse parece ser interessantíssimo assim como os tantos outros fantásticos indicados por vc né? rs
Abraços menino
Mais um filme interessante. É sempre bom passar por aqui e ver suas dicas. Eu gosto.
BeijooO*
Eu esperava mesmo ver este filme aqui. Realmente um excelente e impecável texto. Abraços.
Já vou procurar para baixar. As tuas análises são otimas.
abraços
Renato, como vai? Nossa, esqueci completamente deste filme. Já vi a triologia, mas não lembrava nada da Igualdade é Branca, talvez porque eu não tenha gostado tanto.
É difícil para o nosso ego, quando o outro quer ir, não nos ama mais (diferentemente da Liberdade é Azul, que o outro vai sem querer ir). Como reconstruir o nosso self? Já tão misturado com outro self. Uma saída inteligente seria mesmo o brincar, mas quem realmente faz isto? Somos tão egocêntricos que preferimos sofrer e nos vingar... VIVA O SER-HUMANO!! hehe
beijos
Oi Renato bom dia!
Esta trilogia realmente é um marco no cinema mundial. Me foi indicada por um desconhecido numa livraria. Quando comprei e assisti fiquei realmente maravilhada com os filmes e com a maestria de Zbigniew Zamachowski dirige eles.
Realmente foi uma linda homenagem a França e "A igualdade é Branca" , surpreendi mais que os outros dois e ainda tem o tempero do suspense que o torna muito empolgante.
Mas o meu preferido é " A Liberdade é Azul" pois me identifiquei muito com Julie. Assisti numa época de grandes perdas e quando tive o câncer de mama. Como os filmes me amparam este me ajudou a levantar. E ainda Juliette Binoche é uma das minha atrizes favoritas do cinema europeu.
Como sempre uma analise diferente e interessante da "A Igualdade é Branca", que me fornece elementos para melhor analisar o filme.
Adoro o blog e parabéns mais uma vez!
Uma linda terça-feira colorida!
Beijos,
Elaine Crespo
Cada dia que passo por aqui realmente acho que passo muito tempo dormindo e deveria ver mais filmes ou ler mais livros, mas, estou me contentando com as leituras que você faz dos filmes( ainda bem porque eu sou uma pessoa que se não dormir fico insuportável kkkk)
Beijos tenha uma linda semana.
Oie Sou Fábio Mariz do BLOG => Mariz.Moda , olhando aqui uns blogs, encontrei o seu, adorei assim que vi seu blog e já estou seguido, visite o nosso e seja um seguidor.
#ABRAÇOS
(http://www.marizmoda.blogspot.com)
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@FabioMarizReal & @MarizModa
Olá caríssimo e querido Renato!!! Como estás?
Saudades mil de ti! ;-) Estou correndo contra o tempo, pois estou cheia de trabalhos da faculdade para fazer e entregar no início de Junho... Do nada, apareceram uns trocentos trabalhos para fazer, é a Vida. E ainda tenho as provas finais, que também se aproximam... Por falar em Junho... Hummm... Está chegando o dia especial! Rsrs...
Amei seu comentário no meu blog. Me emociono ao ler as suas palavras de carinho e de interesse com a minha pessoa e com as coisas que escrevo. Fico mais feliz ainda por entender as minhas doideiras, as coisas que escrevo... Tenho muito que agradecer o seu total apoio! Te adoro muito, muito e muito!
Mais uma resenha mais que excepcional! Projeção e empatia, isto é muito interessante. Talvez uma relação mútua... Se eu projeto algo, logo, o ambiente é empático para que ocorra esta ação. Não sei se tem muito a ver com o filme, mas pensei sobre isso quando terminei de ler a sua resenha, enfim... Me corrija se eu estiver errada, por favor.
Compreendo o que se passa com o personagem Karol... Perdemos este tal "prazer e sabor" por aquilo que nos cerca e por nós mesmos a todo tempo. Só não sabemos mensurar do que se trata, mas é puramente a falta de entendimento das coisas que nos envolvem que causam o nosso próprio terror. Por isso muitos cometem coisas que não sabem explicar, tudo parte de um vazio tremendo que vem de toda uma história de vida do indivíduo.
Querido, espero que esteja tudo bem contigo. Que a sua família, os seus amigos, os seus estudos, a sua rotina, o seu potencial inovador e criativo, enfim, tudo mesmo, esteja na mais perfeita estabilidade. Logo responderei o seu e-mail, já li e fiquei muito feliz com a sua resposta!
Pois sim, tudo de bom pra ti! Pode usá-lo sempre, é "nosso"! E até mais ver!
Beijo grande,
Évelyn
Gosto muito da trilogia, muito bom seu post, fico esperando o azul que é meu preferido, pela atriz, pelo tema, pelas imagens!
Um abraço
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