25.7.11

Minha bela histérica

O cinema muitas vezes pode ser compreendido como um discurso suficientemente capaz de revelar segredos que, por outras vias, permaneceriam ocultos. O cinema é também um brincar de linguagem; é um discurso que pode construir e desconstruir coisas e pessoas. A análise de hoje será para alguns a história de um sonho de mudanças, e para outros, uma proposta de sedução. Conheceremos o vir-a-ser uma esplêndida e idealizada mulher conforme contá-nos o filme Minha bela dama | My Fair Lady – 1964 |, do diretor George Cukor.


Um dos primeiros destaques deste roteiro é a fala mal-falada, uma linguagem caricata e ao mesmo tempo restrita de uma excêntrica vendedora de flores. Eliza Doolittle | Audrey Hepburn | expressava-se a seu modo, enfática e engraçada para algumas pessoas, e “um insulto encarnado à língua inglesa” segundo as concepções do professor Henry Higgins | Rex Harrinson | – um venerado estudioso que afirmava ser possível conhecer muito sobre cada sujeito pelo seu sotaque e pela expressão do discurso. Em uma ocasião aparentemente comum ele anotava cada palavra proferida por Eliza, e diante dela, sem nenhum constrangimento, mostrava-se enjoado com aquele horroroso sotaque e fala grosseira, tanto que se questionava: “por que os ingleses não ensinam suas crianças a falar?”.

Diante dele, igualmente sem reservas, Eliza mostrava sua indignação frente aquele homem desconhecido que, sem autorização prévia, posicionou-se como um analista, para ela isto era absolutavelmente (sic) espantoso. Os gritos e sons estridentes emitidos por Eliza embalavam a metódica conversa do prof. Henry com o Colonel Pickering | Wilfrid Hyde-White | que igualmente intrigado com aquela mulher mostrava-se também muito entendido do assunto, como resultado de vários anos em pesquisas no campo da lingüística. O que resultou desta conversa? Uma suposição entre dois homens: a criação de uma bela dama – Henry acreditava que seria capaz, num período de seis meses, de transformar Eliza em uma esplêndida e refinada mulher. No entanto, nesta situação, o discurso expresso foi significado por Eliza que acompanhou atentamente cada frase dita.

É válido ressaltar que o prof. Henry não amarrou Eliza e levou-a a um “laboratório de experimentações”, a via foi oposta: Eliza, no dia seguinte dirigiu-se a residência deste nomeado mestre e apresentou-se a ele como aquela que estava disposta a mudar: “faça de mim uma Lady (em inglês: dama) e assim poderei trabalhar em uma loja de flores”.  Ela teve um posicionamento ativo em relação a seu desejo, no entanto, não sabia o que lhe estava destinado. A metodologia adotada seria descomunal, excêntrica e ao mesmo tempo bizarra, em determinadas circunstâncias. 


O desafio foi aceito pelo prof. Henry que, a partir de então, mostrou-se implicado na construção de uma esplêndida dama, que estaria destinada a apresentar-se a alta sociedade e “enganá-los”, pois segundo o prof. pessoa alguma seria capaz de reconhecer que aquela dama fora um dia uma mulher inculta que mal sabia o modo correto de falar. Neste projeto, o Colonel Pickering seria um auxiliar previamente identificado com a proposta. “É absolutamente impossível” – disse uma amiga de Henry. “Vocês parecem duas crianças brincando com uma boneca– era esta a fala da mãe do professor. Contudo, o que parecia risível, foi colocado em prática: o educar se consolidaria pela transmissão de hábitos de higiene pessoal, medidas de etiqueta e modificações no figurino. Nos dias de hoje seria um trabalho para uma equipe interdisciplinar, no mínimo: pedagogos, produtores de moda, terapeutas ocupacionais, entre outros. No contexto, entretanto, toda esta demanda foi assumida por um único homem. O propósito principal estava claramente estabelecido: a dimensão da fala – a linguagem seria transformada, era preciso desconstruir aquele sotaque e aprender a falar certo, independente de custos ou dificuldades.


Eliza tornou-se, numa visão generalizada, um mero objeto de estudo, um rato em laboratório. Nas dependências da residência do prof. Henry, ela treinava repetidamente a expressão do a-e-i-o-u afim de, num segundo momento, avançar para a expressão de enunciados. Dentre tais, esta rima tornou-se célebre: “the rain in Spain, stays mainly in the plain”. A ordem firmada era: falar. E falar daquilo que tão pouco sabia; repetir estas falas a fim de que as mesmas não se tornassem apenas inteligíveis ou memorizadas, mas perfeitamente expressas. Não poderia haver furo, a linguagem deveria ser perfeita, sem erro, íntegra, magistral. Para alguns, a conclusão seria: “ambos são loucos, o professor delirava e a sua cobaia também”. E vocês estão certos. Nos referimos aqui a um delírio generalizado que também está presente na neurose, segundo Lacan, e que se evidencia a partir da posição subjetiva do sujeito em relação ao desejo do outro.


O prof. Henry gozava com a glória de sua criação. Há uma lógica implícita na tentativa de criar a perfeita dama que é própria do neurótico obsessivo, o qual não admite a falta no outro, e especificamente, na mulher. O obsessivo possui uma fantasia de ser capaz de tamponar qualquer resquício ou traço de imperfeição no feminino, e ao “fazê-la brilhar” ele está deste modo sustentando esta fantasia que o mantém em uma suposta posição fálica. A sustentação da fantasia obsessiva se mostra pela dificuldade do sujeito em reconhecer a falta em si próprio, considerarando-se fálico e portador daquilo que o outro precisa. Henry mostrava-se perplexo ao indagar: “Por que não podem as mulheres com os homens se parecer?” – ele se colocava no discurso como um modelo de perfeição. O discurso do obsessivo, o seu modo de enunciação, tende a ser muito bem organizado. A repetição empregada naqueles métodos também poderia ser vista na relação de Henry com o saber, pois para sustentar a posição de agente de conhecimento foi necessário à ele uma total entrega e plena dedicação nos muitos anos em estudos. O seu desejo em conhecer todas as línguas parece-nos, de modo singular, uma formação de compromisso (sintoma) a fim de negar uma falta. Tanto que em relação ao feminino, ele afirmava: “prefiro abrir as portas da Santa Aquisição do que permitir uma mulher em minha vida”.


Em termos lacanianos, nos referimos aqui ao tolo do significante, pois o obsessivo é aquele que está na Linguagem, é dividido e barrado pela castração, mas visa o tempo todo burlar a Lei, e acredita que na comunicação o entendimento é absoluto. Ao mesmo tempo em que aquele professor reconhecia não ser fálico para completar a falta na mulher, ele se colocava nesta condição, e sentiu-se deslumbrado ao deparar-se com o resultado de seus métodos. No entanto, ele admitia: “os tolos não conhecem as suas próprias técnicas”.


Pois bem, Eliza foi transformada em uma bela dama e a história não termina com este fato. Pelo contrário, a construção da mulher magistral será desencadeador de um outro conflito: o prof. Henry não sabia quanto a histérica que encontrava-se diante dele. E qual uso ela faria desta posição em que foi colocada? Eliza, enquanto uma “boa histérica” daría-nos uma ótima análise, que talvez possa ser tema para outra ocasião. O filme My fair Lady foi baseado na peça teatral de George Bernard Shaw chamada Pigmalião e, que por sua vez, é pautada no Mito de Pigmaleão – aquele rei e escultor de Chipre que apaixonou-se pela estátua que havia criado enquanto reprodução da mulher ideal. Entre fantasias, mitos e tolices, encerramos por aqui “abolutavelmente” bem, e preparados para construções futuras.

Abraços à todos!

Renato Oliveira

16 comentários:

M. disse...

Renato,

Esse filme é o preferido de muita gente. E com o encanto da Audrey Hepburn no papel desta adorável histérica transformada. Análise maravilhosa do filme. Um beijão e ótima semana!

renatocinema disse...

O seu primeiro parágrafo, que aborda o cinema como linguagem é perfeito.

Audrey é a deusa do cinema, em minha visão. Fazia a junção de beleza, talento, fragilidade, emoção.......perfeição.

Esse filme é um ícone do cinema. Uma aula de cinema.

PARABÉNS

Luz disse...

Excelente, Renato!!

Tantas coisas bacanas vc coloca aqui, além do mais sou fã de Audrey-maravilhosa!
Adoro cinema, adoro análises, e me interesso tb mto por psicoiguística.

Enqto estava lendo aqui e passei os olhos sobre a frase: "a linguagem deveria ser perfeita, sem erro, íntegra, magistral", ri comigo mesma: perfeita como a dele!!
E existe linguagem perfeita (?) rss. Que "pretensão" a do obsessivo.
Sabe que me vem á cabeça uma espécie de "afogamento" qdo se trata da estrutura neurótica obsessiva...

A idéia de análise de Eliza não é nada mal, adoraria lê-la.
:)


Abç

Alan Raspante disse...

Ah, adoro Audrey Hepburn. Portanto, gosto de quando você analisa algum filme com a atriz. Percebe-se que também é fã, não é?

Ótima análise. Realmente, a briga entre o Professor e Eliza são o melhor do filme e desencadeiam muitas questões. Não tinha me tocado sobre a cena em que Eliza procura o professor, a cena em que ela toma a atitude. Não sei, mas de alguma forma, mudou a imagem que eu tinha de Eliza. Ela era usada pelo Professor, mas tinha total consciência disso. Só eu que tinha enxergado de outra forma! Rs!

Abs :)

Clube dos Novos Autores - CNA disse...

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abraços

Elaine Crespo disse...

Olá Renato!

Realmente me surpreendo ao ler teus posts, o quanto você consegue chegar ao personagem e analisar-lo perfeitamente, usando a psicanálise(nem sei se este é o termo)e me fazer entender-lo melhor e consequentemente o filme.

Sou fã incondicional de Audrey hepburne e este filme é um clássico que qualquer amante do cinema como eu dará nota dez. O filme nos traz o encanto da aristocracia dos anos 30. A fotografia, os cenários e os figurinos, tudo é impecável. Não à toa levou 8 Oscar, incluindo melhor filme e melhor ator para Rex Harrison. Ele é divertido e encantador e um dos grandes musicais da história do cinema.

Parabéns pela postagem e cada vez mais é um prazer vir aqui.

Uma linda tarde!

Beijos,
Elaine Crespo

Anônimo disse...

Audrey Hepburn é MARAVILHOSA!
E a sua analise nos da vontade de assistir imediatamente o bendito do filme, e se ja assiti, vejo de novo!!
bjosssss

Francys Oliva disse...

Bom nem posso falar que não gosto deste filme, pois, já assistir varias vezes e cada vez com uma visão diferente. Hoje deixando a parte romântica de lado, me pergunto porque é tão difícil para as pessoas aceitarem as outras como elas realmente são, porque sempre procura mudar(a roupa, modo de falar, agir até mesmo de pensar) loucura de quem quer mudar? Ou louco aquele que não se aceita como é? Realmente não sei te dizer, mas, este filme ele é tão presente para os tempos atuais que me impressiona algumas vezes.(aff, acho que falei demais). Beijos.

Anônimo disse...

Olá Renato, sei que Audrey Hepburn é uma fera. Não assisti esse filme, acho que é meu ascendente aquariana que vive olhando o Futuro e muitas vezes esquece dos filmes antigos. Abraço Cynthia

Dil Santos disse...

Oi Renato, tudo bem?
Menino, eu fico besta com cada achado teu. Uns filmes ótimos que vc indica, com conteúdo, fica mais interessante ainda, depois de lermos teus textos, rs.
Ai menino, que bom q gostou e realmente o processo é difícil por demais as vezes.
Abraços menino

e-Chaine disse...

Sim. Pigmaleão: por que não se apaixonar por uma utopia egocêntrica e narcisista?

Interessante, seu texto.

Abração.

Évelyn Smith disse...

Olá caríssimo e querido Renato!!! Saudades de ti! ;-)

Como a sua Vida está?

Querido... Tenho uma supresa pra você em meu blog, eu o atualizei agora. Fiz um texto pensando em você e em um outro amigo também, uma homenagem! Leia e depois me diga se você se encontrou no texto... Fiz com muito carinho! =)

Nossa, era o que eu estava precisando ler neste momento! DIRCURSO! Embora este filme me lembou aquela nossa abordagem que tanto "amamos" (não posso dizer o meu apaelido carinhoso em público).

Renato, que resenha maravilhosa! Você soube destrinchar algo que talvez não pareça tão evidente... O lado neurótico obsessivo do Henry: "reconhecer a falta em si próprio, considerarando-se fálico e portador daquilo que o outro precisa". Somando também aí a falta de uma mulher, o que se explica este ideal-concreto pela perfeição no sexo oposto.

Nossa, Renato! Que texto é aquele que me mandou?? Oras... Fiquei com uma dúvida imensa: será que aquele vídeo que me mandou por e-mail foi inspirado neste texto ou vice-versa? Você sabe de qual vídeo estou falando, né... Rsrs... Na verdade, acredito que foi vice-versa, pois o texto que você me mandou é bem recente.

"Portanto você deve ter sempre em mente que um caminho não é mais do que um caminho."

Disse tudo! Rsrs...

E as suas aulas, quando começam novamente? A minha é na quarta. Aproveitei bem esse finalzinho de férias, li muita coisa nova e vi vários filmes. Depois me conte sobre o que tem feito por e-mail.

Nossa, estou escutando a mesma música 20 vezes, acredita?? Estou meio cismada com as coisas hoje... A música me faz pensar nas minhas cismas Vitais.

Enfim, é isso!

Tudo de bom pra você e até mais ver! Te adoro!

Beijo grande,
Évelyn

Évelyn Smith disse...

OBS.: Ahh, Renato! Fiquei curiosa agora pra saber a posição final de Eliza... A sua outra resenha vai ser continuação desta?? Se não, me mande o desfecho em particular?? Hehe...
Beijo! =)

Syl disse...

Deliciosas palavras, como sempre!

ANTONIO NAHUD disse...

Ótimo post!
Olá, Renato, venha participar no meu blog de um despretensioso teste de conhecimentos cinematográficos. Começo com NICHOLAS RAY (Juventude Transviada). O vencedor leva DVDs clássicos.
Abração,

O Falcão Maltês

Daniel disse...

Hey meu amigo Renato!
Parabéns, mais uma produçao extraordinária tratando-se da transformação humana. Isso só prova minha tese de que penso daquela que diz "quando há vontade, há mudança".
Se uma pessoa deseja mudar, seja no hábito de se vestir, de falar ou de agir, é possível a construção de um mundo melhor. E quem diria, se o mundo gostasse mais de ajudar. Se a cultura fosse propicia a essa mudança. E mais, se fosse ensinado a nossas crianças. Que mundo azul teríamos. Que mundo azul.

Adorei seu texto como sempre,
és um belo escritor e crítico.

Dan