14.8.11

Elas não estão curadas

A resenha de hoje será composta por um ácido sabor de gazpacho e poderá provocar em algumas pessoas um descomunal ataque dos nervos, de euforia, ou de riso. Será uma história inusitada e ao mesmo tempo, desorientada. Simetria, mansidão e coerência plena no discurso são atributos que passarão longe daqui. Entraremos, aos poucos, em um universo característicamente configurado e pintado com cores bem fortes. Neste mundo, o masculino será apenas um pano de fundo, pois mais uma vez as mulheres irão reinar, desta vez numa hilariante catástrofe chamada Mulheres a beira de um ataque dos nervos | Mujeres al borde de un ataque de niervos – 1988 |. 


As protagonistas desta história serão mulheres não-curadas que foram minuciosamente criadas pelo diretor Pedro Almodóvar para representar no discurso feminino o lugar do desejo do outro. Dentre as dita-cujas principais, começaremos por Pepa | Carmen Maura | – aquela que só queria dormir. Frustrada, irritada, indignada e tantas outras rimas quanto forem possíveis poderão complementar a descrição do estado de ânimo desta mulher. Imaginem vocês que havia um homem em questão. Pois bem, Pepa denunciava um lugar de inquietação após ter sido supostamente esquecida por Iván | Fernando Guillén |, o seu atual ex-amante, diríamos deste modo. E ela, enquanto a atual ex-amante dele, reivindicava um esclarecimento: ela queria fazer o outro falar do desejo dele a fim de minimamente compreendê-lo. As chamadas telefônicas eram insatisfatórias, ela não conseguia contatá-lo, apesar de toda sua insistência. E sendo assim, para acalmá-la, os soníferos foram requisitados, porque Pepa reconhecia que precisava descansar os nervos


Assim como existia no roteiro uma atual ex-amante, nele também encontramos uma atual ex-mulher, mas que, segundo nos parece, declarava-se curada após um período de internação; parecía-nos que Lucía | Julieta Serrano | estava bem e suficientemente implicada em suas tentativas de parecer mais jovem do que de fato era. As perucas e sílios postiços eram facilitadores deste propósito e lhe davam uma excêntrica roupagem. Pois bem, curada ou não, Lucía não admitia que Iván recebesse bilhetes da amante, ainda que tratasse de um caso acabado. Ela jogou às traças o sucinto bilhete deixado por Pepa e envolveu-se numa frenética procura pelo paradeiro deste homem. Apesar de todas as divergências aparentes havia algo em comum entre Pepa e Lucía: ambas lidavam com a falta-a-ser orientadas momentaneamente por um mesmo objeto, e assim, estavam ansiosas para saber onde Iván se encontrava.

Pepa, no entanto, não se dizia curada e após preparar um cazpacho com soníferos e reunir os pertences do ex-amante, decidiu que daria fim a todos aqueles objetos que pertenciam a ele pois dizia “estou cansada de ser boa”. Sendo assim, por que não livrar-se também do telefone? Afinal, suas insistentes tentativas de contatar Iván haviam se concretizado sem êxito. Para ela era “mais fácil aprender de mecânica do que de psicologia masculina”. Percebam que há uma aparente desordem no apartamento de Pepa, uma tendência ao caos que também se evidenciava em sua fala. O discurso que lhe era corrente ressaltava um homem que ao mesmo tempo era rejeitado – ao ser destituído de um lugar fálico – e desejado a partir de sua insistência em localizá-lo.     


As circunstâncias, ou as forças do destino, não permitiriam que Pepa desencadeasse um ataque dos nervos solitariamente. Visitas inesperadas chegariam aos poucos e movimentariam esta já considerável abalada situação. Como se não bastasse sua tórrida crise de desamor em relação a Iván, ela foi surpreendida pela chegada de Candela | María Barranco |, uma amiga que eufóricamente suplicava-lhe por ajuda, pois dizia estar envolvida em temerosos apuros. E justamente nesta ocasião, Carlos | Antonio Banderas | e Marisa | Rossy de Palma |, um jovem casal, foi indicado para visitar o apartamento de Pepa, a fim de comprá-lo. Deste modo, eles tornaram-se automaticamente participantes desta não planejada confusão. No entanto, maiores surpresas ainda estariam por vir, afinal, duas mulheres, cada uma posicionada de um modo subjetivo em relação a falta, militariam por um Saber, que certamente só poderia  ser obtido no encontro com um único homem. Pepa e Lucía não sabiam o paradeiro de Iván, entretanto, tinham por suposição que este viajaria nos próximos dias, e muito provavelmente, acompanhado. E a questão seria: para onde e com quem?


Toda esta confusão e dicotomia de hipóteses não seria, de fato, facilmente solucionável. Afinal, o que Pepa e Lucía sabiam uma da outra? E qual seria o atual lugar delas no desejo de Iván? Com muitíssimo bom humor, Almodóvar acentua o lugar da mulher-detetive, aquela que, independente das circunstâncias, mostra-se implicada em seguir aquele táxi e envolver-se em quaisquer confusões possíveis com o intuito de obter o objeto que procura.


Os infortúnios e desencontros na fala destas mulheres nos levam a pensar sobre a relação da histérica com o desejo do outro. A histérica possui uma grande demanda de amor que se mostra, muitas vezes, a partir de sua condição de militar pelo ter, pelo alcance do objeto de desejo. A mulher-detetive a qual me referia é aquela implicada no desejo pelo saber, a qual lida com o mundo a partir de uma falta inaugural, que é a constatação de não ser completa – de não saber e não ter tudo. Esta constatação também faz com que a histérica tendencie a apontar a falta no outro, de modo que “ele é um covarde” ou “ele não tem solução” são discursos comuns à esta estrutura, os quais localizam o masculino como um ser igualmente marcado pela falta, em outras palavras, imperfeito.


Diante da afirmação “não se pode ter tudo”, Pepa reagia: “concordo”. Lidar com a falta-a-ser é um movimento que visa, de algum modo reconhecer o desejo e tentar tamponá-lo de alguma maneira, é buscar uma completude que por sua vez não existe, mas que será constantemente almejada. O neurótico é exatamente este que, reconhece a existência de uma lei – “não é possível ter tudo, há um limite, um interdito” – mas tenta burlá-la o tempo todo. Ataques dos nervos podem ser sintomas histéricos, mas como foi visto, não orientam o sujeito a uma posição de fracasso, mas de constante militância. “Não estou curada” – reconhece Lucía – ser não-curado é ser faltante, e logo, desejoso. É buscar um meio de colocar o desejo no mundo e responsabilizar-se por este. Alguns poderiam recomendar: “seja um não-curado você também”. Em todo caso, cabe a cada um encontrar-se com seu próprio ataque dos nervos e recriá-lo mediante a singularidade de seu próprio estilo.

Abraços, queridos!

Renato Oliveira

17 comentários:

renatocinema disse...

Sempre tenho ataque de nervos....kkk

Quem esta curado?

Adoro os personagens de Almodóvar. Adoro a construção de seus nervos e suas insanidades.

Gisa disse...

Adoro o filme e o teu comentário o coloriu mais ainda!
Um grande bj e curada, nunca!

M. disse...

Estar curado está difícil! Mas estas personagens de Almodóvar são o que há quanto à exposição de suas fragilidades. Ele é um gênio! E o seu texto é tudo de bom.

Dil Santos disse...

Oi Renato, tudo bem?
Menino, é a cara dele construir personagens nessa linha ñ é? rsrs
Ai menino, fiquei super feliz com teu comentário, brigado de coração mesmo. Abraços

Valéria lima disse...

Parece ser bom, irei ver.

BeijooO*

Alan Raspante disse...

Preciso ver o quanto antes =D

Anônimo disse...

Almodóvar é um mestre, MAS ... esse é o filme dentre toda sua filmografia que menos me agrada!

ANTONIO NAHUD disse...

Esse filme é hilário.... Grande Carmen Maura!
Cumprimentos cinéfilos!

O Falcão Maltês

Ábia Costa disse...

Oi amoooor....como estás?
Nossa fazia um bom tempo que eu não vinha aqui, faculdade, trabalho e militância me consumiram muito ultimamente. Mas como sempre suas análises são perfeitas, não sei se te falei que trabalho em um projeto na UFPA, que visa ensinar produção textual e discussão identitária, tendo como ferramenta pedagógica o cinema, com alunos de ensino médio em escolas publicas, pois é...tenho utilizado bastante de suas análises para discutir alguns filmes com meus alunos...

mil bjinhus, saudades de vc meu amigo =*

Évelyn Smith disse...

Olá caríssimo e querido Renato!

Mais uma resenha excepcional. Esta relação que você formulou ficou magnífica. O fato de ser um não-curado implica numa relação de negar a sua existência e negando, assim, os seus desejos.

Estou numa correria imensa, querido. Tenho uma pilha de textos pra poder ler e infelizmente deixei acumular... Fora os trabalhos, nem sei por onde começar... Enfim, acredito que eu também "Não estou curada"... Rsrs...

Tudo de bom pra ti e até mais ver. Adoro-te imensamente.

Beijo grande,
Évelyn

Carlos Natálio disse...

Excelente ideia para um blog. Parabéns!Saudações de Portugal!

Marcelo Castro Moraes disse...

Valeu por ter gostado do meu blog meu amigo, sera sempre bem vindo.
Abraços

Tati disse...

Que honra você no meu cantinho. Te linkei porque queria sempre estar por dentro das atualizações, mas fiquei muito feliz com a sua visita. Sou muito fã do Almódovar, ele sempre tira o meu fôlego. Esse eu nunca vi, mas está na lista!!
Beijo enorme
Tati

Thiago Priess Valiati disse...

Não vi esse ainda. Mas quero ver. Sua resenha me deixou com vontade!
Obrigado por acompanhar o Cult Fiction e pelo comentário, já te adicionei na minha lista de blogs (:
Abraços!

Nayara Borato disse...

Olá, desculpe invadir seu espaço assim sem avisar. Meu nome é Nayara e cheguei até vc através do Blog Viva e deixe viver. Bom, tanta ousadia minha é para convidar vc pra seguir um blog do meu amigo Fabrício, que eu acho super interessante, a Narroterapia. Sabe como é, né? Quem escreve precisa de outro alguém do outro lado. Além disso, sinceramente gostei do seu comentário e do comentário de outras pessoas. A Narroterapia está se aprimorando, e com os comentários sinceros podemos nos nortear melhor. Divulgar não é tb nenhuma heresia, haja vista que no meio literário isso faz diferença na distribuição de um livro. Muitos autores divulgam seu trabalho até na televisão. Escrever é possível, divulgar é preciso! (rs) Dei uma linda no seu texto, vou continuar passando por aqui...rs





Narroterapia:

Uma terapia pra quem gosta de escrever. Assim é a narroterapia. São narrativas de fatos e sentimentos. Palavras sem nome, tímidas, nunca saíram de dentro, sempre morreram na garganta. Palavras com almas de puta que pelo menos enrubescem como as prostitutas de Doistoéviski, certamente um alívio para o pensamento, o mais arisco dos animais.



Espero que vc aceite meu convite e siga meu blog, será um prazer ver seu rosto ali.

http://narroterapia.blogspot.com/

ANTONIO NAHUD disse...

Amigo, venha participar do nosso novo teste cinematográfico. Katharine Hepburn é o tema.

O Falcão Maltês

Rodrigo Mendes disse...

Seu texto está ótimo Renato..vou tricotar aqui..."amo este filme, fia" Rs!

O ápice da criatividade viva em cores do grande Pedro Almodóvar. Ninguém detém este espanhol.

Abraços.