20.12.11

Arte, linguagem e ilusão

Ele me ama.
Ele me ama, não.
Afirmativas, negações, paradoxos e antagonismos: variações da linguagem. Modos de expressar o que desejamos na suposição de que seremos compreendidos. Algum entendimento sempre ocorrerá, ou o seu contrário. E existem aqueles que defendem que não basta dizer, mas sim a maneira como será dito. O formato da frase diz respeito ao lugar em que cada palavra ocupará em relação a outra palavra, desencadeando uma significação, ao final da frase. Ao final deste filme, os significados podem ser os mais diferentes possíveis. Trata-se de uma obra improvável, até mesmo para bons entendedores. O diretor Neil Labute apostou que seria uma boa proposta utilizar as variações da linguagem, logo, saberemos – ou não – se ele conseguiu se fazer entendido por meio do filme “Amor, arte e ilusão” | The shape of things – 2003 |.


Nós compreendemos. Ela, entretanto, não compreendia. A incompreensível Evelyn Ann Thompson | Rachel Weisz | encontrava-se em um museu implicada em uma curiosa tarefa de fotografar uma estátua. Ela pretendia ter registro daquele monumento e nele desenhar um pênis para que todos pudessem constatar sua afirmação de que aquela obra era falsa. Não se tratava de um vandalismo, nem mesmo de pornografia, mas sim “um tipo de declaração”. Lógico que ela não seria entendida, principalmente pelos funcionários do local. “Você não pode fazer isto!” – disse-lhe Adam Sorenson | Paulo Rudd |, responsável por aquele setor. A resposta de Evelyn foi enfática: “Não pode. Por isto tentei, para ver o que acontece”. Nos próximos minutos parece que estaremos diante de uma revolucionista, de uma jovem que tentará convencer um outro de que suas ideologias são reais e praticáveis. Enquanto Adam tentava persuadi-la a afastar-se daquela exposição de arte, eles chegaram a conclusão de que já se conheciam, tendo em vista que Adam trabalhava em uma locadora e em uma ocasião ele a ajudou a encontrar o filme “O Retrato de Dorian Gray”.


Imaginem vocês que Adam não conseguiu persuadi-la. Logo, sua intenção nem mais era esta. Ele descobriu que ela fazia Mestrado em Arte: Teoria Técnica e Aplicada, e estudar aquelas obras parecia-lhe parte de um grande projeto. Ele foi envolvido pela fala daquela mulher e por sua capacidade de encantamento sob aquela excêntrica roupagem. O que Evelyn achou dele? – “você é bonito, mas deveria fazer algo no seu cabelo”. Em questão de dias, eles se reencontraram. Algo foi feito no cabelo de Adam – um novo corte e penteado – assim como suas roupas estavam um pouco mais descoladas. Foi nesta explêndida data que Adam oficialmente apresentou Evelyn como sua namorada à seus amigos Jenny | Gretchen Mol | e Philip | Frederick Weller |. Inevitavelmente, eles tiveram um certo estranhamento. Na realidade, Evelyn parecia “moderninha demais” para um jovem como Adam e neste primeiro momento observamos uma desuposição de saber por parte de Jenny e Philip ao não acreditarem que, de fato, Adam estava engajado com uma mulher como ela. 


Os pressuspostos dos amigos de Adam podem fazer sentido, mas ao mesmo tempo eram contraditórios. Afinal, eles nada sabiam sobre Evelyn. Adam sabia muito pouco, mas a sua grande incógnita, de fato, era outra: “por que você gosta de mim?” – é como se ele se considerasse desmerecedor de tal mérito, o que nos leva a pensar que este lugar junto ao feminino – de grande merecimento – deveria ser mantido, independente de seu custo. E foi exatamente o que sucedeu. Adam tornou-se militante em um alucinatório processo de fazer-ser o falo de Evelyn – aquele que supostamente a completaria e a faria gozar de maneira inimaginável. Entretanto, para este fim aquele “Adam inicial” não estava no formato adequado, segundo seus próprios preceitos, de modo que seria necessário dar uma nova forma àquela peça. 


É válido considerar que em momento algum lhe foi dito: “você precisa mudar!” – mas o encontro com o outro da linguagem – Evelyn – fez com que Adam atentasse aquilo que causava incômodo em sua auto imagem, de maneira que aos poucos ele se implicou em constantes medidas de transformação. De início, um novo corte de cabelo, perder um pouco de peso e substituir aquela armação ultrapassada por lentes de contato. Em seguida, Adam submeteu-se a uma cirurgia plástica no nariz e trocou sua velha e despojada jaqueta marrom por uma Tommy Hilfiger jacket. Estes singelos procedimentos eram notórios, lógico, de maneira que alguém sentiu-se de certo modo incomodado com este “quase-novo” Adam. As reações de Philip são dignas de nota – “mas o que ela está fazendo com você?” – Adam mostrava-se enfático em seu ponto de vista: ela é incrível!” e “parece que ela sabia”. O sujeito colocado no discurso era Evelyn, evidentemente, a qual ocupava um importante lugar no enunciado. Mas quem era Evelyn Ann Thompson? O que a fazia ser seguidamente apresentada no discurso? O que ela fez com Adam? 


A minha hipótese é que ela fez muito pouca coisa em relação a ele e ao mesmo tempo fez tudo. E quando digo “pouca” não é com uma denotação pejorativa, mas sim para afirmar que Adam fez tudo sozinho! Ele tornou-se aos poucos cativo ao discurso daquela jovem e implicou-se num processo de transformação. Nabute convidá-nos a pensarmos sobre o formato das coisas (The shape of things, no original) e a respeito dos efeitos que o discurso do outro é capaz de provocar. Ao falar, o sujeito diz mais do que aquilo que supõe. A fala dirige-se à um outro e o próprio ser falante não possui um controle absoluto daquilo que enuncia, ele pode surpreender-se com aquilo que não era para ser dito e com aquilo que o outro irá compreender. Temos diante de nós aquela incômoda experiência de dizer algo e ser compreendido de modo completamente oposto ao que estava previsto. Se cada significante tivesse um significado fixo, próprio e absoluto é capaz que a complicação fosse menor, mas como não é assim – o significante é um som esvaziado de qualquer significado – temos diante de nós o impossível da comunicação plena. 


A fala pode, entretanto, ser uma ferramenta de manipulação e diria, além do mais, que a fala é uma arte capaz de criar coisas em contextos nos quais elas não existem e modificar peças, desde que estas sejam minimamente maleáveis. A pele e a vontade humana são maleáveis e isto deve-se, entre outras hipóteses, à elevada capacidade de crença do sujeito. O ser à que me refiro é aquele que crê, sendo crédulo ao discurso do outro e ao próprio significante. No entanto, não há grandes escapatórias uma vez que todos estamos envolvidos em uma rede simbólica e sujeitos a discursos grupais. Assim sendo, corremos o risco de nos deixar seduzir. Adam foi crédulo e cativo ao seguinte discurso: “você é bonito; deveria fazer algo no seu cabelo” – ele foi seduzido por esta possibilidade de reversão. A sedução via linguagem é um meio de convencimento e pode causar efeitos adversos, é útil e aplicável para que peças sejam transformadas e ganhem formatos novos. Contudo pode ser igualmente terrificante e nociva, afinal não nos parece fato inédito a constatação de que pessoas deixam-se enganar. Ele é uma fraude. Ele é uma fraude, não.

Renato Oliveira

20 comentários:

renatocinema disse...

Renato texto profundo e relevante.

Gostei muito da ideia apresentada sobre esse filme.

Não sei se eu estou preparado para ele. Mas, talvez, esteja depois de merecidas férias.

Não acredito em mudança de fora para dentro. Será que vou gostar do filme?

abs

M. disse...

Renato,

Gostei muito do que você escreveu. Porem nunca vi a esta película. Fica a dica! Trata-se de um filme com um algo a mais.

Um abraço e Happy Christmas!

Anônimo disse...

Olá Renato, a atriz do filme Rachel é pisciana. Não assisti esse filme, mas quando ele proíbe sobre o órgão na estátua acho que ali ele revelou seu lado masculino castrado? Talvez sua Anima seja muito clara e possui dificuldade com o Animus. Realmente precisaria assistir o filme pra ter uma visão melhor. Essa atriz fez o filme O Jardineiro Fiel, onde ela tb mantém uma posição da atual mulher arquetípica dessa época. Sobre meu post no blog, lembrando que Gret faleceu em 1995, fiquei feliz por ter gostado. Sempre colocarei a visão de Jung no blog. É tão fascinante essa ligação com a Astrologia que minha Alma fica imensamente feliz. Bom Natal, abraço Cynthia.

Valéria lima disse...

Acho bem mais interessante ler seu texto sobre o filme do que propriamente assisti-lo. Você escreve lindamente a respeito.

BeijooO*

Sergio disse...

Adoro vir aqui, ler seus textos e suas boas sugestões da sétima arte! Obrigado pelo carinho e tenha um Natal maravilhoso!!!

Sergio disse...

Adoro vir aqui, ler seus textos e suas boas sugestões da sétima arte! Obrigado pelo carinho e tenha um Natal maravilhoso!!!

Francy´s disse...

não sei o que lhe dizer, pois eu assisti este filme e achei interessante a postura da artista e do rapaz que deixou se moldar exteriormente, mas perguntou eu porque será que ele deixou fazer isto? Porque em geral uma pessoa so deixa fazer isto quando deseja algo diferente para si(não acha?).
Bom desejo a você boas festas e muitas felicidades.
bjs

Évelyn Smith disse...

Olá caríssimo e querido Renato!

O meu irmão consegui arrumar a internet daqui de casa, mas é por pouco tempo... Por isso li rapidamente o seu texto de hoje, infelizmente tive que fazer aquela leitura dinâmica com medo da conexão cair novamente e eu não poder comentar... Rsrs... Neurose, enfim.

Achei genial a sua explicação sobre a linguagem de acordo com o filme. Na verdade o mesmo serviu de um grande embasamento pra nossa Vida, pra nossa linguagem no dia a dia: "Ao falar, o sujeito diz mais do que aquilo que supõe. A fala dirige-se à um outro e o próprio ser falante não possui um controle absoluto daquilo que enuncia, ele pode surpreender-se com aquilo que não era para ser dito e com aquilo que o outro irá compreender." É exatamente isso que nos ocorre a todo instante que entramos em contato com o outro, pois através deste contato surge a linguagem e inevitavelmente surge a contradição do entendimento... E quem é bem compreendido, ainda mais nos dias de hoje?? Hum...

Amei o seu comentário em meu blog. Percebo que você sim consegue entender a minha linguagem... Rsrs... Depois me conte sobre as suas "andanças" por SP.

Pois é, era a Elenita! A criatura é doutora em Linguística e, por sinal, o contexto da sua resenha tem tudo a ver com aquilo que ela se propôs - ou não - a entender. Na verdade ela entende muito bem da linguagem dos bêbados, principalmente a dela mesma... Aquela linguagem "se joga e que se dane o resto". Era examente isso que ela estava fazendo no pub! Haha... No final da noite, eu a encontrei sozinha e com uma feição meio "o que aconteceu?" na porta do mencionado local... E eu ainda a vi indo embora descalça e novamente sozinha... É esta a visão da sociedade de amigos de tenho. Na hora da festa estão todos ali, rindo com você (e até de você). E depois, que o "encanto" se acaba, é cada um por si. Lamentável... Por isso o meu ciclo social tem uma Seleção Natural super apurada! Nem eu mesma me dou conta às vezes que não deu certo uma amizade aqui e outra ali... Simplesmente não dá certo pela própria amizade em si e nem pela pessoa. Sem bem que existem "pessoinhas" por aí quem nem no estágio da Seleção Natural elas passam, viu... Rsrs...

Bom, é isso. Depois conversamos mais por e-mail! Espero que tenha gostado do torpedo que te mandei hoje/ontem à noite.

Tudo de bom pra ti! Saudades!!!

Beijão =)

Unknown disse...

Texto muito interessante.
E bom blog, também.

Chris disse...

Nossa, que massa teu blog. Gostei. Adoro cinema. Minha monografia é sobre o Titanic. *-* Abraços

http://chrisbrandgouv.blogspot.com/

Anônimo disse...

Oi Renato, adorei essa parte: que somos responsáveis pela nossa felicidade e pela oportuna ocasião de estarmos no mundo. Eu agradeço sua amizade e espero que 2012 te traga sucesso, saúde e paz. Abraço Cynthia.

Évelyn Smith disse...

Caríssimo, que lindo o seu texto! Até me emocionei...

Desejo tudo o que há de melhor pra você hoje e sempre! Me sinto cada vez mais unida à você, mesmo que com o passar do tempo a nossa distância física não se aproxime, e na verdade está estagnada... Mas o meu sentimento de grande carinho e bem-querer por você está a cada dia mais e mais unido ao seu maravilhoso e único Ser! ;-)

Amei o seu comentário no meu blog! Ahh, já li si o livro Madame Bovary! É um lindo romance, ao meu ver... Acho as coisas tristes mais bonitas. Bom, depois que você ler eu te digo porque (na verdade você vai entender porque quando terminar de ler).

Na minha faculdade tem um evento chamado "Sala de Leitura" e uma vez foi com o livro Madame Bovary. Correlacionam Psicologia e Literatura, geralmente um professor dá uma explicação sobre o livro e depois correlaciona com algum tema da Psicologia. É bem interessante, você ia gostar.

Eu atualizei o meu blog hoje. Postei um vídeo de uma música do Nightwish na parte "Gozo", que antecede os meus textos. Tenho feito isso de uns tempos pra cá, desde quando aprendi o significado deste termo em Lacan. Achei muito interessante e achei também que tinha a ver com muitas de minhas percepções pessoais.

Já fiz o meu próximo texto também e... adivinha! Correlacionei com o filme Sybil! Fiz uma dedicação e uma proposta pra você no final deste texto, espero que goste! Programei pra postar na sexta.

Amanhã começo a trabalhar no meu novo estágio! Torça por mim!

Tudo de bom pra você!

Beijão =)

Sergio disse...

Que bom passar por aqui e aprender contigo! Obrigado pelo carinho! Feliz 2012!!!

Sergio disse...

Que bom passar por aqui e aprender contigo! Obrigado pelo carinho! Feliz 2012!!!

ANTONIO NAHUD disse...

Cumprimentos cinéfilos e Feliz 2012, Renato!

O Falcão Maltês

M. disse...

Renato, Feliz Año Nuevo!

• Ӗwerton Ľenildo. disse...

Texto perfeito.
Primeira vez que visito o Blog,e não me arrependi por isso. Adorei de verdade.
Meus parabéns.
Estou seguindo sem medo ;)
Visita e segue meu cantinho se gostar também?
Um perfeito 2012 para você, sucesso sempre, abração.

Ewerton Lenildo - Academia de Leitura
papeldeumlivro.blogspot.com
@Papeldeumlivro

Unknown disse...

Também me senti assim...
Bela reflexão e Feliz 2012!

;D

e-Chaine disse...

Respeito como você descreve certas sensações...
Mesmo.

Abração.

Anônimo disse...

Oi Renato belas palavras deixadas no post do seu chará. Vou ler seu último post depois e comentar. Faz tempo que não vejo vc blogar. Obrigada. Cynthia