25.4.12

pequenas crianças, não todas

Sabe-se que algumas virtudes independem de ensinamentos. Ainda que muito daquilo que aprendemos seja consequência da mediação de um outro, é certo que não nos foi demonstrado o prazer existente naquilo que é censurável. Em síntese pode-se dizer que no desenvolvimento humano crianças aprendem a desejar, e serão tranformadas em adultos para alcançarem a velhice, na melhor das hipóteses. Entretanto, o desejo não segue esta mesma linearidade, pois há crianças que possuem anseios similares à pessoas crescidas, e o seu inverso pode ser visto naqueles que de alguma maneira querem reencontrar-se com satisfações primitivas. A ocasião não nos permite analisarmos a dimensão atemporal do inconsciente, mas nos traz um filme em que homens e mulheres poderão até mesmo renunciar tudo para que seus primitivos amores sejam re-experimentados. Esta proposição é uma espécie de tese a ser desvelada em Pecados íntimos | Little Children – 2006 |.


Como crianças apavoradas em decorrência de fortes temporais, assim encontravam-se os moradores de uma tranquila e pequena cidade ao ouvirem rumores a respeito de um exibicionista que recentemente saira da prisão. O diretor Todd Field anuncia o discurso moral daqueles que se consideravam cidadãos de bem. Em um parque para crianças, algumas mães discutiam o perigo em torno da fatídica manchete sobre o pervertido, comentando sobre os horrores e medidas preventivas a serem tomadas. Entre outras pautas, o bate papo destas mulheres causava uma moderada repulsa em Sarah | Kate Winslet | que não se identificava com este papel e muito menos com a ideologia destas “senhoras de bem”. A previsibilidade e monotonia eram elementos-chaves no cotidiano destas mulheres. Até que com a incursão de um outro masculino algo foi modificado.


“Acho admirável você estar aqui. Não há porque um pai não possa cuidar do filho” – foram estas as palavras de Sarah à Brad | Patrick Wilson | após ter se aproximado daquele desconhecido, que evocara tórridos sentimentos nas três outras mães, que a bem da verdade não assimilavam a ideia de um pai assumindo este papel. Em questão de instantes, Sarah tornou-se uma desviada moral ao pôr em ato aquilo que as demais vizinhas não se permitiriam fazer: um abraço e um beijo foram suficientes para que as mães se escandalizassem com tamanha audácia. Aquelas três mulheres eram representativas do discurso social ainda atuante em nossos dias de que a uma mãe é descabido o exercício público de sua sexualidade. As convenções sociais entre habitantes daquela cidade revelavam, portanto, o mundo e a ética das aparências.


A filosofia de Sarah e Brad desviava-se destas concepções. Eles não eram, entretanto, partidários de algum movimento radicalista. Eram apenas pessoas comuns que elaboravam seus próprios dissabores cotidianos. Sarah experenciava uma sensação de estranhamento em sua própria casa, cumpria seu papel de esposa e mãe, embora não identificada com a filha e, consequentemente, era matrimonialmente infeliz. Brad parecia um constante vir-a-ser, pois encontrava-se empenhado na terceira tentativa de aprovação no Exame da Ordem para o exercício da prática jurídica. Aos olhares dos mais críticos ele nada mais era do que um representante de um ocioso estilo de vida. Por outro lado, Kathy | Jennifer Connelli |, sua esposa, assumia a persona da mulher realizada profissionalmente e descontente no casamento. Os típicos papéis e convenções estado-unidenses neste contexto são necessários para que possamos extrair um sentido além do aparente a partir de lugares supostamente comuns.


Ainda que não expressassem qualquer inibição ao falar da insuficiência de suas vidas reais, algo se tornaria não-todo submetido as leis da fala nos encontros vespertinos de Brad e Sarah. “Mas havia sempre o desejo do toque. E por mais que ela quisesse isso... também queria manter a amizade que havia surgido em público” – o desejo de Sarah ainda que inconciliável ao discurso moral dos habitantes daquele lugar poderia, contudo, encontrar uma forma de ser traduzido em termos práticos, desde que as crianças permanecessem protegidas. No encontro com o sexo e o desejo no outro eles puderam descobrir outros possíveis papéis a serem assumidos em suas próprias vidas. Esta constatação, no entanto, não produzira um sentimento catártico ou de alívio, mas de desprazer, pois para que suas vidas ganhassem um novo sentido algo deveria ser modificado na habitual rotina. E caso Sarah e Brad estivessem aptos para uma ação transformadora, a sociedade local, contudo, continuava a acreditar em seus mesmos deuses.


A ótica daquela população estava pautada em uma condição propriamente estética. O eu ideal estava fundamentado na ilusão de pais e mães perfeitos, aqueles que cumprem com devoção o dom de serem o perfeito referencial a seus filhos. Trata-se, portanto de uma imaginária lógica excludente, pois afirma a lei do não pertencimento aos desajustados e àqueles que cedem lugar ao desejo. A absoluta crença na idealização contribui para que o sentimento de remorso atue sobre aqueles que por algum motivo, decidiram arriscar a tentativa de assumir outros papéis sociais.


As pequeninas crianças que Todd Field muito provavelmente refere-se não são os filhos de Brad e Sarah, mas sim aqueles que biologicamente crescidos mantinham o desejo de retroceder, de re-experimentar sensações primitivas de consolo e acalentamento, de sentirem-se livres da culpa e liberados para poder elaborar seus próprios sonhos. O tornar-se adulto, sob algumas circunstâncias, implica que não se dê lugar à falta, por meio de tentativas em mostrar ao outro uma suposta condição de completude. De maneira cindida, a aparência e a essência são apresentadas, neste contexto, a partir de casais que sustentavam o semblante de felicidade, mas que no âmago familiar encontravam-se esvaziados e à margem de suas próprias idealizações. Há uma cisão nos subterfúgios masculino e feminino para mascarar a permanência do sentimento de serem pequenas crianças. As mulheres introjetavam os valores éticos e morais considerando-se guardiãs deste supremo bem, a procedência neste caso se dava por meio do pensar, em uma dimensão mental. Os homens, por outro lado, buscavam mostrar virilidade frente aos outros, anunciando implicitamente que apesar de mudanças das últimas décadas o paternalismo prevalecia sobre seus lares. Eles atuavam deste modo, na dimensão do fazer, o corpo colocado em ato.


Seguindo este raciocínio algo comum entre ambos os gêneros prevalecia: a insatisfação com suas próprias vidas. Em um grupo de leitura, algumas mulheres discutiam sobre o escândalo do caso Madame Bovary, romance escrito por Gustave Flaubert publicado em 1857. Em resposta a repulsa de algumas mulheres quanto aos atos socialmente censuráveis da personagem, Sarah anuncia: “Ela está presa, mas tem escolha. Pode aceitar uma vida infeliz ou lutar contra isso. E escolhe lutar. Ela fracassa no final... mas há beleza e heroísmo na rebeldia dela. Não é traição, é o desejo. O desejo por uma alternativa... e a recusa em aceitar uma vida infeliz”.


Ao sujeito é dada a possibilidade de jogar com a alternância entre tornar-se feliz com a falta, ou fazê-la causa de suas desventuras. Entretanto, o que faz falta no real pode alterar o rumo de épocas futuras. Deve-se lembrar das palavras de alguém que viveu o suficiente para afirmar que “as coisas que amamos... as pessoas que amamos... a qualquer hora podem ir embora. Vivemos sabendo disso e continuamos vivendo mesmo assim”.

Abraços à todos,

Renato Oliveira

10 comentários:

Anônimo disse...

Renato nunca assisti esse filme. A colocação sobre o masculino no papel de mãe está sendo cada vez mais visto em nossa sociedade, sendo que na época de nossas mães era bem menos visto. Infelizmente sempre preocupamos com o que a sociedade vai nos dizer, estamos sempre agindo desta forma, e assim vamos nos comportando como extrovertidos sentimentos, mesmo sendo o Brasil um País introvertido sentimento, ainda temos essa sensação que o que os outros pensaram de nós se atuarmos fora do que vem estabelecido de papel pai e mãe.
Fantástico sua análise, gostei muito e vou voltar aqui para rever sempre que der. Adorei sua colocação sobre a observação do seu signo no meu blog. Já assistiu Percy Jackson e o Ladrão de Raios? Recomendo. Abraço Cynthia

Gilberto Carlos disse...

Gostei muito de Pecados íntimos. Kate Winslet dá um show como sempre e até o Patrick Wilson que quase sempre parece apático, está bem. A dúvida cruel do filme, trair ou não trair?

ANTONIO NAHUD disse...

Um belo filme com uma atuação impecável de Winslet. Pena que o Wilson é tão insosso.

O Falcão Maltês

Francys Oliva disse...

A questão deste filme embora não tenha assistido, mas, pela sua escrita o que me mostra é como nós estamos sempre usando mascara dentro de uma sociedade e não conseguimos nos livrar dela, a questão que o Gilberto no comentario acima, escreveu, sobre trair ou não trair. Eu diria que a questão não seria bem esta, mas seria: saio da mesmice que é minha vida e vou tentar ser feliz ou fico usando mascara até quando não der mais? Infelizmente quando se acostuma com a mascara a pessoa não se reconhece mais quando a tira...
Beijos caríssimo bom final de semana.

Unknown disse...

Este filme me marcou muito quando o vi pela primeira vez.. tem tantos degraus e nuances em cada uma das escolhas das personas... é muito interessante!


Ótima análise e escolha!

-> Nascida em Versos:
http://nascidaemversos.blogspot.com.br/

-> Minha Poética:
http://nv-minhapoetica.blogspot.com.br/

Unknown disse...

Estou com um novo blog!
http://antesqueordinarias.blogspot.com.br/

;D

Sergio disse...

Adoro passar por aqui, gostei muito de sua sugestão e vou procurar esse filme! Obrigado pelo carinho de sempre e tenha uma semana maravilhosa!!!

Lucy Rielo disse...

Interessante todos esses pontos levantados, foi a mesma questão que tive quando assisti a esse filme. Uma ótima dica para debates.

M. disse...

Olá Renato! Eu fiquei curiosa para ver este filme. Tudo nele faz chamar atenção. Interessante e instigante análise. Um abraço e bom feriado.

Évelyn disse...

Caríssimo!!! \o/ \o/ \o/

Saudades mil de vir aqui... Finalmente eis um tempo dedicado a você. Sim! Pessoas especiais e magníficas como você merecem muita dedicação de nossa parte.

Este filme retrata fielmente a nossa sociedade... Digo, o inconsciente de nossa sociedade. Quem nunca julgou uma "Sarah" que atire a primeira pedra. Na verdade quem julga são os quem sentem mais prazer em "re-experimentar sensações primitivas". Os famosos recalcados, de acordo com Freud e não com o consensual. Um dia desses ouvi no ônibus - diga-se de passagem, não local melhor para adentrar em alteridade na cultura do outro que o ônibus coletivo - que "pessoas recalcadas não são bonitas". Tadinhos dos neuróticos, são todos feios... Será?! Acredito fielmente que não, não, uhm, uhm! Pra mim ninguém é feio, na verdade o que falta é externalizar a essência... Fenomenológico, não?

Confesso que me vieram várias coisas à tona em minha mente durante a leitura de sua resenha. Desejos primitivos, sendo mais clara. Acredito que São as minhas associações livres feitas em forma de meditação. Quando estou muito concentrada me vêm pensamentos automáticos, o que denomino de associações livres, é claro. Nada de cognitivismo pro meu lado... Haha!

Vou ler a resenha acima. Já volto!

Tudo de bom pra você! =D

Beijão