24.1.13

a mão que repulsa o beijo

A analisada de hoje não poderá esconder nada. Não haverá para onde correr, pois o filme já se inicia com um super close em um olho que tudo vê, sendo capaz, inclusive, de enxergar o que existe enquanto motivação para se ocultar coisas. Nem mesmo raio-x a laser possui uma tecnologia tão avançada como esta que se vinculava nas mídias cinematográficas dos anos 60. O que você consegue ver quando olha bem dentro dos olhos de alguém?


A verdade é que temos grandes novidades e para revelá-las é necessário admitir que serão utilizadas algumas coisas velhas, tais como uma tese principal já abordada e um filme que foi analisado nas primeiras semanas de existência do blog Cine Freud. Se uma resenha “analisa muita gente” o que dizer de duas? Depois de tirar suas próprias conclusões sobre o presente texto você poderá clicar aqui e embarcar no link do tempo para conferir a primeira resenha feita sobre o filme de hoje e concluir, portanto, se houve travessia do fantasma ou não. Pois bem, “o masculino não pode entrar”, com esta ideia em vista se abordou acerca do reencontro de filha e mãe postiça e os dissabores evocados por esta união artificialmente produzida. Desta vez não tem mãe na história, o que faremos, a bem da verdade, é prestar louvor ao discurso da reciclagem ecológica e reutilizar uma sentença que um dia deu certo e que desta vez servirá de norte para uma nova análise do filme Repulsa ao Sexo | Repulsion – 1965 |.


“Homens são todos iguais” e por esta razão a nossa analisada Carol Ledoux | Catherine Deneuve | preferia evitar a todos. Eles eram a exceção e já devo adiantar-lhes que somente surgirão no roteiro em circunstâncias “x” e para fins específicos previamente incalculáveis. Após a proclamação do “grande olho” a história se inicia com a visão de uma pessoa inerte, estendida e com uma máscara de tratamento facial. Enquanto aguardava o resultado da aplicação, as mulheres que frequentavam o salão onde Carol trabalhava mantinham-se “forever elas mesmas”, mas se você as questionasse sobre temas como relacionamento, homens e vida a dois certamente haveria muito a se falar. Enquanto cuidava das unhas da cliente, Carol pega no sono para subitamente ser acordada em seguida pela chegada de Bridget | Helen Fraser |. Por instantes a jovem mocinha da história cochilou e devo adiantar que em outros momentos ela novamente se mostra “desligada”, como que em conectividade com o mundo onírico. Não há dúvida de que Carol Ledoux é um ser analisável. O diretor Roman Polanski expôs fragmentos de seu próprio inconsciente para que a personagem fosse criada, desde então é concebível supor que as fantasias dela podem ser extensões das elaborações fantasmáticas dele. Um dia ainda discutiremos aqui este ponto em relação à fatídica acusação de estupro, de tempos atrás.
No horário de almoço é possível que uma voz distante dissesse a Carol: “vai e mostra no seu olhar que o mundo é prá conquistar... que a vida é prá desfilar e vencer”♫ ♪. Sim, era a hora do desfile da jovem pelas ruas relativamente agitadas. Ela se ofertava ao olhar do outro e não demonstrava reação que tornasse possível compreender se isto lhe era ou não prazeroso. O passeio de Carol evidencia, e tão somente, o interesse masculino de ver e o prazer na contemplação.

Quando estava em um restaurante, o prato de alimentos de Carol encontrava-se completamente preenchido, como se do mesmo modo em que era olhada pelos homens, ela estivesse a devolver este olhar por meio da contemplação de um prato. No entanto, a jovem não era uma grande admiradora de gastronomia. Esta informação seria útil a Colin | John Fraser | um declarado admirador que a segue até o presente local e após autorização para se aproximar, a convida para comer em outro restaurante. Temos, portanto, uma não confluência de interesses. No entanto, Carol aceita o convite e permanece na companhia dele até o término de seu horário livre.


As atividades da jovem após o retorno a seu apartamento não poderiam ser mais categóricas: cumprimenta sua irmã, retira os sapatos, o vestido, lava as pernas e pés e observa pela janela um grupo de freiras que, embora localizadas a distância, demonstravam júbilo ao realizar alguma atividade conjunta. Carol identifica que sobre a pia do banheiro encontravam-se instrumentos masculinos, tais como uma escova de dente e utensílios para barbear. O objeto anunciava o dono: ela logo deduziu que eram de seu suposto cunhado, e para tanto demandou a sua irmã Hélène | Yvonne Furneaux | um esclarecimento. Pela conversa de ambas na cozinha nota-se uma clivagem de interesses, pois enquanto Carol evitava as possibilidades de encontros humanos e agradava-lhe mais a contemplação de alimentos do que a ingestão de tais, Hélène tinha um namorado e euforicamente estava envolvida na preparação de um coelho para o jantar.


Os elementos que são inicialmente apresentados por Polanski indicam importantes traços da forma de relação com o mundo adotada pelas irmãs. Ora, para Carol o compartilhamento de uma “escova masculina” era um crime inafiançável, uma rachadura na parede a incomodava e os alimentos poderiam ser dispensáveis. Hélène relacionava-se diretamente com objetos que a Carol não tinha importância: homens e alimentos. Após a chegada de Michael | Ian Hendry |, o namorado de Hélène, o casal conversava enquanto notava o caminhar das freiras. Ela dizia-lhe: “ainda não me deu uma chance de mostrar como cozinho bem”. A resposta não poderia ser mais convidativa: “pode me contar durante o jantar”. Logo em seguida eles reclamam acerca do barulho dos sinos que ecoava naquele momento. Quando Michael nota a presença de Carol que os observava, ele espontaneamente anuncia: “Cinderela...”. Pois bem, neste enquadre não seria possível conter símbolos e representações melhores: temos uma configuração que situa a posição de sujeitos em diálogo com a sexualidade. Se Carol a elaborava, até então, na dimensão do olhar e em ofertar-se a contemplação do outro, Hélène cozinhava bem, usava os instrumentos necessários e tocava na pele de um animal – nada mais metafórico para anunciar uma pessoa sexualmente ativa.


Os planos mudaram naquela noite: o casal saiu para jantar e Carol pode ficar com o coelho todo para ela. Sozinha observava um retrato de família no qual havia uma garota distante das demais pessoas. É provável que a pessoa referida na foto era ela, e podemos imaginar que a indagação se formulava em termos parecidos com estes: “qual o meu lugar aqui? quem eu sou enquanto mulher?” Dissabores não lhe faltariam para que talvez pudesse desenvolver respostas plausíveis a estes inquéritos. Após o retorno de Hélène, a jovem era testemunha de sons que denotavam uma relação sexual. Ela tentava aplacar os ruídos. Sem sucesso. O sexo era-lhe “imaginarizado” a partir de sua relação discursiva com a irmã e pela atribuição de sentido aos sons. A relação sexual associa-se ao incômodo, era aquilo que atrapalhava o descanso, a tranquilidade mental e, por que não o recalque? O masculino estava dentro e não há dúvida de que esta estadia produzia consequências psíquicas.


Antes que a sessão de hoje encerre é necessário ressaltar que Colin admitia não compreender a jovem. Quanto mais ele buscava uma aproximação (convidá-la para almoços e revelar suas melhores intenções) mais ainda ela recuava. Carol evitava uma aproximação física, ela burlava ocasiões em que seria obrigada a comer junto a homens. Como não se lembrar da cena em que após ser beijada por Colin ela afasta apressadamente e corre até o seu apartamento para escovar os dentes? Está declarada no filme uma relação entre afetividade e oralidade relacionada com necessidade de limpeza e ausência de fome. Se a presença da irmã causava-lhe infortúnios e a entrada em um campo difícil de ser elaborado, a ausência da mesma produziria horrores ainda maiores.


Carol temia que sua irmã viajasse com Michael, e claro que a jovem não foi capaz de persuadi-la a mudar de ideia. Tentou, novamente, sem êxito. Uma das questões deixadas pelo filme diz respeito à saída de Hélène. Por que razão era temível? A irmã nada mais era que um escudo. Era aquela que “dava de comer aos tigres” que entravam naquela habitação feminina. A irmã a protegia do encontro com o sexo do outro. Hélène ausente anunciava uma probabilidade aterrorizante: a invasão do masculino. O delírio de Carol estava pautado na sentença de que “os homens sentem fome”, portanto, sua repulsa ao sexo baseava-se em uma brincadeira fonética, pois ela tanto recusava comidas quanto ser comida, ou seja, ser resposta à demanda do outro. Alimentos e homens eram nocivos, e assim, era preciso outra “sexualmente madura e ativa” para que ficasse a frente dela para ser resposta enquanto ela mesma estaria implicada em seus devaneios e sonhos. Ao se despedir, o cunhado anunciou: “não faça nada que eu não faria”, o que nada mais é que um convite, só que invertido: “faça muito sexo e também se alimente, eu faria tudo isso em seu lugar”. O horror a permissividade – medo, recusa e repulsa ao sexo – anunciam o que? O desejo por.


Conhecer o desejo seria como uma aproximação deste masculino-animal que, como se não bastasse, era difamado no discurso de clientes. Bridget lamentava acerca de suas desilusões com o namorado e uma senhora aconselhava que: “há apenas um modo de lidar com os homens. Tem que tratá-los como se não desse a mínima. (...) Eles só querem uma coisa. Não sei por que dão tanto valor para isso. Mas dão. Quanto mais faz com que implorem por isso, mais felizes ficam. São todos iguais. São como crianças. Querem apanhar e ganhar doces”. A fala “só querem isso” faz alusão a um animal com fome e observa-se também que o significante “sexo” é excluído do discurso fílmico, embora se fale exatamente disso.


Tudo termina, ou recomeça, quando Carol, após a partida de sua irmã, decide se isolar no apartamento. Ela fecha as cortinas e faz com que um clima noir domine o ambiente. O dark predominava, pois a entrada de luz estava detida como se assim fosse capaz de bloquear a emergência de possíveis insights sobre uma sexualidade que se desejava manter latente. Sozinha, ela caminha por paredes que abruptamente rachavam, derretiam ou que eram atravessadas por braços humanos, dispostos a agarrá-la. Carol tranca a porta de seu quarto com o armário, pois quer se proteger de todos. A temporária dona do apartamento bloqueia o acesso ao seu próprio sexo porque o desconhece... Mas não somente isso, mas também porque teme descobri-lo e deseja desvendá-lo. As paredes rachadas causavam-lhe horror por significarem o rompimento de uma ligação, era uma extensão do medo em ser penetrada e do consequente e possível rompimento do hímen – “o masculino não pode entrar”. Colin representava a ameaça de um sexo que tentava ser imposto à força. E que sexo era o dela? Carol supunha em Hélène um saber sobre a feminilidade, mas este é assunto para uma ocasião futura. Analisá-la a distância é mais seguro. Carol é aquela que parabeniza os que se dispuseram a conhecê-la com a seguinte lembrança: tenha cuidado ao querer fazer jogo de “quem pode mais”.

Renato Oliveira

15 comentários:

renatocinema disse...

Amigo....voltou com chave de ouro.

Cinema com C maiúsculo.

Bela análise e um belo texto.

Seja feliz o seu retorno....estarei sempre por aqui.



Sobre seu comentário de Tarantino concordo....cada filme tem seu momento para ser realizado.

abraços

Anônimo disse...

Agora passei apenas para dar uma olhadinha e conhecer o seu blog, venho depois com mais tempo para ler como se deve, mas posso dizer que já gostei do que vi e do pouquinho que li.

Obrigada pela visita.Será sempre bem vindo.

Beijos e bom fds.

Alan Raspante disse...

Muuuuito bacana tua análise, como sempre! Ainda não vi "Repulsa ao Sexo", mas é meio difícil não ficar curioso após ler o seu texto.

Necessito ver :D

Patt Baleeira disse...

Olá,

Vim agradecer sua visita em nosso blog (Cinéfilos, Uni-vos) Volte Sempre, tá?!

Gostei do seu 'cantinho', da resenha e do objetivo!

Besos

Patt Baleeira

Francys Oliva disse...

Nada como voltar a escrever carissimo seja bem vindo sempre.
bjs

Heloisa Moraes disse...

Nossa, gostei do texto e principal das fotos. Adoro o estilo das mulheres dos anos 50/60.

Muito obrigada pela visita e volte sempre. Que bom que gostou do meu espaço :)

até mais.

aline disse...

nossa! que cenas lindas, tô morrendo de vontade de ver o filme.
excelente análise!

Evandro L. Mezadri disse...

Olá Renato, gostei muito de seu blog, você analisa filmes com muita competência e clareza.
Grande abraço, sucesso e grato pela visita!

Iza disse...

Ainda não assisti Repulsa ao Sexo.
Mas é um clássico e logo assistirei.
Gostei muito do seu texto.
Abraços.

M. disse...

HUmmmm filme curioso! O texto como sempre inteligentíssimo. O layout está ótimo, mas sei que vai ficar mais bonnito daqui para frente. Abraços.

Évelyn Smith disse...

Caríssimo! Como estás? Saudades!
Amei o novo visual do CF! Você valorizou mais os textos, como se a resolução das resenhas ficassem mais nítidas ao leitor. Excelente!
Esta resenha é sensacional. A repulsa aos homens é uma respulsa a si mesma... vários temas a se pensar em relação a isso.
Estou numa correria, as aulas já irão começar, embora eu só irei depois do carnaval. Tenho várias coisas pra resolver. Enfim, rumo ao último ano! \o/
Tudo de bom pra ti!
Beijão

Anônimo disse...

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Fábio Henrique Carmo disse...

Bela análise. Este é um dos meus preferidos do Polanski e sua visão é muito interessante. Aliás, este seu espaço é bem interessante. Voltarei sempre por aqui. Inté!

Vitor Costa disse...

Que rica e consistente análise você realizou, parabéns!

Esse enfoque mais psicológico é muito interessante.

Eu assisti a esse filme recentemente e é muito perturbador e intrigante. Um dos melhores de Polanski, indubitavelmente.

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