2.4.13

volta ou não te quero mais?

Vou ver se é possível escrever algo novo ou minimamente aprazível sobre um trabalho no qual se pode até mesmo fazer pessoas mortas falarem. Tenho ideias absurdas elencadas, mas que talvez sejam justificáveis caso seja pensado que o cinema amplia a imaginação e o potencial criativo de todo aquele que se aventura por seus caminhos. A presente experiência poderá ser pensada como um retorno às memórias significativas de um universo feminino. É para falar sobre horrores, medos e verdades comuns a um grupo de mulheres que adentramos mais uma vez nas criações de Pedro Almodóvar, e desta vez será como uma viagem no tempo, de maneira que a fronteira entre o velho e o atual será tênue e absolutamente traspassável. Volver | Volver – 2006 | reflete esta experiência de retorno às histórias, temas e lições que marcaram épocas e pessoas que assumiram o papel de agentes de suas próprias vidas.


É claro que o “universo feminino” referido pode ser identificado em outros trabalhos do realizador espanhol, mas neste filme toda a história será contada por mulheres que estão em uma relação direta com o tempo e com a morte. Na casa da tia Paula | Chus Lampreave | havia recordações de uma pessoa ausente: fotos, objetos e principalmente discursos das sobrinhas Raimunda | Penélope Cruz | e Sole | Lola Dueñas | acerca de uma mulher morta simbolizada via linguagem. Ambas as irmãs visitavam uma tia que não conseguia se situar no tempo, mas que cuidava de sua própria casa, preparava doces e demonstrava um terno afeto para com aquelas que lhe eram próximas. 


Desde este momento inicial é estabelecido um encontro intergeracional de mulheres: as irmãs, a tia e também a sobrinha homônima | Yohana Cobo |, filha de Raimunda que testemunhava esta reunião familiar. Observa-se que o estado de fragilidade da tia Paula remetia as duas irmãs às lembranças sobre a irmã da irmã, ou seja: sua mãe que falecera há alguns anos e sobre a qual pouco se sabia. Ela deixou um estado de “ausência de lugar” a ser elaborado pelas filhas. Ademais, para a tia Paula, sua irmã falecida permanecia com ela, como se a morte não houvesse delimitado um fim ao contato entre ambas. Após pegarem os doces preparados pela anfitriã, as sobrinhas se despediram e se retiraram com a seguinte conclusão: “ela não está com a cabeça boa, não”. Nesta família havia conflitos que se encontravam latentes à memória de Raimunda e Sole. 


Para além desse universo propriamente feminino havia Paco | Antonio de La Torre |, o esposo de Raimunda, o retrato de um homem com poucas preocupações que acumulava latas de cerveja nas tardes enquanto via TV. Nota-se que ele era a representação de uma vida de concupiscências. A sua exclusão do discurso, contudo, não ocorrera sem uma grande tragédia: ao voltar do trabalho, Raimunda é surpreendida por sua filha que a aguardava. A jovem atônita conta que fora assediada pelo pai e para defender-se dele ela o agrediu com uma faca. No chão da cozinha encontrava-se Paco estendido, para em seguida ser embalado e guardado em um freezer, enquanto não fosse possível desfazer-se de seu corpo. Raimunda assume esta missão e enfatiza para sua filha: “lembre-se que fui eu que o matou”


Observa-se que a morte de Paco fora uma consequência de sua tentativa em  fazer no real uma relação sexual da ordem daquilo que é moralmente condenável. Mas não somente isto: Paco era o representante do desejo sexual na história bem como a figura do outro sexo, desvencilhar-se dele fora uma tentativa de dar fim ao representante do desejo. Em outras palavras, compreende-se que ao matá-lo se estabeleceu um recalcamento bem sucedido... até então.


As mulheres não acabaram. Raimunda e Sole se encontraram com a cuidadora Augustina | Blanca Portillo |, que ao recebê-las mostrava algumas recordações de sua falecida mãe “hippie” e dizia-lhes o quanto esta ausência articulava-se com o presente, de maneira que a falta que sentia de sua mãe a colocava no lugar de uma pessoa viva significativamente representada. Raimunda contou-lhe que estava preocupada com sua tia que estava “pior do que nunca” e já não mais as reconhecia. 

Este estado de desrazão logo se encerrou, pois ao tempo de vida de tia Paula fora estabelecido um fim. Mas tratava-se de uma exclusão que poderia abrir caminho para um saber, pois, com a morte desta mulher, Raimunda, Sole e Augustina se implicariam em querer saber sobre suas devidas mães. Havia um anseio em saber acerca de uma outra mulher significativa em uma história passada. 


É provável que a estas três mulheres algo supostamente faltava, havia um não-saber posto em cena:

1. Raimunda afastara-se de sua mãe na ocasião em que ela falecera;
2. Augustina queria saber acerca dos fatos que antecederam à morte de sua mãe;
3. Paula, por sua vez, conhecia pouco a respeito da história de vida de Raimunda.

Nota-se um declarado interesse em tornar o passado como uma parte do presente. A expressão “volver” muito comumente utilizada em uma marcha em que soldados retroativamente devem voltar-se para seguir os passos em uma orientação contrária é uma boa ilustração. Este tom retroativo pode indicar a emergência de lembranças daquilo que se constitui como a história do sujeito. Conforme abordado, as mulheres se colocaram a pensar sobre o lugar da falta deixado por suas mães após a definitiva ida de dois familiares. 


Paco fora embrulhado e escondido feito um animal apodrecido e Tia Paula foi enterrada de acordo com os costumes. Alguns dias após o ritual feito eles começaram a dar de comer aos vivos, pois Raimunda assumiu sem autorização prévia do antigo dono um restaurante próximo a sua casa. Neste local, um grupo de atores e produtores de cinema almoçava diariamente. Em uma ocasião festiva, inclusive, ela se pôs a cantar aos olhares de todos que enquanto se confraternizavam, passaram a observar aquela mulher que ao cantar falava sobre “volver” referindo-se aos temas do passado que se atualizavam nos desafios e nas lutas vividas pelas pessoas. Um trecho da música cantada por ela deve ser destacada: “tenho medo que o encontro com o passado possa se confrontar com a minha vida”.


A celebração dos vivos era assistida pela representação viva da mãe morta. O fantasma daquela que ofertara a Raimunda e Sole um universo de linguagem ressurgira não como obra de mágica ou algum milagre da natureza. Irene | Carmen Maura | voltara, ela estava viva, mas se apresentaria às filhas como uma visitante e apenas no momento adequado revelaria a razão de seu regresso.


Certamente com o filme fomenta-se uma das mais arcaicas perguntas sem resposta plenamente aceita: a vida termina quando acaba? O retorno dos mortos neste trabalho representava a volta de desejos e memórias infantis, as quais pedem satisfação, ou mais especificamente, pedem por linguagem, explicações, para se inscrever sobre o sujeito como experiências dotadas de sentido. É certo que a morte relaciona-se ao real, que escapa ao simbólico. É feita alusão a esta morte para se falar sobre o desejo do sujeito. Irene apresentava-se a Sole e permanecia oculta a Raimunda. Como uma espiã (e por que não o disfarce de uma mulher-fantasma?) ela se permitiria participar do atual mundo de Sole e assistir escondida a fragmentos do cotidiano de Raimunda – “ficarei até que Deus queira, se não for inconveniente”.

Claro que seria inconveniente. O retorno de uma mãe representa a chegada de conflitos de outras épocas. Ainda que no filme tenha-se a impressão de que pessoas retornam para solucionar conflitos passados, para fazer discurso e também para fornecer uma “oferta de palavras” é certo que isto não ocorreria sem maiores complicações. Para se conhecer esta mãe seria necessário ouvir um dito de verdade que ela detinha sobre a sua decisão em “volver”. Raimunda e Sole estavam diante do desafio em assimilar o retorno de uma mãe supostamente morta, mas que não somente vivia como aguardara por anos o momento adequado para voltar. Os três movimentos lógicos lacanianos seriam etapas a serem consideradas na relação das filhas com Irene: o instante do olhar, da tentativa de apreensão do outro como um ser materializado no corpo cuja forma era real; o movimento de compreender – o enlace no discurso materno e nas significações que poderiam se produzir para um evento inesperado e, por fim, o movimento de concluir: a que resultado chegariam?


As mulheres do filme fazem alusão ao inconsciente e seu funcionamento de acordo com as formulações de Freud. Assim como o recalcamento fora primordialmente estabelecido como uma via de distanciamento daquilo que é censurável aos valores morais do sujeito, o retorno destes conteúdos pode ser tido como um levantar dos mortos, bem como uma “oferta de palavras” que reaparece na vida mental do sujeito causando-lhe dissabores e mais ainda dando-lhe a missão de se haver com isso. A tia Paula representa este estado de desrazão, a qual não tinha um lugar fixo no tempo e tratava pessoas mortas como vivas. Ora, não cabe aqui nomeá-la por “louca”, mas sim aludir à atemporalidade que é própria do inconsciente, de maneira que satisfações primitivas (imaginadas ou vividas) nada mais são senão desejos articulados à realidade presente do sujeito. Portanto, a morte de um desejo, pensamento ou lembrança não se consolida como um término. Ademais, esta “tia que tão pouco sabia” declarava um estado de inciência que é próprio do sujeito, o qual não sabe acerca de motivações inconscientes que o fazem desejar. Nota-se também que no filme o sexo não pôde ser simbolizado, de maneira que Paco foi assassinado por sua suposta filha, ou seja, o masculino foi excluído. Neste contexto, o homem representava a diferença anatômica entre os sexos, a qual deixou de existir, afinal, o inconsciente indefere quanto às noções de masculino e feminino, pois neste há apenas um único sexo.

Irene retornou com o propósito de fazer-se presente e ofertar o seu saber sobre a história de sua família. De alguma maneira, pode-se acreditar que os mortos retornam – caso assim o façam – com alguma missão. Possivelmente exista a ocasião certa e mais afortunada para que o aparecimento ocorra. O desejo recalcado, entretanto, volta sem a autorização de seu próprio dono, como um filho pródigo, mas possivelmente sem culpa e com o intuito de novamente fazer-se nocivo. O retorno do recalcado nada mais é do que o “volver” de conteúdos psíquicos. Desestabilidade, confusão e tropeço são efeitos prováveis, e claro que a história não termina quando o retorno ocorre.  É tecnicamente mais fácil desvincular-se do mesmo, do que conviver com ele novamente.

Sobretudo, o que se faz em uma análise senão volver?

Ótima semana a todos,
Renato Oliveira

8 comentários:

Evandro L. Mezadri disse...

Almodóvar e Penélope, sempre uma mistura explosiva, sinergia de talentos...
Grande abraço, sucesso e grato pela visita!

Iza disse...

Não assisti ainda o filme, mas adoraria. Minha mãe que já assistiu todos do Almodóvar, ela é fã dele e eu do Kubrick e Tarantino. Beijão <3

Tudo são Histórias que os Outros Contam disse...

O que dizer dessa dupla: Almodóvar e Penélope?
Adorei seu texto. E adoro os filmes do Almodóvar!

Heloisa Moraes disse...

Sempre quis assistir Volver, agora mais ainda depois do teu resumo. Tentarei me lembrar :)

Francys Oliva disse...

Sabe eu sempre acho idéias absurdas muito interessante, e não gosto muito de falar sobre o passado acredito que não ajuda muito. Mas adorei sua explanação sobre o filme, tenha um lindo final de semana.
bjs

Évelyn Smith disse...

Olá, Caríssimo!

Já vi este filme duas vezes, muito bom! Um comentário à parte, achei o cabelo da Yohana Cobo maravilhoso.

Eis um enredo fiel daquilo que representa o universo feminino. É certo que existem muitas rivalidades entre mulheres, mas quando existem segredos, os quais são de comum interesse entre elas, são mais unidas do que nunca (rsrs).

"Volver" ou retorno ao recalcado... Freud poderia ter sido mais original, assim como Almodóvar.

Tudo de bom pra você!

Beijão

Fábio Henrique Carmo disse...

Eu não gosto de Almodóvar. Ma minha visão é um cineasta muito mais pretensioso do que talentoso. Entretanto, sua análise me deu um certo ânimo para ver este "Volver" e, assim, poder formular minha própria opinião.

Belo texto!

Alan Raspante disse...

Excelente análise! Mesmo!

Gosto de "Volver". Acho até que é um dos meus prediletos do diretor. A cor aqui é mais latente e a história se desenvolve de forma única. Cruz está belíssima!

Abs :)