30.5.14

bela e vencedora

A resenha de hoje é especialmente destinada às pessoas loucas. Loucas... E sonhadoras. Lógico que não me refiro a "loucura foucaultiana", às lutas por saúde mental para benefício dos exilados ou coisa do tipo. A abordagem esta mais próxima da noção de loucura em Freud (yeah!), em sua psicopatologia da vida cotidiana. Trata-se, na verdade, não de um tipo de loucura que assola a vida das pessoas, mas sim daquela que se difunde nos dias da gente da maneira mais sutil e caricata possível. Existe coisa mais insana do quando nos reunimos para conversar em família? Mas, e se você for fazer uma viagem e de repente as coisas parecerem realmente malucas e fatos inesperados acontecerem de forma nada óbvia? Ademais, o "mundo infantil" é absolutamente doido e iremos revelá-lo, talvez, por meio de Olive | Abigail Breslin | em sua busca pelo prêmio Little Miss Sunshine (2006).


A paisagem é amarela, e os talentosos Jonathan Dayton e Valerie Faris (diretores) e Michael Arndt (roteirista) souberam criar uma atmosfera tão propícia para que conhecêssemos uma família comum – talvez como tantas possíveis outras retratadas no cinema – mas com sua singularidade. Sim, especial por ser um grupo de pessoas com questionamentos e dissabores próprios de gente que convive com gente. Filosofias de portão à parte, é significativo que você saiba que o filme retrata um sonho infantil: uma garota que acreditava ser talentosa sentiu-se radiante com a notícia de que poderia concorrer ao prêmio do ano. Tratava-se de um concurso de talento. E o interessante é que isso não explica tudo.


As crianças deveriam aproveitar mais a infância e explorar as habilidades para cantar, dançar, interpretar, fazer mágicas e afins, porque na vida adulta ouvirão, por vezes, que não tem nem tiveram talento algum. De todo modo, o filme já se inicia com uma cisão entre vencedores e perdedores, bem como com uma transmissão de um “discurso de miss” sem discurso, somente com o sorriso de uma mulher colocada num lugar de honra. Era esse o status que Olive queria? Certamente, era neste local que seu pai Richard | Greg Kinnear | esperava, um dia vê-la. Era ele quem delimitara essa dicotomia entre quem vence e quem perde, bem como se tornou o “agente da viagem”, que incluiria uma aventura em família, composta por seis idílicos e peculiares cidadãos.


A ocasião não nos permite analisar um por um, contudo, para além de Olive, façamos menção aos demais queridos. 1. Sheryl | Toni Collete |, a mãe >> ansiosa, afável, que amava sua família; 2. Richard, o pai >> você já sabe que ele separava pessoas que vencem das que perdem, seu objetivo era vencer; 3. Dwayne | Paul Dano |, o irmão >> tinha feito um pacto consigo mesmo, por isso parou de falar. Lia Nietzsche e odiava a todos; 4. Tio Frank | Steve Carell | >> tentou suicídio e como não deu certo, foi morar com eles. Não apreciava sua vida após frustração sentimental, era cult, lia Marcel Proust; 5. Avô Edwin | Alan Arkin | >> mais moderno do que possa parecer aos desavisados. 


Gente tão arrojada assim só poderia discutir quando se reuniam para uma refeição. Pois bem, um fato estava posto: a viagem. Desde os preparativos, coisa rápida, Olive “enlouqueceu de alegria” com a possibilidade de viver a experiência do concurso. Por tempos, ela ensaiou com seu avô e certamente sua apresentação seria fantástica! A história pode ser considerada uma versão atual dos clássicos road movie, desta vez estrelado por uma criança, e nos apresenta as discussões verbais e ansiedades de cada um durante o longo percurso até o local do evento.

Mas, o que tem de psicanalítico nisso, numa história de viagem? Ora, muitos dirão que não é somente um “conto de estrada” porque o que aconteceu na chegada também foi muito significativo: e estão absolutamente certos! Mas pretendo me deter ao que sucedeu enquanto eles iam ao concurso, o “durante”, apenas. No “percurso de vigília” era preciso cuidar da manutenção da perua amarela, atentar-se ao tempo, distanciar-se de suas ocupações de rotina, entre outras coisas. De outro modo, no “percurso psíquico” – e para tanto me limitarei à análise de Olive – cabia a ela reunir seus objetos internos, já introjetados em seu ego, e experienciá-los como fonte de criatividade, confiança, vigor... E ir a seu destino.  



Vale ressaltar que ela estabeleceu uma família na realidade externa ao integrar cada um como um ser único, separado e distinto e ao mesmo tempo em relações uns com os outros, e uma família interna. A respeito da qual, sabemos que isso só pode acontecer conforme a criança também desenvolve uma noção dela mesma como um ser separado de seus pais, com uma vida interna que pode ser enriquecida pela presença deles. O processo de crescimento pressupõe a necessidade de introjeções boas, da apropriação de bons referenciais que se tornam não apenas exemplos a serem seguidos, mas também fontes de inspiração para aprendizados e realizações. A partir de então conseguimos pensar na noção de riqueza do mundo interno. Nota-se que Olive introjetou cada familiar como um objeto bom, capaz de ajudá-la em sua ansiedade frente ao desafio de disputar um prêmio. 


Todos eles realmente “caíram na estrada”, e de fato é interessante observar uma correlação entre a estrada física (principalmente quando contempla longas distâncias) com a alusão a uma estrada que representa a vida. Em ambas se encontram as noções de percurso e passagem. E na estrada da vida estamos destinados à descoberta de que somos uma unidade composta de muitas partes e experiências boas e más. E “cair na estrada” implica aceitar a “lei” mediante a qual temos que reconhecer a existência de agressividade externa e inerente a nós mesmos, bem como a finitude dos objetos que amamos. 


Durante o percurso, um dos impasses que Olive precisou enfrentar foi a incerteza quanto a sua própria capacidade para disputar com as demais candidatas. Nota-se que a figura paterna, Richard, era assimilada por ela como o detentor de um saber verdadeiro no momento em que ele tenta persuadi-la a não tomar sorvete de chocolate, pois este continha gordura e a faria ganhar peso. Mas de onde vinha a noção de que ela aos sete anos precisava ser magra? O discurso “pró-magreza” era validado pelo pai, mas primeiramente correspondia a uma “verdade” socialmente aceita. Um dos possíveis efeitos da assimilação no ego desse ideal corpóreo pode ser notado em uma cena em que Olive pergunta, entristecida, para seu avô: “Eu sou bonita? (...) Não quero ser uma perdedora, porque papai odeia perdedores”. Ser uma “pessoa feia” era uma possibilidade sentida com ansiedade e angústia para Olive e mesmo para crianças ainda mais novas. Talvez para ela a noção do que é ser bela aos moldes sociais não pudesse ser relativizada. E não seria fantástico se a vida toda não formássemos um conceito definido de beleza? Ou se a ideia de beleza fosse ampla e democrática o suficiente para incluir pessoas com seus múltiplos talentos e formas ao invés de afugentá-las com rótulos? Infortunadamente, não ser bonita, para Olive, estava muito próximo a ideia de não ser vencedora, e perder, consequentemente, o amor e admiração do pai.


A análise de alguns comportamentos de Richard permite-me também supor que Olive introjetou sua ansiedade de aniquilamento, bem como seu temor em não conseguir ser suficientemente boa nas mais diversas áreas da vida. Mas ela também introjetou a bondade e confiança do avô, sendo capaz de se identificar com ele. A crença de Olive em sua capacidade artística também era decorrente de sua relação com ambos os pais, sentidos como bons nutridores, capazes, inclusive, de se apartarem temporariamente de seus interesses pessoais para viver a “loucura” do sonho da filha. O papel deles era se mostrar na realidade como presentes/disponíveis para que ela pudesse usá-los e usufruir de algo significativo para si própria. A história é trágica e imprevisível porque é um retrato da vida de pessoas normais que lidam com imprevistos, tragédias e esperanças.                                            


E será que mesmo depois dessa resenha, após o filme e antes do término de todas as coisas, o “sonho americano” continuará o de ser Miss America? Talvez seja válido nos perguntarmos quanto a quem respondemos quando “corremos atrás” de corresponder ao “formato ideal” que à la distance nos é oferecido. Por que não refutar algumas ideias? Independente do resultado do “concurso da vida”, questionar os lugares sociais postos não nos fará perdedores, pois como disse o avô de Olive, em resposta às ansiedades dela: “um real perdedor é quem tem tanto medo de não vencer, que acaba nem tentando”. E ela tentou e foi afortunada ao compartilhar da loucura familiar em cada parte do trajeto, o principal espetáculo da vida.

Um abraço,

Renato Oliveira

5 comentários:

Francy´s Oliva disse...

Renato como vai caríssimo, certa vez eu falei que não gosto de rótulos e continuo não gostando. Porque ele somente atrapalha não ajuda em nada. Adorei a forma que descreve as estradas, que são expostas a nós e muitas vezes ficamos sem saber ou com medo de seguir e o medo sempre acaba nós travando e assim acabamos por perder muitas oportunidades. Acredito que a "loucura" muitas vezes é necessária, porque quando agimos como loucos não damos importância ao falatório que sempre acontece quando tomamos alguma decisão, não é! Beijos boa semana.

Evandro L. Mezadri disse...

Muito legal Renato!
A loucura sempre é importante, nos mostra que estamos vivos, com o sangue pulsando!
Grande abraço e sucesso!

Gilberto Carlos disse...

Um filme simplesmente adorável. Também acho que sou meio louco...

Abraços.

Iza disse...

Acreditas que não assisti esse filme ainda? Quer dizer, só algumas partes, poucas partes... Ta aí, irei assisti-lo no final de semana...
By the way, ótimo texto! Adorei :)
Beijos <3

P.S: Já assistiu Enter the Void? Adoraria uma análise sua do filme, é bem... psicodélico.

Anônimo disse...

Muito bom o seu blog! Parabéns e obrigado por compartilhar o conteúdo!