10.5.15

como limão pra caipirinha

A presente resenha baseia-se numa espécie de terapia de casal via discurso fílmico. Assisti-lo foi como ouvir duas pessoas falarem sobre a experiência de desencontros na vida. Se levarmos muito a sério a palavra “desencontro” entenderemos que o prefixo esta aí apenas para fazer menção a um encontro que não deu certo. Enquanto eu revia o filme When Harry met Sally (1989) já com a intenção de analisá-lo, tive a impressão de haver muito pouco “de psicanalítico” nesse trabalho, uma vez que os diálogos pareciam-me inviáveis de serem transpostos aqui em cunho interpretativo, de forma a tornar isso de algum modo interessante. Antes que eu me dissuadisse da ideia, justificando-me com o argumento desprezível de que era devido à “indústria hollywoodiana oitentista” não produzir senão filmes para entretenimento, resolvi analisar a minha contratransferência primeiro. Assim, minha conclusão foi no sentido de fazer da oportunidade em questão a ocasião única para um rabisco discursivo sobre o amor, com vistas a se tentar extrair alguma coisa que valide a experiência de encontro do filme com a escrita. 

As traduções de títulos de filmes parecem que são capazes de revelar tudo o que uma pessoa pensa a respeito deles. Aqui no Brasil é dito que Harry | Billy Crystal | e Sally | Meg Ryan | foram “feitos um para o outro”. Como não se lembrar da música de Fabio Jr. nessas horas em sua alusão a elementos que se tornariam mais tarde imemoriais na psicanálise: as metades da laranja, carne e unha e almas gêmeas. É sempre de dois elementos postos em união que se trata. E não somente disso, mas de uma complementaridade ente eles. Numa reflexão sobre a psicanálise hoje, creio que não devemos conceber essas formas de linguagem como inferiores àquelas encontradas nos artigos de Academia, uma vez que elas também aludem às noções que os grandes mestres deixaram. Sendo assim, esta ocasião é destinada às pessoas com alguns minutos livres para “ler” a palavra de Lacan falada no retorno a Freud em articulação com esta comédia romântica.


O casal supracitado se conheceu durante uma viagem até Nova York cuja promessa, para ela, era “a minha vida começará a dar certo”. Não apenas à estudantil em questão, mas sim, de forma quase generalizada, é comum no ocidente, aos 20 anos, acreditarmos que é o momento certo para firmar os alicerces daquilo que se tornará, tempos depois, uma vida significativamente realizada. E nesse entendimento, sem chamá-lo de ilusão, o casamento – quando ainda não feito – já é previamente listado como um dos objetivos principais depois do dinheiro. A conversa entre eles, a princípio refere-se a algumas noções que saltariam aos olhos de todo aquele que leu o vol. I da Traumdeutung [A Interpretação dos sonhos] um dia. A primeira delas é o que eu considero a aceitação da verdade de que “tenho um lado sombrio, como qualquer um”.  A segunda, que acredito ser mais discutível é que “nenhum homem pode ser amigo de uma mulher que ache bonita”. São duas frases que serviriam bem como citações de caminhão, pois são esclarecedoras àqueles que têm a pretensão em firmar algum relacionamento afetivo. Ora, é a aceitação deste sombrio do outro, bem como de que as “amigas” dele ou dela te farão em algum momento sentir ciúme ou pelo menos questionar a noção de posse de objeto.


Em um primeiro tempo, o estilo de discurso entre os dois jovens tem um tom inquisitivo, como se “brigassem” enquanto conversavam, ou como se fosse uma disputa de forças entre colegiais. A imagem retratada é a de “cabeças opostas”, de uma amizade improvável entre seres que supostamente não foram feitos para estar juntos. Em síntese, o encontro de Harry e Sally mostrará as diferentes etapas da vida, as conversas sobre amantes eleitos por eles e os infortúnios dessas alianças. A narrativa do filme é intercalada com depoimentos de casais idosos que contam como se conheceram. São testemunhos baseados na ideia de que "o amor pode dar certo", e que os relacionamentos conjugais subsistem a despeito do tempo e das mudanças que as pessoas enfrentam com o passar dos anos. 

Duas observações sobre o roteiro parecem ser o suficiente como eixos de análise, sobre os quais pretendo me deter. São estas: o recurso do humor é utilizado para apresentar a situação de pessoas frente ao perigo de ficarem sozinhas; o laço do casamento é colocado em pauta como doador de um sentido de felicidade. 


Ainda que nos dias de hoje seja aceita com menor censura a decisão de algumas pessoas em questionarem a formação de famílias como sentido exclusivo da vida, a ideia de não se casar ainda é tida mais como uma “falta de alternativa” do que como escolha. O “sonho americano” de em algum lugar haver um outro que supostamente acabe com a solidão do indivíduo, é retratado no filme por meio da busca de Sally e Harry em fazer um casamento ter êxito. Eles tinham este objetivo comum, elegeram objetos de amor para tanto, e foi quando se frustraram nessa direção que vieram a se reencontrar. Foi quando passaram a compartilhar as experiências vividas e um laço de amizade se estabeleceu a partir de então.

Basta ler o título “feitos um para o outro” para entender a jogada de que dois elementos avulsos podem se dar melhor se unidos. Assimilamos essa noção a partir da imagem de duas coisas que juntas se completam e passam a formar uma (mecanismo de fusão), e somos levados a crer que isso acontece em um encontro sentimental cuja satisfação mútua no sexo esta envolvida. O compartilhamento de vivências entre Sally e Harry, contudo, formou a regra de que sexo era um terceiro excluído entre eles. A experiência de não terem um objeto destinado ao amor sexual era o fator principal que deu o alicerce a amizade. Seja para falar sobre o antigo amado que se foi, seja para mudar de perspectiva, estavam ali, um pelo outro. Portanto, é de uma ausência que aqui faço menção. Ora, a ausência de um cônjuge suposto ser aquele que resolveria o problema da solidão.


Apenas um pouco de identificação com os protagonistas é o suficiente para se perceber que o roteiro apresenta a condição de homens e mulheres como seres marcados por uma falta que se resolveria no casamento. Existe uma esperança de completude no amor, de que há um eleito e junto ao qual não se sentirá a falta experienciada no tempo em que se esteve sozinho. Nesse entendimento, nada somos senão a metade, e temos, portanto, a missão de procurar o resto, a parte faltante. Observem que a própria linguagem é bastante esclarecedora: é mais comum a fala “estou solteiro” do que “sou solteiro”. Isso revela a intenção de muitos em superar esse status bem como permite-nos a inferência de que não são poucas as pessoas que se sentem desconfortáveis em permanecer nele por muito tempo.

Sobre o segundo eixo – laço no casamento >>> sentido de felicidade – a ideia é bem autoexplicativa, uma vez que casamento é motivo de festa. Quando traduzido em termos psicanalíticos, seria a celebração de que o problema da falta-a-ser foi finalmente resolvido. Além disso, “uma só carne”, dá para ver que a união conjugal é firmada na noção bíblica como a resolução efetiva ao problema da falta.


Essas duas noções acima, quando articuladas com o fato de que Harry e Sally tornaram-se amigos ao compartilharem a experiência de separação alude inevitavelmente à questão da falta do sujeito que de resolvida, não tem nada. Vale confrontar um pouco daquilo que já foi falado em psicanálise sobre um todo que inexiste com os significantes que o sujeito traz em análise acerca de sua crença de haver uma completude no amor. 

É de discursos que se trata. Todo e qualquer desejo é o anúncio de que algo esta faltando. Lembrem-se das “primeiras histéricas” e verão que a descoberta do inconsciente trouxe tanto o discurso do sujeito como um ser que esta numa relação com um objeto de amor que lhe falta quanto à procura por tomá-lo para si, para fazer este encontro dar certo. 

Com base no encontro de Harry com Sally, é possível inferir que descobrir a presença da falta após um divórcio pode ter exatamente a função de convidar o sujeito a falar mais daquilo que o fez crer em uma completude, de maneira que as suas ilusões iniciais podem ser trocadas por novas formas de entendimento sobre o amor.  


Os testemunhos de casais idosos representam diferentes nuances de histórias amorosas, que em nossa linguagem a chamaríamos de “encontros de faltas”, isto é, a admissão de que não se é todo, e de que unidos é possível criar algo a partir disso. Não penso que o casamento que se mantém por muitos anos seja no filme retratado em alusão a alguma coisa que se perde, mas sim pautado na noção daquilo que fica. Não a "paixão juvenil perdida”, mas sim a revelação de que a falta persiste após a união de duas pessoas. Creio que a beleza suposta existir no amor esteja aí. A falta é como que a presença de uma ausência que se mantém em qualquer relação humana. O que difere uniões que dão certo e levam o casal para o “sofá do testemunho” daquelas que não dão, é aquilo que cada um fará com a sua falta. Ora, é de uma falta posterior que faço menção, aquela que se desvela após a certeza de que se estaria completo junto ao outro amado e eleito. Suportá-la, descobrir outros interesses frente a isso e amar o objeto desinvestido das ilusões iniciais é o desafio da vida. O que o discurso da psicanálise fez ao mostrar a divisão do sujeito, não foi apenas desconstruir a ideia de “um feito para o outro”, mas sim apresentar a verdade de sujeitos desejantes que fazem uma escolha em alguma direção, podendo ou não suportar o sombrio que existe no outro. A ideia de “sujeitos completos” pode ser ilustrada como a ilusão do final feliz cujo cinema hollywoodiano insistiu em mostrar. Ao desconstruir essa felicidade insipiente é possível entender os encontros amorosos como experiências faltantes, nos quais cada um é convidado a lidar com a desilusão decorrente da descoberta daquilo que o outro não é capaz de oferecer.

O diretor Rob Reiner joga com a diferença entre as singularidades de Harry e Sally e com a notória incompatibilidade entre ambos para levar-nos a pensar se a diferença seria ou não uma ocasião para o amor. Quem poderá formular isso em formato de questão e dar uma resposta definitiva? Contudo, se testemunhamos a ideia de que a completude não existe, nada mais seria, senão ilusão, crer num tipo de pessoa certa para cada ser faltante do mundo. Nessa matemática, é certo que dois não formam um, e exatamente por isso que a amizade de pessoas opostas, como Sally e Harry não poderia ser mais provável e elucidativa. 

Felicidades,
Renato Oliveira

Um comentário:

Iza disse...

Classicão com Meg Ryan.
Não sou muito de comédias românticas.
Não gosto de "meios termos": ou é só comédia ou só romance.
Sou meio chatinha hahaha.
Acho que no fundo tenho medo de me decepcionar com mais um clichê romântico hollywoodiano. Mas, tentarei assistir o filme. Já que a dica vem de você, deve ser uma boa película.
Beijos <3