15.9.15

a mulher do futuro

Quando Freud se propôs a analisar as condições de vida do sujeito em articulação com a sociedade daquela época, sentido de vida foi um tema que não lhe escapou. O conceito é abstrato, realmente, e mais apropriado ao domínio de estudos em Filosofia do que em quaisquer outros. Sendo assim, para dar uma tonalidade mais alegre à circunstância, não falaremos de sentido, e sim de ambição. Esta é uma palavra forte e parece ter um contorno mais definido. É notório também que este novo termo é mais adequado e, assim sendo, suficiente para introduzir um texto sobre um filme cujo humor é sua matéria-prima. Working Girl (1988), que se não fossem as razões comerciais, teria sido conhecido por “A trabalhadora”. 

Por que não reconhecer, desde então, que há temas que a indústria hollywoodiana sabe abordar como nenhuma outra? Não se trata de superestimação, o fato é que filmes produzidos em determinados países podem muito bem refletir características proeminentes daquela cultura. Na presente ocasião, é por um lugar na big apple (cidade grande) que será abordado, de maneira que a ambição será pensada a partir do desejo por um lugar nos negócios.

Primeiramente, eu gostaria de ressaltar que este filme dirigido por Mike Nichols permite certas possibilidades distintas de interpretação, vai do karma de cada um. Há desde aqueles que o reconhecerão como profícuo a automotivação aos que podem concebê-lo como nada muito além de um entretenimento oitentista. Não há aspiração a ser cult e a subestimação é um problema crônico em certos redutos. Há os que podem percebê-lo também como uma “briga de mulheres”, e antes que a coisa pareça o elefante que cada ser vê de um jeito, é melhor que eu me detenha a expor as ideias que me parecem caras.


É praticamente inevitável que este ensaio se destine a tornar-se uma análise psicológica de Tess McGill | Melanie Griffth |. Ora, é a história de uma secretária que assumiu o lugar da chefa. A introdução do filme revela uma cidadã de 30 anos inclinada às questões corporativas, disposta ao jogo por uma promoção na empresa. É perceptível tanto a sua intenção quanto os infortúnios que lhe ocorrem. Empreguei o termo sentido de vida que, no início do filme pode ser pensado a partir do descontentamento da protagonista com as condições de sua existência. Três razões me fazem pensar que Tess sentia-se objetificada: 1. No trabalho, foi desclassificada em um concurso para um cargo superior; 2. O namorado lhe dá de presente uma “lingerie-fetichista”, de maneira que ela diz que seria interessante ganhar um presente que pudesse usar na rua; 3. Um encontro de negócios com um tarado.  

Os planos externos, bem como aqueles filmados dentro do ambiente corporativo apresentam um considerável número de pessoas habitando um mesmo espaço, o que transmite aquele desgosto claustrofóbico pautado na noção de que não cabe mais gente no mundo. Esse sentimento tem a sua relevância, uma vez que se tratando das questões de trabalho é justamente a concorrência um dos principais conceitos que nos são transmitidos desde a educação escolar. Nesse cenário de superpopulação oitentista é que emerge o interesse da jovem em querer se destacar. 


Ao ser designada a um novo departamento dentro da mesma empresa, ela tornou-se secretária de Katharine Parker | Sigourney Weaver |. Sua mensagem de boas vindas revelou que ambas tinham a mesma idade. A personalidade da chefa é a de uma pessoa mimada, que se compraz em ser correspondida em seus interesses e caprichos. É dada certa ênfase a estas características ao longo do filme. No entanto, nem é preciso que assim o fosse para retratar uma noção conhecida por todos: a de que a posição de poder, por sua vez, não é altruísta. Assim, a tendência, com base em dados normativos, é a de que uma pessoa tende a gozar nessa situação utilizando-se dos que se encontram em posição hierárquica inferior. É o uso de poder que esta em jogo, e esse conceito é ilustrado a partir das atividades adversas exercidas por Tess além daquelas comuns ao papel de secretária. De calçar patins em Katharine a servir aperitivos em eventos.

Eu empreguei um verbo que acredito ser elucidativo: usar. Nas relações de trabalho, há tanto o entendimento de ser uma mão de obra usável quanto a fazer um uso do lugar que lhe é destinado em uma empresa. Tess dá indícios de ter ciência da posição que ocupava, mas pelo interesse de crescimento profissional, e, acima de tudo, ambição e intrepidez, ela passou a fazer um uso diferenciado deste lugar. Que uso foi este senão a miragem de transposição? É uma imagem simples de ser explicada. Ela reconheceu que K. Parker tinha as condições de vida sonhadas, um eu ideal que representava o lugar que ela, enquanto secretária, sonhava alcançar. Esse vislumbre poderia resultar em uma aliança entre ambas, de modo que a big boss seria concebida como a ponte para a ascensão. O “acordo verbal” de início foi este – “via de duas mãos, lembre-se”


A experiência, contudo, mostra que não se deve contar com pessoas indiferentes ao teu crescimento, seja ele profissional, pessoal ou whatever. Ademais, é desafiador manter-se focado em fazer uso de uma oportunidade para promoção num contexto em que pessoas influentes o subestimam. Ainda que esse não seja o principal tema em questão, deve ser mencionado, uma vez que Tess dava provas de interesse na busca por informação, isto é, ambição por reunir conhecimentos imprescindíveis a quem almeja cargo de gerência. Tess, a heroína, revela: “leio muitas coisas, nunca se sabe de onde virão as grandes ideias”

Esse contato com a velocidade da informação fez com que Tess se interasse sobre um projeto que não ouso explicar e propusesse a K. Parker um negócio que poderia ser exitoso. Ela compartilhou sua grande ideia com a “poderosa da firma”. Sabem aquela noção de direitos autorais? Isso esta em pauta, uma vez que Tess descobriu que sua ideia fora levada adiante pela chefa, que ousou contatar um dos empresários envolvidos, fazendo-se passar pela criadora da proposta. Ao tomar conhecimento disso, durante um período de ausência de K. Parker após fraturar o pé, a decisão de Tess não foi outra senão reagir. O plano seria assumir a autoria do projeto, ainda que tendo que ocupar-se temporariamente do lugar de K. Parker.


Sem a devida atenção aos detalhes do filme, alguns podem ter compreendido que ela se passou pela chefa. Ainda que tenha utilizado suas roupas e ocupado sua poltrona, não concordo. Tess não fez uso do significante “K. Parker”, na realidade, ela se identificou com a posição de poder que esta se encontrava. Soube como copiar seu modo de falar e principalmente suas condutas em um universo propriamente masculino. Suas principais motivações eram o desejo por ascensão somado ao despeito devido à usurpação de sua ideia. Ademais, ao fazer semblante de “mulher de negócios”, ela nada mais fez senão seguir um conselho da própria superior: “Tess, não se chega a lugar algum no mundo esperando que as coisas venham até você. Você faz acontecer. Observe Tess. Aprenda comigo”

É certo que existe na própria trama do filme um sentimento de inconformismo, que favorece o aprendizado por identificação. Isso, em vocabulário analítico, não é nada mais senão a introjeção do objeto no ego e uma fusão de ambos. A esse respeito, pode-se equiparar diretora e secretária sem que pareça que ambas sejam pessoas distintas. O filme, assistido a partir da ótica de Tess traz a impressão de sua fantasia, na qual a distância hierárquica que as separavam não era uma transposição de difícil alcance. Talvez o otimismo dos filmes daquela época nos ajude a vislumbrar o impossível com maior facilidade. Ainda assim, há uma imagem que metaforiza a distância entre as duas, trazendo realismo. Na casa de K. Parker havia quatro quadros de pop art com o seu retrato que reunidos davam a impressão de ser apenas um quadro. Tess o observava, de maneira a formar o entendimento de que quanto ao poder na empresa, a chefa era quatro vezes maior.



Para levar a “grande ideia” adiante, Tess precisaria convencer o empresário Jack Trainer | Harrison Ford | a aderir à causa.  Há um flerte entre eles numa festa antes mesmo de uma primeira reunião de negócios. Um comentário dele deve ser destacado: “você é a primeira mulher aqui que se veste como mulher, não como uma mulher pensaria que um homem se vestiria se fosse mulher”. A riqueza dessa observação é de uma grandeza tal que poderia tornar-se um livro. Detenho-me, contudo, ao que é mais peculiar ao contexto. 

A essência do filme é a busca por um lugar no mundo corporativo. Tess buscava uma ascensão e para tanto precisava ser notada. Mesmo sendo um local em que outras mulheres também disputavam por espaço, ainda assim, trata-se de um ambiente em sua maior parte masculino. É comum o reconhecimento de que naquela década, o "mundo dos negócios" era um lugar em que homens ocupavam as maiores posições, e algumas mulheres, tinham locais de destaque enquanto exceções. Era limitado o número de mulheres que conseguiam se equiparar aos homens. Estava travado, portanto, um embate de gênero. Tess McGill almejava um diferencial. Enquanto possíveis outras funcionárias batalhavam por "masculinizar-se", ou seja, fazerem-se fálicas como uma tentativa de ganho de respeito nesse lugar, ela decidiu tomar como referência K. Parker e fazer-se mulher, mais ainda. Para tanto, utilizou-se de ornamentos que realçassem a feminilidade, de modo que ela fora notada por Jack justamente por isso. 


Este filme é uma das melhores alusões já feitas à indagação primordial de Freud quanto ao que deseja uma mulher, pois insere este questionamento em um contexto, e assume a missão de, se não respondê-lo, ao mínimo oferecer material para discussão. Pode-se assim pensar quanto ao que deseja uma mulher nas questões de trabalho, e de que maneira ambicionar é um modo de manter o desejo circulante. Além disso, suscitar um debate quanto ao mistério em torno de recursos que uma mulher possui para fazer-se mulher num contexto em que homens estão identificados entre eles. A noção de identificação fálica pode ser pensada como uma reunião de homens, em sua maior parte, que estão conectados a um objetivo comum e que admitem a inclusão de outros homens para este mesmo intento. Isso pressupõe certa massificação, que é fácil de ser visualizada a partir da forma como homens estão vestidos em um mesmo ambiente corporativo. Para incluir-se neste, é dedutível que uma mulher busque tornar-se homem, no sentido de estar identificada com a posição masculina, ou que, de outro modo, para alcançar uma posição de destaque, ela faça-se mulher a partir de um referencial feminino, que não, evidentemente, a questão do falo, que é o óbvio, o já posto. Agora, em que consiste esse referencial feminino é uma das maiores questões analíticas cuja resposta escapa.

Para tornar essa noção estranha ainda mais emblemática, destaco que tenho a opinião de que Tess estava identificada com o falo em uma posição feminina. Assimilar o filme como a "história de uma impostora" é insuficiente, mas o termo me agrada. O verbo impostar significa emitir corretamente a voz. A direção tomada por Tess foi esta, não só ao imitar a dicção de K. Parker, mas em todo o decorrer de sua identificação com ela – “tenho cabeça para negócios e corpo para o pecado”. Mas, para atingir seu objetivo durante a ausência da chefa, ela precisou fazer-se mulher e ser reconhecida como homem por outros homens, ou seja, como ligada ao poder. Só assim para ser admitida no “grupinho de engravatados” cujo falo era a única orientação possível. "Fazer-se mulher" contempla um processo de criação, cuja noção deve ser pensada a partir da descoberta da própria feminilidade. No caso de Tess, uma "feminilidade corporativa".


Deve-se notar, contudo, que ela não assumiu a posição de K. Parker unicamente por suas pretensões; foi preciso que outro a colocasse nesse lugar. Somente ao ser reconhecida por Jack como uma "mulher de negócios" foi que ela realizou uma troca de lugares: Cyn | Joan Cusack |, a amiga, fora colocada como sua secretária para que ela assumisse oficialmente a poltrona de K. Parker. É de um autorizar-se por si mesmo que se trata.

A amiga, embora irreverente, buscava representar o "princípio da realidade", o que somente aumentou a convicção de Tess quanto a seu desejo por ascensão. A real pessoa que exerceu a função de lhe dar "choque de realidade" fora a própria chefa ao anunciar o seu retorno previsto. 


A temática “brincar com o perigo” foi a ocasião propícia para alusão a questões da feminilidade comuns a teoria analítica. As características emocionais de Tess – diligência, ineditismo, iniciativa, criatividade, entre outras – quando pensadas a partir do título do filme traduzido no Brasil, “A secretária do futuro” parece ter um tom premonitório. Talvez fosse suposto que vinte anos depois seria maior o número de mulheres em posições de destaque em empresas, ou tão somente alguém imaginou que, no futuro, o fazer-se mulher seria um dos mais modernos assuntos de causa analítica, cuja não resposta aparente gera em nós um descontentamento, similar ao de Tess, possivelmente. 

Renato Oliveira

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