18.10.15

born to be wild

Uma das concepções mais piegas já inventadas é a de que, nos relacionamentos afetivos e sexuais as pessoas precisam fazer uma escolha em papel timbrado quanto ao sexo com o qual pretendem se relacionar. Logo em seguida, dar provas de que estão muito bem resolvidos nessa decisão. O cinema, assim como outras linguagens da arte, intencionalmente foi utilizado para embaralhar essa noção estática socialmente concebida de que a orientação sexual é fixa, rígida e intransferível. Dentre os resultados, faz com que pessoas comuns questionem seus valores pessoais bem como a educação que lhes foi transmitida, e ademais, consegue alterar os humores daqueles que não se agradaram com a intencionalidade da proposta. As identificações interpessoais são transitórias e a recusa em aceitar essa noção pode gerar catástrofes. Para que o filme de hoje, em formato de texto, possa ser sentido, é recomendável ligar o botão do free e aceitar a tese de que as relações humanas são perturbadas. Nessa composição, também há lugar para se repensar o postulado de Freud quanto às identificações que culminam numa organização sexual definitiva.

Hoje eu tenho novamente a missão de escrever uma resenha sem expor fatos que revelem o desfecho do filme, mesmo ciente da pertinência dos mesmos. Ocultá-los é a melhor escolha, pois julgo não ser louvável desfazer o prazer da surpresa. Savage Grace (2007) nos é contado pela narrativa da carta de um filho dirigida ao pai. A direção é de Tom Kalin, a história inicia-se em na década de 40 e transita pelos anos de autodescobertas de uma família. Ainda não obtive a constatação de que esse filme tenha caído nas graças de certos meios psicanalíticos. Em seu lançamento, deduzo que assim fosse esperado, pois ao abordar uma clássica relação triangular edípica, ilustra um dos temas mais clássicos que saltou às vistas de Freud. 


Num núcleo de gente rica, são apresentadas cenas de um casal mediadas pelo relacionamento com um bebê, nascido para ser selvagem. Nada poderia parecer mais caricato ao cenário analítico do que a apresentação de uma família em que a figura materna demonstra afetividade e é fisicamente próxima ao bebê, enquanto o pai lhe é distante. Essa é uma primeira impressão, e se o nível de ansiedade estiver elevado, logo faremos a suposição de que a criança desenvolverá uma fixação amorosa na mãe e odiará o pai. 

Devo ressaltar que o mais interessante é aceitar que essa configuração esteja presente na história, embora esta não se limite a mostrar a formação de uma cena edípica. As características pessoais dos envolvidos bem como a riqueza de discursos surpreendem aqueles que, com suas respostas prontas sobre o Édipo, creem dominar o assunto.  


Quando era um bebê, a mãe Barbara Baekeland | Julianne Moore | é vista a exercer o holding para com a adorável recém-chegada criatura. 12 anos depois, o filho Tony Baekeland | Eddie Redmayne | retribui parte do carinho dado ao levar à mãe o café da manhã na cama. Ele diz que se sente desamparado ao estar sozinho e recebe três beijos, sendo um nos lábios. Esta cena é um indício satisfatório para supor uma relação de proximidade emocional e física entre mãe e filho. Tony afirma que “gostaria de vir primeiro” aos compromissos sociais da mãe. Até aí, tudo bem (em termos). Quando se trata de representar o universo infantil e o apego pelos primeiros objetos, é suposto que certo tom melodramático seja praticamente inevitável. Isso é resultado da fantasia da criança em ser amada pelos pais e investida afetivamente por um deles, que tende a produzir um desejo de aproximação que se quer constantemente repetir. Uma criança dizer que gostaria de "vir primeiro" ao desejo da mãe pode ser efeito de um saber inconsciente quanto ao desejo dela. Reconhece-se como parte desse desejo. 

Outros dois detalhes deste momento inicial são importantes para complementar as ideias expostas. Barbara diz que o remédio que pelo filho foi trazido seria um segredo entre ambos. Não é preciso teorização alguma para se entender que um dos maiores laços com outra pessoa é estar ligada a ela por palavras, isso pode ser emocionalmente sentido como um pacto. Detendo-se a este pequeno segredo em questão, quem dentre nós responderá como é sentir que um dos pais esconde coisas do outro e você é utilizado na trama? Se este primeiro detalhe foi de Eros, o segundo, certamente, pertence ao exercício de Tanatos: o pai numa luta de espadas. O fato de essas duas cenas serem seguidas pode sugerir uma cisão, na qual – de acordo com as estatísticas – a figura paterna é concebida como a representação do poder enquanto a materna esta ligada ao amor. Lógico que não são lugares fixos e que o desenvolvimento psíquico consiste exatamente em desinvestir essas figuras dos locais em que na infância foram colocadas. 


Ainda sobre o amor, durante um passeio no parque, Barbara pergunta ao filho: “continuará me amando quando meu cabelo estiver branco e meus peitos caídos?”. A ocasião foi oportuna para revelação de detalhes geracionais, ao mencionar a avó como aquela que a orientou a casar-se – “’procure o homem’, dizia. O homem a que se referia, suponho, era o dinheiro”. Por fim, acrescenta: “os ricos não põe apelidos no dinheiro”, mas os psicanalistas sim, de maneira que este, em algumas condições, passa a ser chamado de falo. Nesta conversa, foi transmitida ao menino parte da herança emocional da família, na qual o casamento era uma convenção e o dote exercia plena influência na decisão a ser tomada. Nada muito além do que um arranjo em que lugares e ocupações eram destinados às pessoas. A minha opinião é a de que nos dias de hoje, não mudou muita coisa no resultado final, apenas o falo, enquanto objeto circulante – algo que é colocado no lugar da falta – é que se desloca do dote-dinheiro para outros atrativos que determinam a decisão de duas pessoas ficarem juntas.

É assim que esse dote paterno é dado a se tornar conhecido. Barbara se refere ao esposo Brooks Baekeland | Stephen Dillane | como alguém que escreve, explora e possui bons conhecimentos em matemática. Como uma criança descobre quem é um pai? A pergunta tem certa relevância se partirmos do entendimento de que seja pai, seja mãe, seja biológico ou não, uma pessoa vem a tornar-se conhecida pela criança como um objeto total por vias discursivas. Nesse caso, o menino assimila quem é o pai a partir de um referencial feminino, como se ela lhe anunciasse: "estou a dizê-lo quem é o pai para mim". Se minha memória não me trai, ao abordar as pesquisas sexuais infantis, Freud incluiu uma questão quase metafísica: a curiosidade da criança em descobrir o que a mãe viu no pai. Barbara respondera a partir da equação falo > = dinheiro.


Com a passagem dos anos e inclusão de um quarto elemento nessa relação triangular, os protagonistas puderam dar provas de serem mais perturbados do que a suposição de pessoas comuns. Blanca | Elena Anaya | é apresentada como a “garota de Tony” num contexto em que ao espectador mais atento é notório que não há uma intensa ligação física ou emocional entre eles. A este respeito, o ceticismo de Barbara se traduz em palavras: “uma mãe sabe quando seu filho esta gostando de alguém”. Sobre a formação de elo afetivo-sexual, é concebível que Tony fora capaz experienciá-lo com Jack | Unax Ugalde |, ainda que se mostrasse hábil e extraísse satisfação na relação sexual com Blanca. 

Após ser incluída no roteiro, essa jovem demarca uma nova repartição. Ela se envolve, na realidade, com Brooks, e um casal a partir de então é formado. A ex-esposa sentiu-se traída e fez escândalo; a Tony o fato pareceu indiferente. Agora é o momento de empregar um discurso do pai para aludir a quem era Barbara: “quero dizer, sua mãe era uma atriz, e de certo modo continua sendo”. Creio não ser exagero afirmar que Blanca estava para Brooks assim como Tony estava para Barbara. Isto é, o segundo tomando o primeiro como objeto de investimento libidinal. 


Não se trata de um filme sobre relações de amor, julgo na verdade, ser apropriada a referência às ligações afetivas e sexuais presentes a partir de noções da paixão, das identificações e da incorporação de objeto. Ao escrever a carta ao pai, Tony admite a condição de falta da mãe, cuja ligação ao filho tornara-se ainda mais intensa com a saída do esposo. Sobre a ligação mãe e filho na vida adulta, o roteiro mescla cenas singelas com outras que sugerem uma mãe voraz por atenção e prazer, cuja demanda é de difícil apreensão. Dentre outros detalhes que poderiam ser destacados desse período após a separação do marido, creio que o envolvimento de Barbara com Sam | Hugh Dancy | é um fator crucial em pauta.

Um amante com idade próxima a do filho: uma equivalência bem feita. Algumas interpretações não requerem grandes argumentos. A não obviedade disso é que Sam estava para Barbara como para Tony também. Ele seduz a ambos. E antes de acharmos que há alguma incongruência nisso, os três reunidos na cama, com Sam entre eles, começam a gargalhar. É da sociedade moralista que eles riem... E também da nossa cara em achar ménage à trois uma prática moderna. 


É notório, portanto que não era de falta de sexo que eles padeciam. E o termo “padecer” só pode ser apropriado se pensado a partir de uma reflexão sobre o fato de mãe e filho anunciarem um descontentamento com suas vidas. Não é apenas de um tom de desgosto existencial que se trata; a ligação entre Barbara e Tony desperta o sentimento de que algo não ia bem. Sendo assim, reunir em síntese o que até aqui foi exposto pode ser válido para nortear uma interpretação derradeira sobre o filme. 

Inicialmente, a condução do roteiro parece sugerir a compreensão de que o filho muito apegado com a mãe necessariamente terá o pai como rival e não será capaz de superar esta dependência amorosa nas relações futuras. No entanto, não é de fato o que ocorre com Tony, uma vez que o pai não é atacado na vida adulta, bem como sua ausência é sentida como falta, de modo que na carta ele é chamado a ocupar novamente um lugar, não o de pai – supondo que esse dever estivesse concluído – mas o de esposo. Em outros termos, isso é um indicativo de que os sentimentos de inveja primitivos próprios à fase edípica foram superados. Seja pela não rivalidade com o pai, seja por reconhecer que à mãe algo faltava que ele, enquanto filho, não era capaz de oferecer.

Tony se reconhece como tendo um pênis, um suposto falo a ser ofertado, e o julga ser insuficiente, pois admite não ser capaz de satisfazer a mãe. A recusa em atender ao pedido materno não é somente uma submissão à lei do incesto, pois primordialmente representa um entendimento da fantasia de Barbara, na qual pede por um filho ainda criança. Recusar a manutenção da ligação fusional é uma forma de anunciar à mãe que a sua procura por satisfação deveria ser canalizada para outro objeto que não o filho. 


É difícil assimilar o que Barbara queria ao manter-se ligada a Tony e demandar-lhe que a satisfizesse sexualmente. Há coisas que somente podem ser ditas por meio da arte, e às vezes, com a arte dentro dela mesma. Ao analisar o quadro que Barbara pintava, é possível supor qual era sua demanda às figuras masculinas. A pintura era a de uma mulher que segurava um bebê aos braços, que pelos traços reconhecemos como um autorretrato. Isso nos indica o possível desejo dela em existir enquanto mulher ao SER MÃE, de sentir-se toda neste papel. O crescimento do filho era sentido como perda, como anulamento de si mesma e talvez só pudesse ser concebível com o compartilhamento de objetos sexuais. A aflição de Barbara era por não encontrar outra posição feminina que falasse de seu sexo senão a ligada ao bebê.  

Penso que a tentativa de Tony de religar a mãe ao pai era uma possível saída para a demanda dela em fazer-se presente na vida do filho, mais ainda. Havia uma tentativa de desligamento da parte dele e um cansaço por ter que estar junto a ela. Não é por menos que Sam o nomeia como um “cuidador” e diz que alguém deveria prestar-lhe cuidados. 


A identificação com a mãe, cujos primórdios foram aqui mencionados, pode certamente ser tida como a causa e o desdobramento de toda a situação. Como fomos instruídos desde o início de nossa relação com a obra de Freud, o jogo de identificações edípicas consiste em pegar uma referência – “com quem quero me parecer?”. Pode ser paranoia da minha cabeça, mas a forte ligação entre Barbara e Tony recebeu um correspondente no corpo. Ora, conforme são mostradas diferentes etapas da vida, as tonalidades de cabelo de ambos (do ruivo ao castanho) parecem cada vez mais próximas, como se eles estivessem sincronizados por esse referencial estético. 

É certo que sustentar uma identificação ao longo dos anos cujo cerne era ligar sexualmente mãe e filho tornou-se uma rotina intolerável. Assim, cabe uma indagação quanto à finalidade da carta ao pai: era necessário a Tony livrar-se dessa mãe, devolvê-la ao dono para que a mesma se curasse, ou era para livrar-se de seu próprio desejo de ceder que ele o fazia? O testemunho do filho foi expresso nos termos: “às vezes tenho uma mente maldita e não sei o que fazer com ela, mas tento combatê-la com toda a minha alma”. A solução para esse retrato do intolerável seria como pesos tirados dos ombros, o encontro como uma graça salvadora, porém primitiva, que propusesse assim um sentido de liberdade. 

Um abraço,
Renato Oliveira

Um comentário:

M. disse...

Realmente, esta relação mãe e filho foi bem exposta aqui em seu texto. Esse é um filme forte e questionador.