26.9.16

a coisa em Derek Jarman

Cinema e psicanálise – composição interessante a partir da qual surgiu este blog no ano de 2009. Esta especificidade, contudo pode parecer ampla dado que existem muitas linguagens fílmicas e algumas escolas de psicanálise. Cinema do Derek Jarman e a psicanálise: aqui a coisa já é mais específica. Os filmes que receberam algum tipo de tratativa analítica neste presente blog foram previamente classificados como passíveis de interpretação, mas quando se trata das obras do Derek, ser analisável ou não significa pouco. Ora, ainda que não houvesse nada de propriamente freudiano em seus filmes, o artista seria tema de uma resenha do mesmo jeito. Afinal, foi concedida àqueles que conheceram sua obra enquanto artista plástico e diretor, a oportunidade de levar o legado à frente. Deste modo, a necessidade de se falar sobre o cinema de Derek Jarman se sobrepõe ao que pode haver de Freud enquanto presente ou ausente em seus trabalhos.

Um termo acima expresso vale seu reemprego: coisa. Pode-se debater acerca de uma “coisa freudiana”? Eis o desafio de se usar uma expressão comum sem cair na vulgaridade num espaço de livre acesso cujas regras não respeitam nenhuma formalidade acadêmica. É a tarefa de articular pressupostos cruciais da psicanálise enquanto campo de saber de maneira clara e acessível sem que isso vire um palco de alegorias. Mas sim, e a coisa? Há uma “coisa freudiana” que se destaca na obra do tio austríaco e pode ser pensada em termos de seu desejo de saber. A análise do sintoma e a estruturação de uma técnica psicanalítica justificam a coisa: é a representatividade do sujeito. Em outras palavras, a demarcação da existência do Inconsciente revelou a singularidade de um ser. Se este sujeito freudiano enquanto “a coisa” tornou-se conhecido é porque não foram poucos os esforços em validar o saber relativo a tal, em insistir na atualização de seu conhecimento. E o que há em comum nisso com o Derek é que este, em seus filmes, igualmente revela uma representatividade de sujeito. Que sujeito é este? Pode ser o sujeito do Inconsciente... Ou o do corpo. 

Tilda Swinton e Derek Jarman. Fotografia por Angus McBean, 1987.
Sua obra pode ser, para fins didáticos, cindida em dois tempos, num primeiro (1976 -1991), tem-se a representatividade do ser desejante e, numa segunda parte, é do artista por ele mesmo que se trata (1993-1994). É notório que Derek explorou os mais distintos modos de expressão visual e discursiva e seu cinema reflete questões de seu tempo que, por sua vez, são tópicos de nossa era, tal como a anulação do sujeito. Representar um ser ou mesmo uma comunidade diz respeito a torná-los conhecidos, a fazer com que seus valores, opiniões e anseios sejam compartilhados. Conhecido como pioneiro no “cinema queer”, em seus filmes a homoafetividade é abordada com total naturalidade. Frente à condição repressora daqueles anos, ele insere os relacionamentos gays em situações da História, desde os vínculos orgiáticos da Roma antiga em Sebastiane (1976) a uma abordagem da problemática causada pela igreja cristã ao postular a homossexualidade como desvio em The Garden (1990). Já em Caravaggio (1985), ele utiliza-se da biografia do famoso pintor para enaltecer a beleza do encontro afetivo e sexual entre dois homens. Este louvor ao sujeito desejante, livre de quaisquer amarras de censura sociais, também esta presente em The Tempest (1979) e The Angelic Conversation (1987). São trabalhos em que há um forte cunho subversivo, pois nota-se que, diferente de filmes daquela época, não se utiliza de “personagens gays” para mostrá-los enquanto meras vítimas afetadas por um regime social opressor. Seja no grupo de marinheiros em 1979, seja no casal angelical em 1987, Derek constrói uma estética na qual a homoafetividade pode efetivamente ser representada. No primeiro caso, é por meio da dança, e no segundo é mediante a exaltação do vínculo entre um casal, permeado por recitações de Sonetos de Shakespeare. A leitura que Derek fez de sua sociedade foi profícua para fomentar no artista uma indignação crítica quanto ao não-lugar do sujeito. Este sujeito por ele apresentado constitui aquele que precisava ser visto, é, portanto em termos de uma notoriedade indispensável que ele apresenta e articula a união gay. Como mencionado, seus três últimos filmes seriam diretamente “o artista por ele mesmo”. Em Blue (1993) Derek realizou o inimaginável: um filme todo em uma tela azul, no qual ele expressa uma autobiografia falada. O filme apresenta seu modo de enxergar o mundo, bem como a experiência de lidar com o HIV positivo em estágio avançado. É com a representatividade do artista e do sujeito desejante em sua obra que extraímos a verdade de que o não-dito precisa ser falado. 

A insistência de Freud na “coisa” bem como a riqueza de sua produção escrita que temos acesso demarcou o lugar do sujeito enquanto dividido pelo Inconsciente e à busca de poder desejar. Aqui o termo desejo deve ser pensado realmente em termos de necessidade vital, pois é ele que faz com que o sentido de estar vivo não deixe de se reinscrever. É esse ser desejante, castrado pela igreja e catalogado enquanto não-lugar, que recebeu notoriedade no cinema de Derek Jarman. Ele transformou o seu próprio desejo de saber em linguagem artística, deu um lugar à voz do sujeito.

Até daqui três semanas,

Renato Oliveira

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