12.5.17

da mãe pródiga à suficientemente louca

“Feliz dia das mães” é uma frase de forte apelo comercial. Ao se afirmar isso neste presente canal de comunicação, nada mais se faz do que repetir o fato de que a data é firmada para atender aos interesses de lucro do mercado. A existência de “mães simbólicas” além das biológicas aumenta a perspectiva de faturamento. Nesta escrita, contudo, não se falará de “psicanálise do consumidor”, pois há uma dimensão muito mais apreciada pelo saber analítico, aquela que reflete toda a afetividade existente no ser mãe. A partir daí, se fala em posição materna bem como na ideia de vínculo e, sobretudo, é sabido que o ser mãe pode ter seu início ainda na infância, quando o desejo de conceber um filho começa a ser elaborado. A data comemorativa articulada com o cinema e a psicanálise nada nos traz senão a realidade de sentimentos despertados por este vínculo, que podem ser das mais diferentes ordens, mas nesse ensaio, é claro, se abordará sobre conflitos. Ora, as mães do cinema aqui elencadas não são outras senão aquelas cuja dimensão afetiva suscitada pela relação com o filho é objeto de interesse da psicanálise. Assim, há desde o lugar para a pródiga quanto para a mãe suficientemente louca.  

O título no Brasil “Stella Dallas Mãe Redentora” (1937) é analítico por excelência. O melodrama retrata uma mulher à qual a demanda “ser mãe” foi aceita e tomada como missão. É um retrato curioso de uma mulher excluída do lugar de esposa por apresentar uma excentricidade de comportamento incompatível ao conceito de normalidade do marido. Com a saída dele, é notória a entrega da personagem à posição materna. Este filme de King Vidor fomenta uma discussão sobre a feminilidade baseada na concepção freudiana de que a maternagem seria uma possível saída para a mesma, de modo que ao tornar-se mãe, uma mulher encontraria uma via de acesso à feminilidade. O filho não somente ocupa a função de objeto da falta, como é capaz de temporariamente ser resposta ao inquérito do que é ser uma mulher. Logo, a ascensão da personagem à posição de mãe pode ser pensada não apenas como um enaltecimento da criança, mas como uma via de saída para encontrar-se enquanto mulher nesta posição possível.   

Uma filha objeto de desejo também é tema principal do filme “Belíssima” (1951) de Luchino Visconti. Do mesmo modo que no anterior, o pai é uma figura sem destaque na trama. A criança é eleita para brilhar, de modo que a mãe, em esforços frenéticos, faz tudo a seu alcance para que a filha seja admitida como estrela mirim de cinema. Vale destacar que é proveniente do discurso da mãe a crença de que a filha é suficientemente talentosa para tornar-se atriz. A criança, na trama, existe tão somente como extensão deste desejo, como aquela que é convocada a responder do lugar de falta materno. Em outras palavras, a mãe em questão revive na relação com a filha o desejo de ser ela mesma reconhecida enquanto talentosa. Ademais, eis aqui a oportunidade de questionar se somente um filho menino pode ter a função de falo para uma mãe, dado que a filha em questão é eleita como troféu, reconhecida exclusivamente pela mãe como portadora de um dom para o sucesso. 

Fotografia do filme "Sonata de Outono" (1978)

Opostamente ao super investimento na filha, há o lugar da filha dejeto tão bem representado em “Sonata de Outono” (1978). Este é o drama bergmaniano do retorno da mãe pródiga, cujo auto-investimento no decorrer da vida se sobrepôs ao interesse em “ser mãe”. Há um reencontro entre ambas marcado pelo o que pode ser chamado de um reacender de antigos conflitos emocionais, nunca perdidos, apenas mantidos sob a condição de desligamento. A expressão do talento da mãe enquanto pianista evoca o lugar de igualdade que a filha foi chamada a ocupar. Não sendo, contudo capaz de atingi-lo e ao mesmo tempo torturada pela demanda materna, é possível que a filha tenha se tornado uma quase resposta a este desejo. Em outras palavras, o reencontro físico entre elas pode metaforicamente representar o reaparecimento da criança emocionalmente vulnerável bem como disposta a atingir à condição de excelência anunciada no desejo da mãe. O elevado eu-ideal materno imposto não poderia resultar senão em frustração. 

Conclui-se assim que “mães do cinema” é um termo inadequado, dado que elas trazem à tona seres reais. Nada é mais comum à experiência cotidiana do que a realidade de crianças que são convocadas a responder do lugar de falta materno, podendo ser super investidas emocionalmente ou até mesmo tomadas como dejetos. É certo que o encontro entre mães e filhos promove a emergência de sentimentos até então esquecidos. Os afetos provenientes destas mais antigas relações foram desde sempre apreciáveis à leitura analítica, que indagou as motivações em torno do “ser mãe” ao longo da história. Em adição a estes afetos espinhosos quando não dolorosos, é certo que a relação com as mães é produtora de um impulso à vida, que implica na descoberta de que não se é tudo ao desejo materno. É somente com a aceitação deste “não se é” que se pode vir a ser alguma coisa que se sobreponha a arquitetura de desejo de outrem

Felicidades,
Renato Oliveira

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