9.7.17

orgulho gay em preto e branco

Oficialmente Junho foi o mês do orgulho gay, ainda assim sempre é tempo propício para expressão da diversidade. Ora, só se pode falar em diversidade porque há norma, leis que regulam não somente o desejo, mas formas plausíveis em que este pode ser expresso. Para os presentes fins, aqui se irá contrapor o atual orgulho pela vivência de uma identidade homoafetiva a uma época em que a prática homossexual era punida com prisão. Ainda que o título no Brasil – “Meu passado me condena” – sugira uma comédia ou mesmo sátira, é de um drama que se trata o filme “Victim” (1961) dirigido por Basil Dearden. Não tão conhecido quanto deveria ser, é, contudo um clássico do cinema gay dado não somente a relevância à época, mas sua importância histórica para se refletir acerca da emergência do mal-estar pelo exercício da sexualidade. Neste filme sobre crime, eis um homem de lei que envolveu-se sexual e afetivamente com um jovem que, ao ser preso por roubo, suicidou-se. Este relacionamento foi mantido em segredo. A síntese é esta. O roteiro explora as práticas de uma gangue organizada que chantageava aqueles que fossem descobertos como homossexuais. Em troca da liberdade civil, valores eram pagos periodicamente a este grupo homofóbico. Observem que o termo “homofobia” soa fora de contexto se pensado na realidade dos anos 60, inclusive no Brasil. Numa prática reguladora que (re)produzia o modelo de identidade heterossexual como norma, afrontar este padrão seria o mesmo que inserir-se como um fora-da-lei. Pode-se assim pensar que, dada a circunstância social do filme, os principais criminosos, pela ótica da sociedade, não eram os chantagistas, mas sim os homossexuais. 


O roteiro de “Victim” possui uma linguagem difícil de ser assimilada, ainda que pautado no modelo de film-noir, o que, por sua vez, garantiria um bom entretenimento. É um filme que re-atualiza “o lugar marginal” no qual gays e lésbicas são ainda socialmente colocados. Chama a atenção o fato de que o principal fora-da-lei seja, por sua vez, um homem de lei, como mencionado. O personagem de Dirk Bogarde é um advogado em ascensão que ao saber da morte de seu ex-amante inicia uma empreitada na busca pela identidade dos chantageadores. Ele coloca em risco não apenas sua posição familiar quanto sua liberdade civil, dado que no caso da exposição de uma fotografia sua com o jovem, ele seria sentenciado. O paradoxo é notório: ele defendia uma lei, fazia-se representante desta que o condenaria. 

Estes termos aqui mencionados se transpostos para a linguagem analítica podem ser válidos para a reflexão quanto a que lei é feita referência ao se tratar do campo do inconsciente e do desejo do sujeito. Certamente a lei em psicanálise é proibidora no sentido de estipular um limite, de barrar ao sujeito o usufruto sexual com os genitores. É a partir da submissão a este limite – o jogo edípico e a proibição do incesto – que um universo maior de possibilidades sexuais é ofertado. É onde entra a questão: e o que fazer com isso? Ao mesmo tempo em que parece absurdo conceber hoje um mandato de prisão em decorrência da prática homossexual, há uma similaridade na regulagem do desejo, na maneira como ele era vivido no filme de 1961 e nos dias atuais: o underground e o não-dito. Em muitas realidades sociais contemporâneas, estas grandes ofertas de possibilidades sexuais como herança da internalização da lei paterna não são tão grandes assim. O sujeito esta frente a um limite, a uma proibição, bem como a um ideal heteronormativo intergeracionalmente firmado que estipula modos de comportamento aceitos bem como regulamenta o que se espera de cada um. Se com os genitores – na verdade aqueles que fazem funções paternas e maternas, a despeito do sexo biológico – aprende-se a desejar, descobre-se igualmente que a prática deste desejo atravessa a expectativa dos mesmos, o que dá lugar a um exercício sexual homoafetivo que muitas vezes ocorre no “underground”, como que fora dos olhos da lei. O ocultamento assim como o nada tenho a dizer disso podem ser pensados como formas de adaptação do sujeito e de enfrentamento frente a um laço social ainda hostil à homossexualidade. Podem constituir-se também medidas temporárias até que o sujeito construa um lugar para o seu desejo. 

Como destacado, há correspondências entre o contexto de crime presente no filme com a sociedade atual. Por outro lado, duas palavras destacadas no discurso das personagens em referência à homossexualidade não mais podem ser admitidas hoje, são elas: pervertidos e vítimas. Aqui, o significado de abuso, de desvio de uma “sexualidade normal” é recusado no que se refere a um contato e vínculo homoafetivo, bem como “vítima” anuncia um lugar de assujeitamento, de impossibilidade de implicação, que é exatamente o oposto daquilo que se produz em uma análise. Dado que há um saber analítico mediante o qual aposta-se na escuta do sujeito para promovê-lo como desejante, este deixa de ser vítima para tornar-se responsável. Em algum lugar foi escrito que a escuta é um ato de amor, aqui se acrescenta que é uma forma de des-criminalização. O contexto analítico é este que des-vitima o sujeito, que faz advir o não-dito e a este confere um lugar. 

Renato Oliveira

2 comentários:

Samuel Lima Xisto disse...

A chantagem por discrição lembra a história do bairro Bonfim, em Belo Horizonte, durante os governos assumidamente militares.
O Bonfim era endereço do baixo meretrício, ao lado da Lagoinha, porém, bem mais licencioso e boêmio. Ainda hoje ponto de prostituição, com predominância de travestis, durante os governos assumidamente militares, oficiais surpreendiam clientes de travestis nos quartos e os extorquiam para que eles não fossem presos por pederastia (era a palavra da época).
Além de sequestrarem (prenderem sem processo legal) travestis mantendo o cárcere por mais de uma semana até que a barba e pelos crescessem, a fim de constranger e humilhar para que "virassem homem".
Filme pouco conhecido. Vou procurar depois.
Como sempre, excelente texto! Parabéns!
Abraço!

Renato Oliveira disse...

Eita preula!
Samuel, não fazia ideia disso, não! Nem imaginava algo similar no Brasil. Uma situação história bem parecida com a do filme e que, consequentemente, se dialoga com a situação de crime ali representada. Curioso e válido pensar na vigência do padrão heteronormativo desde sempre e nos desdobramentos disso, fazendo do sofrimento humano gay/lésbico uma banalidade.

Espero que encontre o filme, vai curti-lo! =)