2.9.17

belle de jour: oferta e recusa

“Estou te falando: não é pra você me dar isto que eu tô te pedindo, porque não é o que eu quero”. Esta frase nada mais é que uma versão popular do discurso peço-te que não me dês aquilo que te peço, pois não é isto. Mas se não for isto, então é o que? É a possibilidade de um não-entendimento aparente que serve de ocasião para se revisitar Luis Buñuel – nunca deixar de fazê-lo – pois seu cinema não cessa de algo a dizer sobre o inconsciente. Certo é que não se trata da primeira vez em que aqui se fala sobre Belle de Jour (1967), e não será a última. Um dentre os mais conhecidos e polêmicos filmes deste realizador espanhol ainda gera discurso. No entanto, se tão somente sua sinopse for contada em qualquer círculo de pessoas, não causará grande impacto. Ora, atualmente o fato de uma mulher desligar-se do papel do lar para dedicar-se ao exercício sexual não parece evocar significativo horror. Inclusive por se viver na era do ego é completamente justificável que para fins de autoestima tal deslocamento seja admissível. Se por um lado, um menor moralismo em torno da prostituição é um ponto positivo, por outro não é de ego que diz a coisa freudiana, mas sim de desejo, por esta razão que hoje se retomará aqui o pois não é isto a fim de situar a posição no desejo da personagem-título, a gélida Séverine (Catherine Deneuve).


A incógnita presente no filme diz respeito àquilo que motivou uma mulher burguesa a abster-se do conforto do lar no período vespertino para atender aos pedidos sexuais de clientes em um discreto bordel. É suposto uma demanda real não-confessada por trás do pedido de Séverine de ser aceita como uma das funcionárias da casa. O que queria esta mulher? Esta aparente não razão torna-se ainda mais incompreensível quando o marido de Séverine é comparado aos seus clientes, dado que este é suposto ser aquele que a satisfaria sexualmente. Pois bem, foi empregada a palavra que acentua o que esta em pauta: o roteiro do filme articula uma satisfação que não se completa. Seja na oferta do corpo enquanto “belle de jour”, seja na recusa em continuar nesta posição, o tempo todo a personagem anuncia uma insatisfação. Afirmar que a insatisfação era tão somente sexual é limitar o que esta em jogo e ao mesmo tempo supor que do lado do masculino haveria um eleito que a faria toda satisfeita. E não é disso que se trata, mas sim de uma insatisfação que vai além do sexual, que coloca em falta sua condição enquanto mulher, a qual contempla a ausência do amor, do encontro, do fazer-se um com o amado... Sobra algo de um “mais, ainda” que não se atinge. 

Vale destacar que no que diz respeito ao feminino, a questão da insatisfação foi discutida tanto por Freud quanto por Lacan. O primeiro declara que a menina sente-se insatisfeita ao nível do corpo físico por algo que não lhe foi dado. Por mais que Freud tenha sido alvo das críticas feministas no decorrer das décadas pela sua ênfase da ordem do imaginário no pênis como objeto de desejo da menina, deve-se ter em vista que é o objeto real que, num primeiro momento, se encontra disponível para que a presença da falta seja elaborada. A insatisfação associada a um sentimento de injustiça por algo que não foi dado não é resolvida quando uma mulher tem um filho, mas é algo que prevalece nos encontros amorosos futuros dada a certeza de que algo falta. Lacan, numa ênfase distinta da imaginária, aborda a insatisfação como uma característica do desejo histérico, que deve manter-se enquanto não-satisfeito. Pode-se dizer que uma histérica trabalha para a manutenção de um desejo que precisa continuar a existir enquanto desejo, e para tanto é necessário que ao outro cuja oferta é endereçada – “te peço que me dês” – que este não dê coisa alguma senão a recusa.

Sobre a (in)correspondência entre demandar e encontrar a resposta, pode-se situar o que se passava no filme. Normalmente, na situação de um bordel, a prostituta é a oferta à qual é endereçada a demanda do cliente, que pode ser mais ou menos fetichizante, mais ou menos bizarra de acordo com os valores da cultura ou do grupo. Contudo, com a referência da psicanálise, o cinéfilo é levado a assimilar este filme a partir destas posições invertidas: Séverine é a boa histérica, o objeto de estudo, de forma que se ela foi ao encontro de Madame Anais (Geneviève Page) e ofertou-se enquanto corpo, algo se anunciava da demanda dela, mas o que? É certo que ela se endereçava aos clientes, que pedia-lhes alguma coisa que não a satisfação sexual quão menos um acariciamento em seu ego. A personagem não emprega palavras que revelem algo da ordem da necessidade ou mesmo do desejo, mas apenas anuncia a si própria como oferta, num primeiro momento, e como recusa, quando nega a se manter na posição de “bela da tarde”. Por alguma razão, algo similar acontece em análise, quando o analisante não apenas comparece, mas se apresenta ao mesmo tempo em que apresenta algo que faz sofrer e articula um discurso a respeito disso. Na escuta analítica, o desejo ainda que enquanto não-dito é suposto estar ali, por conta da presença da angústia, o afeto que lhe é revelador. É possível que a resposta, a verdade, a significação sejam o pedido contido na demanda, mas para que o sujeito se implique em conhecer a si e entre em análise, cabe ao analista lembrar-se do “não me dês aquilo que te peço”.

Abraços,
Renato Oliveira

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