14.10.17

"Elle" é puro lust for life

Lust for life. Este som do Iggy Pop é tocado em Elle (2016) em dois momentos, tão somente, mas fazia eco na cabeça deste que vos escreve durante todo o filme ao revê-lo. Não é à toa que foi incluso na trilha sonora, bem como é possível que se sobreponha à função de sonorizar o roteiro, seus efeitos vão mais além e tem a função de chave, de significação. Não é necessário fazer mistério nem drama, pois é certo que esta última obra de Paul Verhoeven é a pura produção de lust. Por esta via é possível atribuir algum sentido à repetição da personagem e a seu suposto prazer na dor e no assujeitamento. 


Não é lugar-comum a história de uma mulher que enquanto vítima de um atentado sexual, não faz disso discurso do trauma e não sintomatiza. A personagem Michèle (Isabelle Huppert) é estuprada e após o incidente recolhe os pedaços de vidro, toma banho e segue sua vida. Não é feita a denúncia do ato e ela não apresenta indício algum de lesão emocional. Os termos em destaque são escorregadios e talvez inapropriados: vítima e estuprada. Enquanto o roteiro sustenta o mistério quanto à personalidade oculta do agente, emerge a possibilidade de reflexão se, de fato, trata-se de uma situação de abuso, se as posições de ativo e passivo são claramente notórias como assim são supostas. É um filme profícuo para abalar noções socialmente firmadas, tais como a de que uma agressão necessariamente provoca um trauma e de que mulheres são física e emocionalmente mais frágeis do que homens. Pode-se também pensar que o filme seja considerado um desserviço numa época em que se eleva o discurso feminista. Inclusive, Simone de Beauvoir é citada. É certo que não se trata de uma abordagem anti-feminista e que não há demanda da personagem para tratamento de trauma algum. Os episódios em que Michèle fora surpreendida pela aparição do mascarado-agressor se repetem três ou quatro vezes. É a presença de um horror corporificado seguida das tentativas da personagem em reagir ao ato ao mesmo tempo em que a ele se submete. Logo, a atividade e a passividade juntas anunciam uma posição subjetiva na qual Michèle se coloca. E esta somente pode ser pensada mediante o lust

Eis o significante cantado, lust, mas que não deixa de ser som, e que ressoa, clama por uma significação possível. A Língua Portuguesa o aproxima à ideia de luxúria, a noção de incontinência, dado que o desejo sexual tem esta característica de desregulagem. O dicionário também o define como “desejo ardente” e “sede”. Sede do que? De alguma coisa, seja de amor, vida ou poder. Em outras palavras, é a dimensão da falta que esta inserida no lust, que dá lugar ao desejo e produz um descompasso no que seria a vida artificialmente adaptada do sujeito neurótico. Isso não poderia ser mais freudiano dado que a herança do mestre austríaco implica na exposição da peste. Ao expô-la, como Verhoeven fez, o horror e o nojo são colocados em cena, pois flutua sobre a mente do expectador a possibilidade de que aquela mulher sentia prazer ao ser agredida, tratada como uma cadela. Mas o lust não vem sozinho, nem pode. De acordo com uma das máximas lacanianas, o significante só produz significação em relação a outro significante, por isso lust for life

Numa tradução bem literal, luxúria para a vida, o que soa quase como um convite: “vamos tomar uns bons drinks que a morte é certa”. O estilo de vida de Michèle não destoava disso, uma luxúria por vida. Ora, tanto quanto é certeira a ideia de que o lust é um atravessamento à vida, o termo serve como fundamento à existência do sujeito do inconsciente marcado pela falta, pela linguagem, por um furo que se articula nesta coisa demoníaca que é o desejo. É possível sim que Michèle gozava na posição de vítima, a qual lhe é atribuída, o que não indica que ela se colocava em tal condição. Pode-se também pensar que os intervalos entre uma aparição e outra eram seguidos por medo e desejo, seja o temor do total aniquilamento do corpo, o real da morte, bem como o desejo pelo usufruto máximo desta condição, o orgasmo que não anula a dor. Não por menos, o orgasmo é concebido enquanto “a pequena morte”, le petite mort, em francês. O lust só pode ser para a vida (ou por vida) na medida em que há uma constante produção de um desejo propriamente sexual, o impulso a vida que existe em equivalência ao medo/desejo de morrer. O lust implica num usufruto, um mais-gozar, em repetições, e Michèle é a prova disso tal como se pode notar: o marido de sua melhor amiga era seu amante; ela sabia que o mascarado retornaria, e não fugiu, tão somente muniu-se de instrumentos de defesa, o que sugere um desejo pelo retorno deste homem; ela flerta com um vizinho e o masturba com os pés por baixo da mesa; sua posição de liderança na empresa indicava um desejo de poder na palavra, de manter-se neste status.

O filme é uma oportunidade ímpar para se repensar a aparente dicotomia prazer versus desprazer, de modo que é tão somente o sujeito que pode anunciar sua posição subjetiva em relação ao outro. É um roteiro que causa certa desarmonia, pois tal como coloca Lacan “não há acordo pré-formado entre o desejo e o campo do mundo” (LACAN, J. O Seminário livro 6 – O desejo e a interpretação, Zahar, p. 385). O que há, e pode ser visto aqui, é o lust for life, a matéria-prima, a existência do sujeito firmada numa sede da coisa, qual seja ela, não importa, é este constante retorno de uma forma de gozar, sentida não sem estranhamento e com certo grau de avidez. Assim, se o significante “lust” esta para “life”, vale o questionamento se na retirada do mesmo, na repressão deste impulso ainda se pode falar em vida, ou se será preciso reencontrar o desejo para assim atribuir à vida um lugar, uma significação.

Até a próxima,
Renato Oliveira

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