25.1.18

não seja quadrado

O Cine Freud retorna três meses depois já em clima carnavalesco e travestido de macaco. Esta fantasia foi propositalmente escolhida para homenagear a mais próxima espécie do ser humano e, ao mesmo tempo, questionar o que existe de animal no ser falante. A oportunidade é para se pensar a vida em sociedade hoje cada um no seu quadrado. Ora, “O mal-estar na civilização” é um artigo que abre janelas, dentre elas, uma que serve de guia à verdade de que a vida comunitária implica numa renúncia aos impulsos instintivos. Ou seja, pra virar gente e humano foi preciso abandonar as paixões do instinto para em seguida cair na linguagem, aprender não só a falar como também a se nomear enquanto sujeito – reconhecido pelo nome, pelo status, pela profissão – e assim estruturar-se como um ser coletivo. Deste modo, impera na vida social o que pode ser pensado como uma estética da conformidade. Ainda assim, não seja quadrado, pois é bem certo que as sociedades organizadas para funcionarem bem são produtoras de nada mais do que o caos. A tentativa em organizar culmina em um coletivo que produz e atualiza o mal-estar. Com estas palavras é sintetizado o contexto do filme The Square – A Arte da Discórdia (2017).


A direção de Ruben Östlund apresenta uma abordagem sobre a atual condição do homem que submeteu seus impulsos primitivos a uma organização social que o legitima, o dá lugar. O gerente de museu Christian (Claes Bang) enquanto implicado na inauguração de uma exposição intitulada “The Square” se deu conta de que foi assaltado, de modo que a carteira, o celular e suas abotoadoras foram-lhe levados. Seguindo o conselho de um parceiro de trabalho, ele identificou via GPS o prédio em que o celular se encontrava e distribuiu anonimamente uma carta de ameaça em cada apartamento, tocando o terror. A partir de então, uma série de situações estapafúrdias se originaram. Descrevê-las aqui seria uma tentativa inviável de reproduzir o caos provocado por pessoas incapazes de manterem-se em seus devidos quadrados. No entanto, é certo que o roteiro traz elementos valiosos para a análise, tal como o quadrado em si e a figura do macaco. A estes será dada ênfase.

Frente ao prédio do museu, um quadrado foi riscado no chão bem como no primeiro ambiente da exposição há um quadrado que nada mais serve senão para depósito. Ora, o que seria depositado senão o celular e a carteira, aquilo que não pode faltar, que faz o sujeito existir socialmente enquanto sujeito? O quadrado é, portanto um lugar de esvaziamento... Até mesmo porque ele se tornou o setting para a gravação de um vídeo de anúncio publicitário da exposição, no qual uma criança, uma menina branca representando não só a Suécia, mas o poder branco como tal foi colocada enquanto mendiga para ter seu corpo explodido. O quadrado, absolutamente é um lugar individual, a única diferença, conforme mostrada é se você escolhe ou não acreditar nas pessoas. É assim um local de despojamento e de escolha subjetiva.

Na cadeia evolutiva, o aprender a falar teve crucial importância na mutação humana. Destacam-se dois macacos no filme, um em sua forma mais primitiva enquanto animal de estimação em um apartamento, e outro que surge já em corpo de homem, o qual evidentemente não fala, é a pura expressão do instinto de caça, agressão e sobrevivência. Em forma artística este surge frente a um grupo organizado em um jantar de gala. Ele é o avesso dos demais presentes e protagonizou uma das cenas ápices desta obra na qual o homem é confrontado com a versão mais fiel dele mesmo se a linguagem e o poder de refrear impulsos lhe fossem retirados. Como dito, é a renúncia a uma vida entregue às pulsões que organiza o ser humano socialmente. No homem primitivo, por outro lado, além da não-articulação da fala há a expressão direta da agressividade bem como o abandono ao instinto. No entanto, vale refletir, esta oposição não é tão demarcada assim. Nota-se hoje que a linguagem civilizante do homem parece cada vez mais fraca, ela não dá conta de civilizá-lo por completo. Assim, o recuo ao instinto aflorado, colocado para fora, o que produz senão a desorganização do sujeito e a formação de barbáries? É certo que a linguagem não matou o instinto por completo, como alguns acreditam. Basta se pensar no quanto há de expressão do instinto na busca pela sobrevivência financeira. A expressão instintiva aqui abordada entretanto, não diz apenas de uma luta pela vida, mas é resultado de não haver norma social, enquadramento comunitário forte o suficiente para aniquilar o macaco de cada um. O mal-estar social desde o freudismo é efeito deste macaco ativo em cada ser falante, a externalização do que prevaleceu de mais primata em cada um. Tem-se aí o fracasso da linguagem em aniquilar o mais radicalmente primitivo. A ligação do homem com o macaco se reproduz diariamente por atos desprovidos de racionalidade, tais como a discriminação dos vulneráveis, a homofobia, a guerra. As situações bizarras desencadeadas no filme bem como “o macaco à solta” anunciam o limite da linguagem humana em organizar. O que se vê portanto, é a reprodução do caos. A este respeito, se jogar um anagrama com a palavra “caos”, tem-se tanto “caso”, “soca” quanto ”saco”. Nada muito inspirador, realmente, nem mesmo a melhor mensagem de positividade para 2018. Ainda assim, o filme vale ser visto e as coisas aqui escritas são mais sinceras do que muitas outras que te foram ditas e desejadas nas últimas semanas. Feliz ano novo a todos.

Renato Oliveira

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