20.2.18

Godard e um amor-pilantra

Os pilantras são os melhores amantes. Esta frase não foi retirada de livro algum, mas é certo que é passível de ser deslindada pelo saber analítico. A despeito do emprego do artigo masculino, indefere o gênero, pois o potencial para o amor e a pilantragem é de acesso universal. Estas ladainhas introdutórias são pertinentes para a reflexão acerca de um dos mais cruciais temas de causa analítica até hoje: o amor. Há os que digam que não há quem fale melhor sobre o amor – ou com acento tão singular – quanto os franceses. Por este motivo, revisitar o cinema de Jean-Luc Godard é a tarefa que cabe à todo aquele que deseja se embrenhar neste tema. O efeito é de captura se você não dormir durante a maior parte de um filme dele. A sensação é de estranhamento. Ao assistir “Acossado” (À Bout de Souffle, 1960) não se sabe estar diante de um filme policial, um romance ou mesmo um road movie. Propositalmente Godard sobrepõe gêneros nesta obra de modo a se abordar o amor enquanto falta e desencontro. 


O roteiro se constrói mediante um anti-herói que assassina um policial e passa a ser procurado por representantes da lei. É um personagem que faz pouco caso frente à chance de ser capturado. Ele encontra uma possibilidade de interlocução em uma jovem americana radicada em Paris. O movimento do filme é como uma tentativa de captura – “alguém perderá sua liberdade” é a suspeita que se tem. O contexto de crime é oportuno para a emergência de questões existenciais, tais como a formação de vínculo, a solidão, o desencontro amoroso. Vale destacar que a impressão de assistir um road movie se dá não porque o roteiro se desenvolva a maior parte em estradas, mas pela construção de personagens em si. Michel e Patricia são seres sem residência fixa, ou seja, desenraizados e livres. Ora, é a partir desta condição que ambos se colocam a interrogar o amor e suas consequências. Trata-se de uma essencial instabilidade de base a partir da qual o amor pode ser pensado. Ao se refletir sobre este assunto em uma leitura analítica, vê-se que quando o ser descobre-se enquanto amante, a base de sua vida se torna incerta. Passa-se a um endereçamento ao outro amado na busca por um sinal de que neste algo também é suposto faltar. O amado pode tanto responder enquanto faltante e disponível ao amor quanto oferecer o silêncio, a recusa em tornar-se amante. Ademais, trata-se de um sentimento para além do semblante, pois diz respeito ao desafio de assimilar o que o outro possui que o torna eleito, apreciável e objeto de investimento. 

É certo que conforme Michel perseguia Patricia e a investia libidinalmente, ela parecia não se deixar apreender, ao mesmo tempo em que meditava sobre os afetos ternos que este encontro suscitava. Sabe-se que no gênero policial, um ser é acossado por seu crime, ele é convocado a pagar. No amor, persegue-se o objeto eleito em busca de um sinal, algum indicativo que também o revele como “culpado”, isto é, como disposto a amar. O ser é convocado a pagar no amor, a tornar-se amante, entregando um sinal de que não se é completo. Mas o que um pilantra terá para oferecer ao outro amado? Sem lar e na busca pela captura de um objeto, Michel se deparou com uma figura do feminino destoante da mulher tradicional à indústria cinematográfica dos anos 50. Godard anuncia em Patricia uma personagem acessível ao amor, mas que destoa do padrão de mulheres absolutamente “romanticalizadas” dos filmes daquela época. Igualmente distinto da figura de um mocinho conquistador, Michel era exatamente aquele que nada tinha: um homem marginal, pilantra, “surrupiador” de carros alheios, etc. No que se pode pensar em termos de recursos a oferecer para formação de elo sentimental e consequentemente um final feliz ao romance, Michel era o perfeito anti-herói, aquele que nada tinha. Assim sendo, porque a partir dele se pensar no amor?

Neste momento cabe refletir sobre a proposição nunca encerrada de Lacan sobre o amor como dar aquilo que não se tem. Nada mais lógico, pois aquilo que não se tem, a presença de uma falta essencial enquanto falante, é o principal indicativo de que um outro pode ter efeito de preenchimento. Só se pode ocupar lugar junto aquele que anuncia uma ausência. Nada ter é o que legitimava Michel na condição de amante, pois só lhe restava a falta para oferecer à Patricia. Os pilantras amam melhor do que ninguém. Nesta categoria se encaixam aqueles cuja busca por alcançar um objeto representa o movimento contínuo de suas vidas. Nota-se a subversão de Godard em não criar "personagens cheias", mas sim dois seres marcados por ausências. É o reconhecimento de uma ausência mútua que funda a formação de casal. Tem-se então a ilusão de que esta união soluciona a problemática da falta. Assim, o filme retrata a dificuldade em colidir, a não-formação do UM no encontro amoroso. 

Patricia exercia sobre Michel um efeito de encantamento. Ele perseguia Paris numa busca por tentar capturar esta mulher, fazê-la sair da posição de amada para anunciar-se como sua amante. Com esta perspectiva, pode-se assim pensar na possível armadilha neste brilhante roteiro no qual um pilantra foge da lei, escapa de ser enredado, quando na realidade ele já havia se tornado presa conforme cativo às questões do amor. Se os pilantras são os melhores amantes por ofertarem ao outro tão somente a falta, é certo que são eles os mais indicados a testemunhar sobre o amor, a despeito de serem franceses ou não. É, pois no discurso do pilantra – no cinema e fora dele – que se pode apreender algo significativo acerca deste encontro para sempre faltoso. 

Renato Oliveira

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