22.3.18

dançando até a glória

Promessa feita e não cumprida. Uma vez, ao assistir “A noite dos desesperados” (They Shoot Horses, Don’t They?, 1969) a conclusão foi de que a obra não seria revista. No entanto, sabe-se que na produção de Freud se encontra a noção de que as repetições na vida cotidiana não se restringem às experiências de satisfação. Logo, para que esta resenha fosse escrita, rever este filme pareceu uma tarefa imprescindível. Em síntese, esta direção de Sydney Pollack diz respeito ao espetáculo do casal capaz de dançar por mais tempo em um teste de resistência. Os candidatos batalhavam por um prêmio em dinheiro e alguns deles também pela chance de ascensão na carreira artística. Para tanto, deveriam dançar por uma sucessão de dias ou meses, com intervalos de apenas dez minutos a cada duas horas. Se caíssem, estariam eliminados. É curioso notar como a própria regra do jogo é reveladora por si mesma: o verbo cair indica ir ao chão, desmoronar, perder o controle e também representa um possível estado de esgotamento, de limite. Era isso o que estava em questão. Privados de sono, atividade sexual e qualquer contato com a realidade externa, a incumbência imposta e aceita era tão apenas dançar e correr em maratonas organizadas. 


Todos estavam propensos a cair. A personagem Gloria (Jane Fonda) juntamente com seu par Robert (Michael Sarrazin) protagonizam a condição de inibição instintiva a qual estava o grupo submetido. Para o alcance de uma meta profissional, ela decidiu jogar. Ainda que com uma capacidade de apuração crítica do espetáculo, Gloria tem uma visão parcial do jogo até ser conduzida ao entendimento de interesses implícitos na organização daquele evento. Sua oferta era o seu corpo, bem como os limites deste, seu principal adversário. O nome da personagem chama a atenção. Afinal, que glória buscada era aquela que implicava uma negação de si própria e abandono a condições precárias de sobrevivência? Dentre os candidatos, havia aqueles com uma tendência maior em enlouquecer em menor tempo. Era um espetáculo estapafúrdio e o andamento do projeto em nada mais implicava senão na exposição de “guerreiros” cada vez mais esgotados, ávidos por vencer, porém com toda propensão à queda. Vale notar que despido de um filtro analítico, este é um filme de entretenimento. O ambiente até mesmo tem ares circenses. Há os que se divertirão com a miséria humana, tal como ocorre nos dias de hoje em reality shows.

Os candidatos que conseguissem não ser desestabilizados pelas circunstâncias iriam longe no jogo. É certo que They shoot horses, don’t they? fornece material para a análise da audiência gerada pelos atuais programas de reality shows ao mesmo tempo em que parece ser um filme profético ao anunciar uma fórmula que faria sucesso em décadas futuras. Contudo, pode-se destacar que sua linguagem é metafórica, pois diz respeito à busca pela sobrevivência humana associada a uma negação do próprio ego. Esta condição se relaciona a um contexto, o das relações de trabalho, dada a semelhança com a luta competitiva, a necessidade de sustento e a busca por reconhecimento profissional. 

A inibição da vida instintiva, conforme postulada por Freud, diz respeito à forma como os impulsos sexuais eram desviados de sua meta podendo ou não ser canalizados em fins não-sexuais socialmente aceitos. Esta leitura reflete a realidade de sua época ao mesmo tempo em que possui simetria às condições de trabalho hoje. Sabe-se que no mundo moderno não se trata exatamente da negação sexual plena, mas impera a mesma ordem de inibição, na qual o sujeito deve renunciar a seu próprio ego, reprimir seus inquéritos e não expressar suas reais opiniões para que não seja eliminado do jogo. O trabalho numa ótica do sonho capitalista esta associado diretamente a um lugar de reconhecimento e implica a necessidade de autonegação bem como a capacidade de suportar “calado”. Não por menos o termo “workaholic” se apresenta como atribuição de mérito àqueles que canalizam a energia libidinal em superar seus limites em horas trabalhadas. O desafio que assumiram diz respeito, como no filme, em manter-se de pé por um tempo recorde, a despeito das consequências físicas ou emocionais. Seguindo este entendimento, o corpo não apenas é produtor, mas é o espetáculo em si. As excessivas horas trabalhadas bem como a negação do corpo biológico em nome do “ideal sonhado” refletem que este corpo esta sob efeito de um discurso que o faz ficar de pé, tal como “no pain no gain” (sem dor, sem ganho em inglês). Esta submissão quando alienada indica que a negação de si e o “manter-se de pé” assumem vias de normalidade. Não por menos este padrão é requerido no meio corporativo, que seleciona pessoas dispostas a pegarem suas cruzes, negarem a si mesmas e continuarem dançando, sem cair.

É compreensível que a personagem Gloria não desistiria tão fácil do jogo, pois embora a perspectiva de glória estivesse colocada para todos, nela esta se encontrava encarnada mediante o nome próprio. Ainda assim, a complexidade da personagem não se restringe a uma nomeação e pode ser analisada a partir da força gerada frente ao desafio bem como pelo gradual desfalecimento de seu corpo prestes a ver a glória. Certamente esta obra de Pollack alude ao “no pain no gain” dado que é um filme que ao provocar reflexão pode gerar mal-estar ou incômodo.

Renato Oliveira

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