23.4.18

a mulher-marginal de Christian Petzold

Ninguém mais tolera ouvir falar de princesas. E os que fogem a regra, não deveriam. Frente a tantos modelos possíveis e interessantes de mulher, já deveria ser página virada este apego por um feminino de donzela, frágil e submisso. Nem mesmo aquele que procurou em todas as mulheres a felicidade, Martinho da Vila, brasilidade com pós-doc no tema, tem interesse em princesas, nem sequer ele. Aqui também não se tem, dado que é possível existir enquanto mulher de formas absolutamente mais amplas e diversificadas. Para tanto, elege-se o lugar da mulher-marginal como tema deste ensaio. Será só um aperitivo realmente. Uma forma de enaltecer a obra de um grande mestre e pensador alemão contemporâneo: Christian Petzold. Ele é o cara que em seus filmes muito tem a contribuir no que diz respeito à oferta de vértices de entendimentos sobre a vida. Assim, para este fim não são eleitas princesas, evidentemente que não, mas sim mulheres-marginais. Estas se situam no underground, numa posição de afastamento de ideais sociais hegemônicos para a mulher. Quais? As posições de mãe, mulher casada, dona de casa, entre outras. Esta apresentação, cujo propósito é aguçar o paladar cinéfilo de alguns, não pode, contudo se estender até que O Apocalipse venha. Poucos iriam até o fim. Assim, será dado destaque a este tema mediante três filmes de Petzold, que se complementam em sua distinção. Uma tríade prevalece em todos eles: o lugar-marginal > o desejo > o corpo do outro, tudo isso articulado a existência de um passado. Ademais, a protagonista de tais filmes é Nina Hoss, musa-inspiradora do diretor, uma reinvenção de significantes do feminino conforme cada atuação. 

Christian Petzold e Nina Hoss nas filmagens de Barbara (2012)

Em PHOENIX (2014) uma mulher é marginal enquanto impostora dela mesma. Nelly Lenz é dada por morta, vítima dos horrores da guerra, assim como é convocada a existir novamente assumindo esta identidade. Ao retornar, ela se vê frente a uma dialética em não ser reconhecida pelo marido e não mais reconhecê-lo. O seu desejo enquanto mulher viva e real esta amortecido diante das mãos dele, que se põe a fabricar nela um “design de corpo da outra”. Ora, é o desenho, o alinhamento do desejo dele que estava em jogo para atender a seus próprios interesses. Ela se endereçou àquele amado mediante um pedido de reconhecimento, mas teve que apoiar-se na identidade de uma mulher morta. O lugar-marginal diz respeito ao crime de passar-se por uma mulher dada como inexistente, para assim interrogar, desta posição, se o desejo de seu marido por ela estava igualmente morto. O passado, portanto, esta presente o tempo todo por meio da tentativa do marido em corporizá-lo pela via de uma mulher. 

BARBARA (2012) situa uma personagem-título ex-detenta que ainda mantém elo com um fora da lei. Ela é empregada como médica auxiliar em um hospital. Eis então uma possibilidade de recomeço, de adaptação social, mas sua visão estava alhures. Quanto ao crime cometido, o roteiro não o revela de modo que a personagem sustenta um lugar-marginal sem discurso. Por outro lado, quanto a sua posição no desejo, esta se faz notada. Ela se encontra com o namorado no underground, fora da visão de outros, e a ele destina o dinheiro guardado bem como a si mesma enquanto objeto desejante. O mistério desta mulher a faz bárbara, mais ainda, aos olhos de um médico, incapaz de decifrá-la, mas disposto a acolhê-la. Ao supor que ela demandava atenção e abrigo, ele passa a cortejá-la. Contudo, a não-reciprocidade da personagem indicava que ela não estava à procura de um príncipe. A recusa à formação de vínculos bem como a presença de um passado atuante anunciam o lugar-marginal da personagem. Barbara é chamada a responder, a falar, a endereçar-se a corpos enfermos e faltantes, quando na verdade, ela tão apenas planejava uma fuga. E o passado, bem como o dinheiro, deveria manter-se enterrado na condição de um não-dito. 

Tem-se em SOMETHING TO REMIND ME (2001) novamente uma mulher sedutora, que causa fascínio em um homem por aquilo que ele não sabia a respeito dela. Leyla faz aparições súbitas para então desvanecer. Mas algo será deixado, ainda que incerto. O que restou do corpo desta mulher ao ser amante foi uma fotografia. Se nos poucos momentos em que estiveram juntos, o sentimento dela foi sincero, se ela o amou, não se sabe. Tampouco se pode confirmar se o amor – o revelar-se amante da falta do outro, entrevendo assim sua própria falta – também pode ocorrer em tão poucos encontros ou se demanda tempo para que se estabeleça. O desaparecimento da personagem é uma fuga com vistas ao cumprimento de uma missão. Tempos depois Leyla estava sentimentalmente ligada a um marginal. Em outra cidade, ela passa a trabalhar em uma instituição reformatória. Neste contexto, seu lugar-marginal se desvela como uma foragida com o desejo apontado para um infrator. O desejo, mais uma vez, é um não-saber: o que ela viu nele? Por que a este corpo sua atenção era dirigida em detrimento do amante? Como nos primórdios da escuta clínica de Freud, tem-se aqui mais um exemplo de quando o passado é a chave para esclarecer uma condição presente. 

Com efeito, Petzold anuncia que existem diferentes formas de amar. É notório que seus filmes aludem a noções feministas justamente pela diversidade de construções para o feminino. Estes três exemplos apontam a possibilidade de que uma mulher anuncie uma posição subjetiva no amor de acordo com uma referência própria, que tem relação com sua forma de constituir-se enquanto mulher. Eis o “terreno obscuro” reconhecido e ao mesmo tempo temido por Freud. O mistério em torno da feminilidade deve ser pensado hoje como uma desapropriação de figuras do feminino que não mais servem para se pensar na mulher, uma a uma, como produtora de um jeito de amar. São marginais, necessariamente, em uma sociedade que ainda atribui a posição de mãe no vínculo monogâmico heterossexual como único destino viável. Um legado da escuta analítica é a concepção de que os caminhos são mais amplos e que a marginalidade - uma recusa a um ideal socialmente firmado – é uma condição possível. Só então se pode estabelecer o feminino em termos de uma singularidade. Petzold, em seus filmes, anuncia A Mulher como uma possibilidade de criação, indefinível, lugar onde subjaz o mistério. Ele denuncia o equívoco de se tomar o feminino a partir de referências obsoletas, e expõe assim outros vértices de entendimento.

Renato Oliveira

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