21.5.18

como pais modernos em sacos velhos

Como nossos pais faz eco ao romântico legado de Freud. Alguns dirão que é concepção intuitiva a noção de que aquilo que foi vivido pelos pais se reproduz em uma geração futura. Outros dirão que não tem intuição alguma envolvida, pois se trata de produção científica fruto da observação clínica. Aos mais holísticos há profecia nisso que se conhece por transmissão hereditária. Sobretudo há romance ao se conceber que as figuras de pai e mãe refletem não somente a criança que será formada, mas determinam certas escolhas que esta fará. Todo este imbróglio serve como tentativa de aproximação, conforme expressão de Freud, ao âmago do ser. Ao jogar com o termo, é cabível colocar amargo do ser, pois as relações de falantes pais e filhos necessariamente não tem gosto de pão de mel. Pois bem, o trabalho de Laís Bodanzky testemunha que algo proveniente das vivências com os pais tende a retornar na vida adulta. Esta sentença, num primeiro momento, parece abstrata. Justamente por isso requer atenção.


O roteiro baseia-se no relacionamento entre mãe e filha permeado pela presença atuante do passado. Rosa (Maria Ribeiro) quase quarenta anos depois descobre não ser filha de seu pai. A revelação feita por sua mãe (Clarisse Abujamra) foi seguida pela declaração de que, segundo prognóstico médico, ela não viveria mais que dois meses. Enquanto o pai biológico estava alhures, a mãe poderia vir a faltar: tem-se então um enquadramento que poderia dar lugar a um xororô sem fim em um melodrama brazuka. Não é o que acontece. A mãe se mostrava estável frente à realidade da finitude. Rosa não sofria de ausência ou carência de pai. Há no título do filme uma ambiguidade curiosa. “Como nossos pais” sugere assim como eles, no caso do advérbio “como”, já enquanto verbo, a ideia é a de comer os próprios pais. Ambas articulam uma noção psicanalítica. Na primeira, a repetição é destacada, e a segunda faz referência ao comer que se relaciona ao mecanismo de introjeção. Comer os pais implica em introjetar suas regras e visão de mundo para assim reproduzi-las.

O filme é um retrato de similitudes e divergências geracionais entre mãe e filha. Anuncia-se o que diz respeito àquilo que é entregue pelos nossos pais enquanto herança, a qual contempla uma forma de atuar no mundo e de se orientar de acordo com modelos a serem seguidos bem como exclui a possibilidade de rompimento com estes. Ora, foi com sua mãe que Rosa aprendeu acerca do lugar concebível a uma mulher dentro de uma família. Na condição de heterossexual, mãe de duas filhas, casada e profissionalmente ativa, Rosa questionava quanto à possibilidade de uma configuração nova. O roteiro apresenta o modelo familiar tradicional assim como retrata a dificuldade em dialogar o velho com a possibilidade de novos arranjos. É aberta e não encerrada a indagação se vive-se hoje no Brasil a realidade de novas significações para famílias ou se este plural é tão apenas um pequeno recorte dentro da tradição que ainda impera. 

A personagem Rosa não foi construída para decidir por um dos dois lados, mas para que, ao se questionar sobre o velho e o novo, ela mostrasse a dificuldade de articulação entre eles. Sabe-se que a Bíblia censura a ideia de despejar vinho novo em odres (sacos) velhos. Logo, se faz preciso romper com o velho para a chegada do novo, mas poucos comentam a coexistência dos padrões arcaicos conjuntamente ao moderno. Rosa representa esta coexistência. Ao mesmo tempo moderna e arcaica. Economicamente ativa, com ideais feministas e escritora de uma peça sobre o lugar da mulher na sociedade. De família monogâmica, a reprodução da mãe enquanto “dona do lar” e narradora da história de Eva da Bíblia às filhas. Tais exemplos, enquanto aleatórios, podem não ser de significativa ajuda na formação de uma síntese. A tentativa de reuni-los pode, contudo, formar a ideia de uma nova mulher cujo velho ainda atua. Esta aparente contradição extrapola os limites do filme e representa as famílias hoje. A sentença “o mundo mudou” é aceita junto ao apego e predileção por se viver como nossos pais. Não por menos, o homem ainda é concebido como a força dominante; se faz preciso protestar para que o amor homossexual seja aceito; mulheres são vistas como destinadas à função de mãe, entre outros exemplos. 

Como destacado no início, algo proveniente das vivências com os pais tende a retornar na vida adulta. Os modelos herdados são atuantes, ainda que sem consciência ou diálogo sobre os mesmos. O que é recebido intergeracionalmente como norma de comportamento e conduta ética em um núcleo familiar se reproduz em padrões sociais. O que se destaca a partir disso é uma predileção por se manter aquilo que é da ordem do velho, o não-rompimento enquanto formas de anular o sujeito falante. Colocar-se na intersecção entre o velho e o novo entretanto, é uma possível posição inicial para que exista ruptura e mudança. Tem-se assim o vislumbre de um novo mundo, com nuvens de algodão doce que talvez amenizem o amargor do mesmo, efeito da aceitação calada de viver e morrer como nossos pais.

Renato Oliveira

Um comentário:

Unknown disse...

Desses escritos que faz a gente ter gosto de ler e viver.