25.6.18

Derek Jarman e o testamento azul

Junho é Azul. A sentença soa como campanha de promoção de saúde, mas não é nada disso. Neste escrito não se trata de estimular a propagação da vida, mas em falar daquilo que coloca um ponto final à mesma. Hoje azul não será a cor mais quente, mas é possível que a mais silenciosa. O filme é um testamento, o discurso do artista, são palavras derradeiras, uma poesia audiovisual. As tentativas de atribuir significados a este trabalho escolhido são múltiplas justamente pelo fato de que aquilo que esta em pauta é o silenciamento. O título do filme é Blue (1993) e nos 74 minutos de projeção vê-se uma tela azul. 

Derek Jarman finaliza seu testemunho com a afirmação de que os nomes um dia são esquecidos. O dele não foi, inclusive tornou-se um dos mais importantes da história do cinema gay. Uma fotografia sua estampa a imagem de cabeçalho deste presente endereço eletrônico. Artista plástico e diretor de cinema, seu trabalho teve início a partir da captura de cenas cotidianas. A transgressão enquanto sua marca autoral de produzir cinema culminou em um filme cuja única imagem é uma tela azul. Um ano antes de sua morte, em estado de vulnerabilidade física, Derek criou um ambiente sinestésico via sons e palavras para a narrativa de algumas impressões da realidade. Ora, é preciso força e sensibilidade para ler esta obra. Trata-se realmente da leitura de um filme, muito mais do que de sua interpretação. Nada há de essencial a ser decodificado, mas a recusa à sua leitura é a perda de uma significativa vivência cinéfila. Em “Blue” pode-se extrair um tema que é caro à psicanálise, que não escapou às inquietações de Freud e que não deixa de se re-inscrever: a finitude de todas as coisas para uma pessoa, a sua morte.


Ainda que se trate de uma obra autoral e, como nomeado, um testamento, Derek não fala apenas de si. Ele anuncia suas impressões sobre coisas mortas e, sobretudo deterioradas. Já debilitado pelo tratamento do HIV+, ele expõe a condição do artista quando já não mais dispõe plenamente de seus sentidos para observação e introjeção da realidade. A deterioração física pode ser pensada como um processo incapacitante em qualquer pessoa no qual não mais se pode perseguir àquilo que traz sentido à existência. Em seu discurso encontram-se fragmentos de sua rotina em hospitais bem como é retratada a vulnerabilidade de um corpo submetido aos procedimentos médicos. O relato acerca dos múltiplos efeitos colaterais da medicação diária faz com que seja possível pensar esse corpo enquanto dessexualizado, mais próximo a uma condição biológica, inapto para o sexo, mas ainda assim falante. O ato de falar, a expressão narrativa do artista e sua colocação enquanto sujeito, é o principal anúncio de uma condição libidinal ainda não de toda rompida, de maneira a formar uma ligação com o outro.

Como se pode notar, Blue é o avesso daquilo que as pessoas esperam de um filme. Numa época em que se observa que o silêncio é negado, busca-se no cinema comercial a reiteração de uma felicidade fulltime. Gastam-se até duas horas em uma sala na contemplação de corpos sem mácula, magnificentes, que anulem a fatalidade do fim. Corpos impermeáveis ao tempo. A negação do real da morte se configura atualmente pela imposição da felicidade enquanto obrigação. É preciso ser feliz a qualquer preço, ainda que à custa de sofrimentos. Não apenas a finitude é negada como aquilo que aponta sua inevitabilidade, tal como a tristeza e o adoecer em si.

Em psicanálise, sintomas e doenças são noções distintas. Enquanto sintomatizar revela a existência de um sujeito que deseja e se encontra participante e implicado naquilo de que se queixa, adoecer é um ponto de ruptura de uma condição saudável. Assim, o adoecimento acontece mediante aproximações sucessivas à finitude, nas quais emerge a certeza de esgotamento de um corpo. Falar sobre adoecer é absolutamente menos interessante do que a respeito dos processos psíquicos do sintomatizar. No sintoma há a formação de compromisso, o lúdico, há lugar até mesmo para o humor que constitui a trama serelepe neurótica. Já o adoecer faz eco ao real, se relaciona ao isolamento, a solidão, ao mudo. Nas palavras de Derek, o pior da doença é a incerteza. Certamente ele diz de uma condição de não-saber quanto ao corpo: por quanto tempo um corpo é capaz de suportar sua vulnerabilidade e qual seu limite de resistência. Ademais, se evidencia o insondável mistério de um para-além da morte. O testamento de Derek Jarman é uma oportunidade para articular o tema da finitude, para se fazer pensar em feridas e marcas do tempo. A tela azul tão unicamente é contemplada acompanhada por uma experiência única de compartilhamento da vida de um grande homem.

Até breve,
Renato Oliveira

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