19.8.18

recordar, repetir e apagar

O sujeito sofre de reminiscências. A assertiva não é nova, pelo contrário, é o que há de mais clássico e singular do discurso psicanalítico. Trata-se, contudo, de coisa moderna ao mesmo tempo. Se a memória de um falante fosse deletada, seu sofrimento desapareceria para a construção de uma nova história de vida, mais ou menos sujeita aos mesmos percalços e ciladas de antes. Este procedimento pode ser o desejo de alguns, de maneira que ao analista é demandado que lhe extraia fragmentos de passado cuja função não parece nada além de um fazer-sofrer. Certo é que uma mente sem lembranças é objeto de desejo tão somente porque seu alcance é da ordem do impossível. Na realidade, o que se faz em análise é recordar, a fim de que as inevitáveis repetições na vida cotidiana possam ser efeitos de uma elaboração de situações vividas. Se o analista não oferece nada muito além de uma reaproximação da dor, há, por outro lado, quem ofertou um mecanismo para que o sofrimento não mais existisse. Este cara enriqueceu e seus clientes foram felizes para sempre. Não foi este o fim da história. As reminiscências de dor são importantes em sua singularidade e, por alguma razão, ao recordá-las se produz mais dor bem como um apego e anseio por superá-las. É por conta desta contradição no sujeito que o tema se torna instigante, de maneira a dedicá-lo aqui alguma abordagem. Créditos ao brilhante roteiro de Michel Gondry que atualizou o “recordar, repetir e elaborar” de Freud em uma roupagem lúdica. Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças (2004) é título analítico por si só. Ainda que não fosse filme, apenas a frase seria material de trabalho. A mente humana só alcança sua resplandecência quando a lembrança associada à dor deixa de existir? É o que ofertam certos tipos de terapias contemporâneas. Neste filme, bem como em uma análise, recordar o que faz sofrer é tarefa crucial.


Com efeito, o que faz sofrer é o amor. Afeto investido e mesclado a ilusões tão essenciais e que em algum momento pode ser necessário deixar de investi-lo. A originalidade do roteiro articula a propensão humana para amar e a dor de uma separação com a ficção científica. Ora, um médico oferta um serviço no qual todas as memórias relativas a um ser outrora amado seriam apagadas. Aqueles que se submetessem ao procedimento obtinham a chance de um recomeço com a garantia de que “ex bom é ex-morto”. Não mais se sofreria de reminiscências, já que o antigo amado passaria a ser um desconhecido. No roteiro, Joel (Jim Carrey) e Clementine (Kate Winslet) submeteram-se ao procedimento e tiveram suas vidas renovadas. Não é isso. Ainda que o tema deste ensaio seja a memória e não o amor, vale destacar que no filme algo de considerável valor e intensidade se produziu no relacionamento do casal. A isto pode ser dado o nome de “amor” ou qualquer outro, desde que não se desconsidere o fato deles não saírem ilesos dessa relação, mas sim de tê-la vivida com profundidade e entrega emocional. Rompimentos não são dolorosos caso a barreira para um real envolvimento tiver sido plenamente mantida. O que se destaca da vivência de Joel e Clementine é a descoberta de que o outro investido era revelador de imperfeições, de forma que a falha emergiu e em algum momento tornou-se insustentável. A saída encontrada foi esquecê-lo. Para tanto, todos os significantes relacionados a esse outro foram levados ao consultório, de forma que no procedimento as memórias eram apagadas uma a uma, a começar pela mais recente. Ainda que a garantia de êxito fosse de 99%, é este um por cento que falta que aqui interessa. Esta porcentagem mínima fomenta os questionamentos: mas é isso que o sujeito queria? Numa realidade contemporânea em que nota-se o medo de envolvimentos, livrar-se de toda e qualquer memória associada à dor é objeto de desejo? O procedimento, se real, teria público?

Ter as memórias apagadas implicava a necessidade de revisitá-las. Eis aí o problema. Revisitá-las pela última vez, mas ainda assim estabelecer algum contato. Como em um sonho, os momentos vivenciados junto ao ser amado um dia investido eram despertados para que só assim deixassem de existir. A ficção traz um elemento essencial ao que interessa enquanto leitura psicanalítica: a não-passividade do sujeito. Joel e Clementine submeteram-se a esquecer e para tanto tiveram que sentir “tudo de novo” e reagir a isso. Nesta posição de agentes da demanda seria possível questionar o próprio desejo. Assim, Joel decide por agarrar-se às reminiscências que o faziam sofrer. Ele se implica em uma auto-sabotagem enquanto dormia, na tentativa de impedir que tais memórias fossem deletadas para sempre. Mais que um apego às recordações, ele junta-se a Clementine para que fossem salvos do alcance de uma mente sem lembranças. Na ficção, como na análise, o desejo de esquecer é uma demanda inicial e aparente. A possibilidade de lembrar é temida bem como recordar o que causa dor é uma via necessária para que exista tratamento. Conforme consta desde os primórdios de Freud, não se trata de esquecer, mas de elaborar, de se produzir a fala de uma situação dolorosa, de descolar significantes e significados. Algo deixado por esta obra de Gondry é a real de que memórias fazem sofrer, mas existe a oportunidade de elaboração. Neste tipo de dor é certo que existe beleza bem como a chance de se produzir algo novo a partir disso.  

Renato Oliveira

Nenhum comentário: