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25.1.18

não seja quadrado

O Cine Freud retorna três meses depois já em clima carnavalesco e travestido de macaco. Esta fantasia foi propositalmente escolhida para homenagear a mais próxima espécie do ser humano e, ao mesmo tempo, questionar o que existe de animal no ser falante. A oportunidade é para se pensar a vida em sociedade hoje cada um no seu quadrado. Ora, “O mal-estar na civilização” é um artigo que abre janelas, dentre elas, uma que serve de guia à verdade de que a vida comunitária implica numa renúncia aos impulsos instintivos. Ou seja, pra virar gente e humano foi preciso abandonar as paixões do instinto para em seguida cair na linguagem, aprender não só a falar como também a se nomear enquanto sujeito – reconhecido pelo nome, pelo status, pela profissão – e assim estruturar-se como um ser coletivo. Deste modo, impera na vida social o que pode ser pensado como uma estética da conformidade. Ainda assim, não seja quadrado, pois é bem certo que as sociedades organizadas para funcionarem bem são produtoras de nada mais do que o caos. A tentativa em organizar culmina em um coletivo que produz e atualiza o mal-estar. Com estas palavras é sintetizado o contexto do filme The Square – A Arte da Discórdia (2017).


A direção de Ruben Östlund apresenta uma abordagem sobre a atual condição do homem que submeteu seus impulsos primitivos a uma organização social que o legitima, o dá lugar. O gerente de museu Christian (Claes Bang) enquanto implicado na inauguração de uma exposição intitulada “The Square” se deu conta de que foi assaltado, de modo que a carteira, o celular e suas abotoadoras foram-lhe levados. Seguindo o conselho de um parceiro de trabalho, ele identificou via GPS o prédio em que o celular se encontrava e distribuiu anonimamente uma carta de ameaça em cada apartamento, tocando o terror. A partir de então, uma série de situações estapafúrdias se originaram. Descrevê-las aqui seria uma tentativa inviável de reproduzir o caos provocado por pessoas incapazes de manterem-se em seus devidos quadrados. No entanto, é certo que o roteiro traz elementos valiosos para a análise, tal como o quadrado em si e a figura do macaco. A estes será dada ênfase.

Frente ao prédio do museu, um quadrado foi riscado no chão bem como no primeiro ambiente da exposição há um quadrado que nada mais serve senão para depósito. Ora, o que seria depositado senão o celular e a carteira, aquilo que não pode faltar, que faz o sujeito existir socialmente enquanto sujeito? O quadrado é, portanto um lugar de esvaziamento... Até mesmo porque ele se tornou o setting para a gravação de um vídeo de anúncio publicitário da exposição, no qual uma criança, uma menina branca representando não só a Suécia, mas o poder branco como tal foi colocada enquanto mendiga para ter seu corpo explodido. O quadrado, absolutamente é um lugar individual, a única diferença, conforme mostrada é se você escolhe ou não acreditar nas pessoas. É assim um local de despojamento e de escolha subjetiva.

Na cadeia evolutiva, o aprender a falar teve crucial importância na mutação humana. Destacam-se dois macacos no filme, um em sua forma mais primitiva enquanto animal de estimação em um apartamento, e outro que surge já em corpo de homem, o qual evidentemente não fala, é a pura expressão do instinto de caça, agressão e sobrevivência. Em forma artística este surge frente a um grupo organizado em um jantar de gala. Ele é o avesso dos demais presentes e protagonizou uma das cenas ápices desta obra na qual o homem é confrontado com a versão mais fiel dele mesmo se a linguagem e o poder de refrear impulsos lhe fossem retirados. Como dito, é a renúncia a uma vida entregue às pulsões que organiza o ser humano socialmente. No homem primitivo, por outro lado, além da não-articulação da fala há a expressão direta da agressividade bem como o abandono ao instinto. No entanto, vale refletir, esta oposição não é tão demarcada assim. Nota-se hoje que a linguagem civilizante do homem parece cada vez mais fraca, ela não dá conta de civilizá-lo por completo. Assim, o recuo ao instinto aflorado, colocado para fora, o que produz senão a desorganização do sujeito e a formação de barbáries? É certo que a linguagem não matou o instinto por completo, como alguns acreditam. Basta se pensar no quanto há de expressão do instinto na busca pela sobrevivência financeira. A expressão instintiva aqui abordada entretanto, não diz apenas de uma luta pela vida, mas é resultado de não haver norma social, enquadramento comunitário forte o suficiente para aniquilar o macaco de cada um. O mal-estar social desde o freudismo é efeito deste macaco ativo em cada ser falante, a externalização do que prevaleceu de mais primata em cada um. Tem-se aí o fracasso da linguagem em aniquilar o mais radicalmente primitivo. A ligação do homem com o macaco se reproduz diariamente por atos desprovidos de racionalidade, tais como a discriminação dos vulneráveis, a homofobia, a guerra. As situações bizarras desencadeadas no filme bem como “o macaco à solta” anunciam o limite da linguagem humana em organizar. O que se vê portanto, é a reprodução do caos. A este respeito, se jogar um anagrama com a palavra “caos”, tem-se tanto “caso”, “soca” quanto ”saco”. Nada muito inspirador, realmente, nem mesmo a melhor mensagem de positividade para 2018. Ainda assim, o filme vale ser visto e as coisas aqui escritas são mais sinceras do que muitas outras que te foram ditas e desejadas nas últimas semanas. Feliz ano novo a todos.

Renato Oliveira

15.12.16

o desejo de saber, mais ainda

“Mais do mesmo”: a expressão se difundiu nas redes sociais. Não é um termo interessante, contudo indica tanto monotonia quanto a possibilidade de uma escavação. Para os presentes fins, aqui se adotará este segundo sentido. Há alguns anos atrás, neste mesmo endereço eletrônico foi publicada uma resenha sobre o filme Blow-Up (1966) ou “Depois daquele beijo”, um dos mais notórios trabalhos do diretor Michelangelo Antonioni. Ora, por que novamente se fazer discurso sobre ele? As primeiras ampliações feitas em formato de texto não deixaram de produzir inquéritos no falante por trás delas. Sabe-se que a iniciativa primordial de Freud foi postular um saber ao inferir a existência do inconsciente. Tido enquanto lugar da verdade, o inconsciente freudiano não é “pegável” ou mensurável, não esta localizado em uma parte específica do corpo, mas é um saber que se faz conhecido por seus efeitos. O protagonista de Blow-Up é um fotógrafo, seu nome ou características pessoais não são relevantes, mas uma pergunta cabe ser feita: o que era a realidade para ele? Esta era-lhe demonstrável, passível de ser fotografada e ele exercia influência sobre a mesma ao registrá-la sob determinados ângulos. Ele não só dava as coordenadas para capturar a realidade como também estabelecia os enquadramentos. Logo, a fotografia enquanto expressão artística é uma prova da realidade. Em oposição, na psicanálise não há esta prova, mas sim um saber que é suposto no outro, primeiramente no analista, para em transferência se descobrir que o saber é proveniente do sujeito do inconsciente. É sobre estas noções que se discutirá hoje aqui. 


Quanto ao roteiro do filme, vale se deter ao problema posto em cena: o que tinha na foto? O protagonista fotografa um casal em um parque e ao revelar os negativos, detecta uma quarta pessoa naquele local, oculta entre a vegetação. As fotos eram o recurso para visualização, análise e reflexão da realidade, mas o que era esta realidade em questão? O filme não a define, há uma incógnita quanto a se esta realidade era, de fato, demonstrável. O fotógrafo se viu capturado em um engodo, ele esteve frente a um fragmento de realidade que não foi visto. Será que seu principal sentido, a visão, o enganava? Parecia-lhe quase inconcebível ter fotografado uma paisagem sem identificar o quarto elemento, o que gerou um efeito de surpresa, quase como se ele enquanto sujeito estivesse ausente no momento em que as fotos no parque foram tiradas. É concebível que foi o sujeito da razão quem sumiu. Não se trata de uma paranóia do fotógrafo, mas sim de seu desejo de ver e uma curiosidade pelo saber, que culminou no interesse pela comprovação da realidade, como se esta lhe pregasse uma peça. Ora, e o que vem a ser a realidade do inconsciente senão aquilo que prega uma peça no sujeito e gera efeitos de surpresa e angústia? Trata-se de uma realidade que se anuncia e que somente pode ser apreendida num só-depois. Era exatamente com esta dimensão de porvir que o protagonista estava implicado. Contudo, o que tanto ele viu naquelas fotografias? Ele reconheceu que não sabia com exatidão a natureza do relacionamento entre o casal, de modo que ao fotografá-los, esta realidade poderia ser assimilada. É mostrada a implicação profissional do artista no estudo de um fenômeno que se mostrava enquanto oculto, e para tanto o recurso de zoom foi sucessivamente aplicado por ele. Deve-se destacar que ele não viu duas coisas: uma arma e um homem morto. A presença de um mistério foi suscitada pela análise da expressão facial da mulher na foto, de modo que ele retornou ao “local do crime”, pois seu desejo era conhecer o objeto que até antes dos blow-ups (ampliações) estivera oculto e torná-lo assim demonstrável. Mais freudiano, impossível. 

É válido se deter na relação do fotógrafo com seu objeto de análise, o homem morto. Ao retornar ao parque, ele se deparou com um cadáver e o reconheceu como sendo o mesmo homem fotografado. Logo, o artista comprovou uma realidade, só que temporária e suspeita, dado que numa posterior ida ao local, o ambiente estava desabitado. Este paradoxo entre fazer-se presente e desaparecer é uma boa alusão ao Sujeito do Inconsciente, pois é assim que ele se revela em uma análise. Há momentos de seu aparecimento, entre uma fala e outra, nos quais é reconhecido pelo falante por seus efeitos de surpresa ou angústia. A relação entre psicanálise e fotografia pode ser pensada com base em uma articulação de um desejo de saber. Assim como o filme não se pauta em uma perspectiva explicativa, Freud não produziu um saber analítico para explicar uma realidade, mas sim para expor um mais-além. Em sua produção técnica, o austríaco realizou uma série de blow-ups com vistas a mostrar algo que existia sem ser visto – sintomas, chistes, sonhos e atos falhos eram produções humanas ignoradas pelo saber médico, portanto fora do interesse de investigação. A fotografia freudiana trouxe à vista o desejo inconsciente enquanto repetição na relação do sujeito com uma realidade. Ademais, na escuta analítica, o sintoma pode ser tomado enquanto um fenômeno visualizável e cabe, portanto o desafio de implicar o próprio analisante na direção de saber lê-lo.

Duas considerações devem ainda ser feitas. A personagem feminina capturada na fotografia é uma possível referência à resistência. Ela não se implica em retaliar o fotógrafo, mas sim na captura dos negativos. Tem por objetivo impedir que uma realidade registrada fosse impressa. Ela foi ao estúdio com vistas a obter as provas de um suposto crime. É uma personagem angustiada, o que indica que havia ali um não-dito, dado que a angústia é um afeto sinalizador. Mas qual o objeto desta angústia? Nada se pode provar e tão somente inferir que a ansiedade daquela mulher aumentou mais ainda o desejo do artista em ver, em realizar uma série de ampliações fotográficas na suposição de que um saber oculto poderia ser desvelado. Nota-se também que a revelação de um possível assassinato é uma boa imagem para evocar o horror relativo ao desejo recalcado, que tem a mesma natureza de existir sem poder ser visto num primeiro plano. É um desejo que esta por entre os galhos e folhas do inconsciente. É admissível assim que o campo do inconsciente seja um jardim de Alice para alguns, ou mesmo um pântano úmido com folhagens secas.

Até o ano que vem,
Renato Oliveira

11.3.15

o quarto-mudo

Quando Freud disse que veio trazer a peste, algumas pessoas na época riram e desdenharam dos primeiros pilares teóricos por ele apresentados, às quais não parecia haver lógica nem mesmo relevância em suas concepções iniciais acerca de uma etimologia sexual como determinante dos sintomas histéricos. Será exagero dizer que ele veio para os seus (médicos) e eles não o receberam? Mas, não vim aqui para fazer seminário. Gostaria tão somente de introduzir com esta ideia o fato de que a peste ainda tá aí, nos livros de psicanálise, muito certamente, mas também nas experiências que vamos vivendo nesse mundo louco, e, consequentemente, a peste se desvela quando nos colocamos a falar de nossas vivências.

E, claro, quem sou eu para dizer que vim apresentar uma peste nova.  Pelo contrário, os temas aqui abordados são sempre os mesmos. Creio que o ineditismo cabe à presença de leitores como vocês e a linguagem produzida na relação com os filmes, que faz com que certos assuntos não se esgotem. Os temas de hoje não são aqueles que farão da vida uma coisa mais linda, mas são tópicos que apontam para a beleza inevitável da experiência de estarmos aqui. Para falar de afetos, vínculos e morte, escolhi o filme La Stanza Del Figlio (2001) sem saber que ao revê-lo, não saberia bem o que dizer. Na verdade, nunca sei exatamente o que digo aqui, contudo, se não for paranoia minha, creio dizer alguma coisa. Estou lacaniano nessa tarde nublada nível 4+1 da coisa. 


Este filme dirigido por Nanni Moretti tem como eixo principal algumas experiências vividas por uma família. O principal sujeito em questão, que de certo modo, seria aquele a ser tomado para análise, é Giovanni | vide diretor |, o pai, que antes de ser analisado, era primordialmente o analista de alguns falantes. Sua casa tinha um compartimento utilizado como consultório, e, ademais, ali viviam a esposa Paola | Laura Morante | e os filhos Andrea | Giuseppe Sanfelice | e Irene | Jasmine Trinca |. Apresentações feitas, vale ressaltar que a história tem início com uma dúvida colocada em cena: quem roubou um fóssil? Acredito que os jovens da tua cidade, como os de minha, realizam delitos piores. Anyway, seria Andrea culpado ou inocente? 


A questão inicial é quanto a quem esta com a verdade. Os adolescentes e seus pais são chamados a dar testemunho de inocência, e os argumentos apresentados não nos permitem entender quem é o "autor do crime". É possível desde já inferir que o roubo é apenas um apêndice ao filme quando o que estava realmente em jogo era a questão da verdade acerca do valor essencial de estar em família. E refiro-me ao “essencial” não como aquilo que não pode faltar, pois se assim fosse, tudo pareceria doutrinário. Faço menção, de fato, ao essencial como ‘essência’, tendo em vista que este núcleo é formador de pessoas e o quanto as mesmas se aproximam ou se repelem entre elas faz com que a experiência de estar juntos nunca seja sentida com neutralidade.


Acompanhamos no filme alguns fragmentos de sessões de análise em que nos é mostrada a singularidade dos “temas de sempre” de cada analisante. Contudo, o que se sobressai é a relação familiar de Giovanni, mostrada de uma forma tão natural que fica-nos a impressão de ser co-testemunha de parte da rotina de uma família comum. Acompanhar fragmentos da vida daqueles quatro membros desperta-nos afetos provenientes das lembranças que temos do que é estar reunido com pessoas que desde muito cedo nos encheram de nomeações, para o bem ou o contrário. Ainda quando filmadas algumas cenas deles separadamente, é formado em nossa cabeça o entendimento de que eles estão unidos por algum laço. Estar em família talvez seja isso.

Pois bem, não é de um documentário “como se vive em núcleo italiano” de que se trata, mas sim de uma história marcada pelo fatídico tema da morte. Pois numa manhã de domingo em que Giovanni é chamado a atender um paciente em domicílio, Andrea retira-se para um passeio em que mergulharia com amigos, ocasião esta em que ele morre afogado. Gostaria de esclarecer que não tenho como descrever os principais eventos que se sucederam, e quaisquer iniciativas para uma análise descritiva deste filme a mim parecem inviáveis, uma vez que todo o desenvolvimento da história retrata propriamente a atmosfera deixada pela perda de um ente amado. Ainda com este entendimento em vista, devo ressaltar que a principal dificuldade em analisar esta obra esta em encontrar palavras que produzam uma compreensão mínima do que é a angústia. 


Creio que a angústia não é somente aquilo de que não se quer falar, mas sim um impasse em se produzir palavras que a descrevam. É realmente a invasão e constante presença do Real sobre o Simbólico, que demarca uma condição em que o sujeito se vê desprovido de palavras que deem conta de expressar a experiência. É o encontro com o mudo, o vazio, o silêncio, o nada. A morte é o que representa com exatidão este "estado de coisas".

Não se trata apenas de uma reflexão sobre a morte a ser extraída deste filme, mas sim a experiência do valor da vida. Após o falecimento de Andrea, nos são apresentadas as tentativas de cada um dos familiares em prosseguir com suas ocupações, em retomar as inevitáveis rotinas. O realismo com que tudo é retratado fez-me pensar sobre o desafio em se produzir um filme sobre os efeitos da morte desvelados via a constante presença da falta. Criar um roteiro cinematográfico com o tema da morte é arriscar a procura no Simbólico – campo das palavras – por aquilo que não pode ser dito. É querer discursar sobre o mudo. Alguns detalhes presentes no período de luto da família, suponho, ajudarão a elucidar melhor estas questões. Comentarei brevemente sobre a divisão da casa, alguns objetos quebrados e a tentativa de escrever uma carta.


I.
A residência abrangia os compartimentos de uma “casa normal” e um espaço adicional delimitado para o consultório, o setting de escuta enquanto forma para cuidado de alguns tantos outros. É como se fosse o local apropriado para que Giovanni se afastasse de seus interesses pessoais, para advir àquilo que muito comumente seria chamado de profissionalismo. Mas, a questão é que a repartição física não é equivalente a uma divisão pessoal fácil de ser alcançada – ser pai num compartimento e estar no lugar do analista, em outro. Se o espaço clínico, no entanto, lhe conferisse este pleno distanciamento emocional necessário para a escuta analítica, então, é concebível que seria um local apropriado para a atuação profissional de Giovanni. Seria, ademais, um ambiente propenso à reabilitação. O que não ocorria. Ele não deixava de ser o pai angustiado, cuja falta do filho era constantemente sentida mesmo durante as sessões clínicas.

Eu empreguei um termo sobre o qual quero me deter por um momento. É de uma reabilitação que se trata na questão do luto? Se sim, supomos que uma pessoa deixou de estar hábil após a morte de alguém amado, e o processo de recuperação nada mais seria do que tornar-se hábil novamente. A experiência confirma que isso não é pouco frequente. Parece, contudo, um entendimento muito frio da questão. No estudo freudiano sobre o luto e a melancolia há alusão às catexias que se retiram da realidade externa para serem investidas no próprio objeto morto, introjetado no ego. Aquilo que se perdeu pode ser fundido com o eu do sujeito, de maneira que o sentimento de separação é similar à perda de uma parte de si próprio. Posteriormente, não se fala em uma reabilitação, mas sim em um restabelecimento de relações objetais, com a transferência de parte da libido, até então toda concentrada no ego/objeto morto para objetos externos (um trabalho, a arte ou uma atividade social), estabelecendo novos pontos de interesse na realidade externa.

O horror da morte nos desperta um sentimento de cautela em abordá-la, justamente por ser algo que tememos. Esse temor é decorrente de sua irrevogável verdade? Creio que o medo de morrer se relaciona à certeza de que não sabemos o que é a morte, uma vez que ela representa a própria invasão do Real sobre o Simbólico, como comentado, de modo que o esforço em retratar o que é a morte é frustrado desde o seu início. Para alguns, uma passagem, para outros, tão somente um descanso ou um acesso a algo melhor. Ora, não são poucas as tentativas de atribuição de significado à morte, contudo, nada que dê conta de desvelá-la em sua verdade. A contribuição da psicanálise nesse sentido é a de afirmar a presença de uma ausência, e nos levar a se contentar com isso.


II.
Sobre os objetos quebrados. Para ser mais exato, rachados. Na companhia de Paola, sua esposa, Giovanni comenta sobre chaleiras e xícaras que deveriam ser substituídas, ainda que, algumas delas, haviam sido coladas após o desastre e não mostravam sinais aparentes de reparação. Símbolo mais rico que este, impossível. Os utensílios serviam como objetos de projeção. Trata-se de uma alusão à própria condição deles, sujeitos quebrados, destruídos pela separação súbita, corpos fragmentados, mas inteiros, ainda que as marcas do rompimento fossem visíveis. Tudo naquela casa estava rachado, e admitir esta condição poderia ser uma primeira etapa para a construção de algo novo a partir disso, afinal, não é com um entendimento similar a este que se inicia um processo de análise?


III.
Paola recebeu uma carta de uma jovem que se correspondia com Andrea e até então não soubera sobre o seu falecimento. A mãe, ao lê-la, notou um grau de intimidade entre eles, e interessou-se, portanto, em saber de quem se tratava. Ela tentou anunciar o que ocorrera a seu filho em uma ligação para Arianna | Sofia Vigliar |, porém não conseguiu expressar-se em palavras, em virtude, evidentemente, da dor suscitada ao se tentar falar sobre a perda. Giovanni, em conduta similar, recorreu ao recurso de escrever uma carta a jovem, mas sem êxito. A dificuldade na escrita explicativa sobre a morte confirma a existência de um sentimento de limite, como mencionado, de uma impotência por se tratar justamente da intenção em dar representação àquilo que não tem.

Observem que, diferente de como costumo proceder nas resenhas que aqui escrevo, desta vez não fiz menção a diálogos literais. Não selecionei frases do filme por não encontrar aquelas que poderiam exprimir o que eu tinha em mente abordar. Penso também não se tratar de um filme de palavras, diálogos, do Simbólico em si, mas exatamente daquilo que não se é capaz de dizer, como procurei mostrar. É um filme sobre o encontro com o limite, o destino da vida, a certeza da qual não se escapa e sobre a qual as pessoas não querem falar, nem mesmo aproximar-se disso até que se torne inevitável um dia fazê-lo.

Cumprimentos cinéfilos,

Renato Oliveira

15.2.15

amar até correr

Hoje você vai conhecer o homem da sua vida. Durante o passeio, é provável que haverá pelo menos um homem colocado em condição de excelência para ser designado com o pronome “meu”. Freud descreveu isso tão bem ao referir-se a figura paterna enquanto instituinte das noções de lei e amor. A verdade é que as pessoas deixam marcas conforme atravessam o caminho da gente, e antes que a conversa se destine aos insucessos desses encontros, eis a oportunidade de apresentar um filme sobre esses temas escrito e dirigido por uma mulher. É a fia Zabou Breitman que traz a perspectiva do que é um relacionamento conjugal numa época em que esta em moda o “vamos tentar e ver se dá certo” com a crença de que “tem que durar pra sempre”. É numa atmosfera campestre que ocorreram as filmagens de L’homme de sa vie (2006). Devo alertar a todos que “tem um desfile de fantasmas aí embaixo. Cuidado, estão armados!”.

Inicialmente, é como se uma reunião familiar fosse ocasião para se falar de quaisquer assuntos, quase uma associação-livre grupal. Por uma temporada, o casal Frédérique (ela) | Léa Drucker | e Frédéric (ele) | Bernard Campan | abriram as portas aos familiares mais próximos. É curioso notar que os mesmos chegaram numa hora imprópria, pois Frédéric estava disposto, ou melhor, ereto e apto para o amor na condição de “fazê-lo”, mas foi completamente dissuadido com os dizeres: “não agora, meu amor. Convide menos pessoas da próxima vez, ai teremos mais tempo para fazer besteiras”. Vou declarar desde então que os convidados mudariam o ritmo das coisas. O significante tupiniquim ‘besteira’ alude ao sexo como divertimento, e esta se tornaria uma prática gradualmente extinta. Falaremos disso. 


Uma das primeiras situações do filme é um jantar, mas o objeto principal a nos ser servido nada mais é do que aquilo que as pessoas falam enquanto comem. Ora, um novo vizinho, Hugo | Charles Berling | fora convidado pelo anfitrião para tomar parte naquele evento. Numa primeira impressão, não há como não se lembrar de momentos em que fomos convidados a participar de conversas casuais entre pessoas desconhecidas sentindo-se sem pés nem mãos quão menos originalidade para abordar temas corriqueiros. Só que Hugo saiu-se bem. Apenas dois tópicos se sobressaíram em meio ao blá blá blá: o garoto dizendo que vê pessoas nadando nuas e Hugo que anuncia ser homossexual. Ele participou, inclusive, de um clássico número de mágica em que uma carta de baralho desaparece. Em que vai se transformar o rei de espadas? Sobre a experiência, revelou em seguida para Frédéric: “é o que gosto das mágicas, acontecem quando menos se espera e quando não se esta olhando”.


O principal eixo da conversa era a questão da falta. Tanto ao se falar em solidão, ao agregar um "sozinho" ao grupo quanto na tentativa de compreender o fenômeno da paixão, no qual as pessoas escolhem se apartar de alguns de seus interesses egoicos para dividirem suas vidas com outro supostamente investido de amor. Esse movimento, em termos psicanalíticos, nada mais é que a iniciativa de oferecer uma parte da falta ao outro. A esse respeito, é válido apresentar o testemunho da “matriarca” presente | sem conta no IMDB | que revela a Hugo acerca de sua relação com o amor: “não gosto de estar sozinha. Perdi o homem da minha vida há 15 anos atrás. É isso, desde então não posso”. E parou aí. Se essa última afirmação sugere que ela não poderia mais amar como um dia amou, na verdade, não sabemos. Os diálogos em torno desta questão retratam o mesmo assunto por pessoas que tiveram experiências diferenciadas. Ademais, algo realmente precioso nos é ofertado como material para reflexão quando as pessoas se dispõem a falar sobre o que viveram com alguém amante ou amado.


O consumo de vinho norteia (ou desnorteia) as conversas entre Frédéric e Hugo, o qual ao ser questionado se tinha ou não um marido, respondeu: “Um marido? Não. As relações estão mortas”. Como num banquete de Platão, inclusive por haver goró envolvido, o anfitrião foi convidado a responder a intrépida questão “o que é o amor?”, e disse o seguinte: “é pensar na outra pessoa, não sei. Querer ver o outro o tempo todo, sonhar os sonhos dele... Dividir a sua vida, estar apaixonado...”. O companheiro interpretou essa fala com base numa ideia de dependência, veja: “estar obsecado pela outra pessoa? Não poder viver sem ela? Precisar ser tocado o tempo todo? Sentir a falta quando não esta contigo? Se arrasar quando não for amado... Com amor ou sem? Estar receoso por perdê-lo... Dependente, triste, ansioso? Não, obrigado! Nunca me apaixonarei”. A primeira fala representa uma suposição de Frédéric e faz referência à formação de um laço afetivo, enquanto a segunda se baseia na ideia de uma inevitável obsessão junto àquele que se ama. Não parecem ideias paradoxais? É possível amar com a aceitação de que se esta envolvido em algo nocivo que lhe fará vivenciar um cárcere junto ao outro eleito? Obsessão e dependência: seria o outro lado da paixão? Ou uma variável inevitável da mesma?

Há uma observação de Frédéric que acredito ser bastante elucidativa: “o amor nos faz sentir mais vivos”. Seria esta uma opinião irrefutável? Não é. Porém suponho ser bastante verdadeira, uma vez que o amor traz por si mesmo um movimento, e baseia-se numa relação afetiva e libidinal tanto autoerótica quanto com o corpo do outro. “Estar vivo” também é uma noção presente no filme em imagens de batimentos cardíacos que aparecem durante as corridas matinais de Frédéric. São comuns os comentários de que a prática de caminhadas e corridas faz bem para o coração, bem como o estar amando o faz. Aludimos assim ao coração físico e ao afetivo ao mesmo tempo, de modo que amar e correr são efeitos da pulsão de vida, assim como a estagnação, a solidão e o silêncio podem ser pensados como um contato mais próximo com a pulsão de morte. Ou você nunca pensou que leitores ávidos e escritores antissociais e malucos correm risco de vida? Humor canastrão à parte, não esta em pauta aqui apenas a oposição entre viver ou “encaixotar”, mas sim a experiência de pulsionar, de encontrar objetos para satisfação de impulsos primitivos, tais como o amor e a fome. Frédéric parecia dar provas de estar, de fato, sentindo-se mais vivo, uma vez que são frequentes as cenas em que ele esta correndo e amando, ou seja, promovendo situações para elevar os batimentos do coração. Nesses momentos, ele demandava a presença de Hugo, convidando-o para correrem juntos bem como para jantares e festas locais. Eram estes convites recebidos com entusiasmo.


Serei obrigado, em nome do bom senso e do valor da pena de Freud desde 1896 a usar uma expressão detestável, só que relevante ao que pretendo expor: “o peixe morre pela boca”. Tudo isso para anunciar que Frédéric estava realmente “mais vivo” no sentido de movimento, pois além de correr e comer, havia espaço para a imersão nas questões do amor. E não do amor pela esposa, mas sim por Hugo. Mas se amor não for a palavra que melhor descreva, qual será? Interesse? Curiosidade? Em termos mais explicativos, é disso que se trata: a presença desse novo amigo era significativa de tal modo que sua ausência era sentida como a dor de um vazio. Desejava-se, constantemente, repetir a experiência de encontro. Para além de corridas e jantares, o que eles faziam? Conversavam. É conversando que a gente se desentende.

A linguagem não produz outra coisa senão suposições de entendimento. Mas se detendo aos moços em questão, aqueles desejados encontros de conversações produziam um moderado mal-estar em Frédéric porque lhe despertavam impulsos de ordem contrária a promessa de matrimônio. O desfile de fantasmas armados já estava em andamento na psique deste homem corredor! Talvez o inquérito a ser feito possa ser formulado assim: você corre de que? Pra que? Ou para quem? Ele, que era muito mais ouvinte do que falante em suas sessões noturnas com Hugo, finalmente, deu sua contribuição efetiva sobre o que é o amor: “a perfeição é a vida, e a perfeição é a morte. Estou pensando que o amor, estar apaixonado... É frágil, duvidoso e doloroso... É um estado de imperfeição que nos faz sentir mais vivos”. Podemos inferir que esta era realmente uma fala autêntica, não apenas uma suposição, porque ao que tudo indica-nos, era proveniente de alguém que estava realmente envolvido nas questões do amor, do desejo e da falta.

Após sua contribuição, Frédéric, ainda que não tenha sido dissuadido de seu testemunho sobre o amor, ouviu mais uma vez um discurso que parecia prestar menos louvor a Eros do que a Tanatos. Hugo comentou: “relacionamentos são uma armadilha que capturam, destroem. A destruição suprema é compartilhar a sua vida”. É curioso observar que era justamente essa escolha supostamente nociva que o anfitrião fizera ao casar-se com Frédérique. Ademais, estava numa extensão dessa vibe, uma vez que sua vida, aos poucos, se tornava também compartilhada com Hugo, numa oposição “distância-aproximada”.


Até então, a presença da esposa, Frédérique, foi pouco mencionada aqui, uma vez que ela parecia estar realmente excluída das principais motivações do marido. Devo ressaltar que aos poucos começa a aparecer o sintoma dele: o álcool. O elevado consumo de bebidas não era nada muito além do que uma saída de compromisso que justificava a impotência, isto é, a não potência de Frédéric para enfrentar um desejo incompatível. E incompatível com o que? É possível que esta aparente incongruência acontecesse nos termos “desejar a esposa e outro homem ao mesmo tempo”, ou, mais precisamente, “encontrar no amigo algo da ordem do desejo que à esposa era suposto faltar”. A decisão por compartilhar a vida com ela fazia com que este recém-inaugurado desejo por Hugo tivesse que ser destruído, ou o próprio casamento seria desfeito. A ideia do amor-livre, para além dos votos matrimoniais, de liberar o cônjuge para “um passeio” desde que ele volte na hora marcada não é compatível aqui, uma vez que se entende o compromisso de alianças no altar como a resolução para a questão da falta. Fala-se em “não ter olhos para mais ninguém” quando se ama. Frédéric, contudo, tinha não apenas olhos, como a escuta atenta e um pênis que junto a Frédérique não funcionava.


O sintoma que será descrito a seguir era uma forma de anunciar publicamente que ele não tinha mais para onde correr. Numa manhã, enquanto descia as escadas sem intenção de fazer barulho, Frédéric torceu o pé direito. Após ter sido acudido pela esposa, ele decidiu-se por ir correr com o amigo ainda que tivesse que sustentar-se numa só perna. Torcer o pé foi o terceiro sintoma emergente, antecedido pela impotência sexual com a esposa e o alcoolismo. Todos eles eram o anúncio de que o exercício do hábito "correr dele e com ele" ou “correr do amigo-desejo e com desejo” já não estava mais apropriado. A inadequação estava colocada em cena. Se aquelas corridas faziam parte de um processo maior de sublimação do anseio por prazer sexual, era como se esse recurso não mais lhe servisse. “Para onde correr com o pé torcido?” pode ser uma metáfora da sentença “o que fazer com um desejo-limite que alcançou a consciência?” Agora ele estava certo de que não adiantava mais correr, ele precisava ser carregado, necessitava da sustentação do outro com vistas a depositar o que sentia no objeto-causa desse desejo.

Ser carregado pelo amigo alude à ideia de que o desejo lhe era insustentável, mas o objeto causa do mesmo poderia ser forte o bastante para prestar-lhe a função temporária de suporte. O sintoma da torção veio apenas anunciar pela via do corpo essa realidade interpretada. Com o pé machucado, Frédéric também estava parcialmente inapto para a atividade sexual com Frédérique, logo, justificava sua ausência nos "deveres de marido". No entanto, o sexo, quando pensado na dimensão do desejo, da fantasia e do êxtase, nada tem de dever, nem mesmo de saciedade, mas sim de um encontro sempre faltante.


Fica-nos portanto a imagem de Frédéric sendo transportado por Hugo em retorno a sua casa, aos olhares dos familiares e de todos aqueles que testemunhavam sua temporária limitação para caminhar. Não há como inferir que se trate de uma história sobre a autodescoberta que perduraria por toda uma nova vida. É mais exato o entendimento de que algo foi experienciado nas questões do amor, e que, absolutamente, com intrepidez e medo, se ousou vivê-lo. Próximo à piscina na casa de Hugo estava escrito: “é o melhor tempo para iluminar as estrelas” e penso que, honestamente, essa frase também nos autoriza a lançar luz sobre partes desconhecidas da mente presente nos filmes. O título é “O homem da minha vida”, mas da vida de quem? O rei de copas apareceu, e seria ele esse homem? Como num jogo de cartas, temos Frédéric, Frédérique e Hugo, dois dentre três será o homem da vida, mas à quem se destina recebê-lo é o que não sabemos. Tão somente nos é permitido supor que um homem emerge como um fantasma armado para promover prazer e causar algum formigamento para aqueles que não gostam de estar sozinhos.

Que o inverno não tarde,

Renato Oliveira

10.1.15

beethoven e a mulher

Qual a melodia tem a dor? E o horror, se conjuga com o que? Dor e horror não apenas são significantes que rimam como também podem ser dois fios de barbante a se entrelaçarem com um terceiro, o amor. Tudo isso seria muito lindo de se pensar se não fosse a sensação de desgosto com louvor que o filme de hoje me provocou. Nas primeiras resenhas escritas aqui, eu comentava mais dos meus sentimentos contratransferenciais para com os trabalhos escolhidos para interpretação. Com o tempo, contudo, não sei por que abandonei essa prática, talvez por querer alcançar a impessoalidade dos “acadêmicos de cadimia”, ou porque aspirava uma cadeira no jardim de Cannes ou um chá no Planalto. O fato, ainda assim, é que mesmo após os anos em Psicologia somados às experiências de estrada eu não tenho nada muito mais profundo do que iniciar-me dizendo que “somos todos doentes”.

Ah sim, sobre o filme de hoje, “A professora de piano” (2001), devo já declarar que é uma obra psicanalítica por natureza, ou melhor, vou mais além, é o suprassumo analítico, pois todos os principais temas de causa freudiana estão ali: desejo de morte, o masoquismo, a fusão e desfusão das pulsões, a relação entre mãe e filha entre outros. E como disse o cidadão Sisek, “filmes nos ensinam a desejar”, logo, não é por menos que fui assaltado por um anseio e necessidade de me voltar a todos os artigos de Freud um dia lidos e amados. Em especial: “O problema econômico do masoquismo” (1924) e “O fetichismo” (1927).

Assim, quero dizer que Michael Haneke desvelou-me nessa singular experiência a recordação de que o Inconsciente funciona. E não digo funcionar no sentido de "dar certo", na verdade, ele causa mesmo é um embaraço de fios, formando nós, refiro-me, portanto, a seu funcionamento, ao movimento contínuo de seus conteúdos que querem alcançar a consciência. Há pessoas que vão ao analista e pedem a ele que as auxilie nesse processo, há aquelas que, não obstante a isso, também assistem a determinados filmes e o resultado não é nada mais poético do que um “salve-se quem puder!”.


Sobre a personagem em questão, Erika Kohut | Isabelle Huppert | pode ser considerada por alguns uma deusa, uma louca e uma feiticeira, mas prefiro deter-me ao fato de que ela era uma pianista de prestígio, cujo reconhecimento a tornava objeto do interesse de pais que almejavam um futuro de “filho pianista” a um de sua prole. Vemos, inicialmente, fragmentos de algumas aulas seguidos por um retorno ao lar. Ela vivia com sua mãe sem nome | Annie Girardot |, de modo que lhe atribuiremos apenas o significante “mãe”, a qual nos é apresentada como aquela que demanda um saber pleno acerca do que a filha havia feito nas últimas três horas. O atraso era sentido como uma afronta, de maneira que Erika era convidada a dar provas de que não utilizara esse tempo inutilmente.

A aparência da situação nada mais é que um retrato de “preocupação de mãe” só que exacerbado e sentido com certo desgosto uma vez que estamos diante de filha já crescida. Atribuímos à maturidade o poder de se pensar por si próprio, e na literatura psicanalítica, mais detidamente, à capacidade de responsabilização por aquilo que se deseja. No entanto, na vida e nos filmes encontramos pessoas e situações contra as regras. Ora, tudo isso para fazer menção à briga entre Erika e sua mãe, o embate corporal como consequência de uma inviabilidade de se entender via fala. Sim, dessas em que se pega pelos cabelos, de maneira que ao término, entre prantos, sua mãe lhe diz: "fiquei com um buraco aqui e outro aqui". A reconciliação entre ambas foi seguida de declarações de amor e remete a experiências de querer “ficar de bem” daquela estimada amiga após uma discussão sem importância.

Além da considerável semelhança física, outros fatos ajudam-nos a formar a imagem de uma fusão entre mãe e filha: os olhares perscrutadores de ambas; a presença delas nos mesmos ambientes e a própria simetria corporal. Elas pareciam constituir unidade.


Essa ideia acima se dialoga com o momento em que se dirigiam a um concerto e ao tomar um elevador são seguidas por um jovem que tenta entrar, iniciativa esta sentida como uma penetração forçada, uma vez que elas não inviabilizam o fechamento das portas, como a dizer-lhe: “perdeu, campeão”. Só que ele sobe as escadas com agilidade, dando provas de ser capaz de chegar primeiro para apresentar-se a elas quando as portas do elevador se abrissem. Walter Klemmer | Benoît Magimel | se faz conhecido por se tratar de um aspirante ao sucesso na carreira de pianista, ávido por demonstrar sua admiração pelo trabalho de Erika. No evento, após a apresentação da veterana mestra, ele não se inibe ao mostrar-lhe todo o seu reconhecimento em palavras que, se não levadas ao vento, foram tão somente recebidas com um “obrigado”.


O jovem, entretanto, não se sentiu coagido em sua exibição posterior ao deslumbrante desempenho de Erika. Sua humildade fora expressa aos ouvintes seguida de uma articulação de dedos notável e inspiradora. Enquanto o ouvia, é como se nos fosse dada a oportunidade de ler o rosto da professora, que se encontrava “sonhando com aquilo que não tem, enchendo-se do pior e do melhor”. Penso que enquanto o som do piano ecoava, ela estava em contato com suas fantasias, de modo a conduzir Walter a elas, dando-lhe um lugar. Essa figura do masculino, renegada a ter um espaço no elevador, foi de outro modo, admitida na vida mental, e seria articulada ao desejo, a voracidade e ao inconfessável.


Walter militou por um lugar junto à veterana e foi aprovado por uma comissão selecionadora dos principais talentos. O reconhecimento de que ele portava um verdadeiro dom era praticamente unânime, se não fosse o discurso de Erika que o acusava de ser velho para a carreira profissional. Ainda assim, ele foi aceito “por maioria de votos” e passou a ter aulas regulares com ela. A sua rigidez corpórea, constância nas expressões faciais e indumentária em cores pasteis são elementos que ajudam-nos a criar a imagem de uma mulher sem apreço pelas questões amorosas, bem como traz uma alusão a imagem de frigidez. A correspondência ocular entre Erika e Walter, bem como a atmosfera gélida produzida pela falta de humor para com os elogios ofertados por ele são fatores nos levam a supor a existência de uma tensão no encontro entre ambos. Em consequência, pode-se pensar que o êxtase a se obter pela atividade sexual poderia aplacar esse distanciamento, quando, na realidade, é de outra coisa que se trata. 

Nem frigidez, nem “vamos fazer do jeito normal”, mas sim o retrato de uma não complementaridade entre os sexos. Voltamos aqui a uma das “coisas freudianas” abordadas por Lacan para nos referirmos à noção de que o masculino não vem para suplantar a ausência de sexo na mulher. Ou seja, a demanda de Erika não era por um amor, uma casa, um pênis, um filho e um todo. Não se percebe a existência de uma mulher tomada pela ilusão de poder ser completa e suficientemente toda. É uma indiferença quanto ao outro sexo como suplente da falta que esta presente desde o início. Ela se declarava para Walter com as palavras: "eu não tenho sentimentos, melhor se convencer disso". Só que essa indiferença não anula um interesse, ainda que isso pareça contraditório. Penso que a relação com o sexo se mostra, primeiramente, numa curiosidade por observá-lo, por imaginar o que acontece no encontro de um casal.

Não é por menos que a pornografia lhe era útil. Assim, basta observar a forma como Erika assistia a cenas de sexo para notar que não parecia se tratar de uma experiência de incorporação, ou seja, ela não extraía prazer físico, nem mesmo se estimulava diante das cenas. Tudo se passava e, a princípio, se resumia, na contemplação do masculino, seja por meio dos vídeos pornôs, seja pela sensação olfativa decorrente de lenços usados para absorver esperma, os quais foram deixados por homens que estiveram naquela cabine. É como se em relação ao conceito de prazer sexual extraído do corpo, a predileção da professora fosse o distanciamento e ceticismo próprios de um pesquisador científico impossibilitado de envolvimento com sua amostra. Erika em relação a Walter bem como sua mãe junto a um senhor que a abordava no concerto retratam a existência de um desdém para com as iniciativas de aproximação masculinas. O contato com homens era-lhes admissível apenas com uma distância estabelecida. Vale mencionar que a impessoalidade com que o aluno foi tratado por Erika remete a rejeição que a consciência faz ao desejo inconsciente. Este, por sua vez, subverte a condição racional do homem, traz certo abalo, leva-o a "não querer saber disso". A neurose é um constante "não querer-saber", um movimento de desistência, de desligamento, de desencorajamento. No filme, isso é notável, como um desinteresse ao exercício da sexualidade genital.

Só que na perspectiva analítica que aqui tratamos, rejeição não significa abandono. A sexualidade da personagem não era inexistente, de modo que notamos um duplo movimento, em que Walter enquanto objeto é tratado com descaso e ao mesmo tempo é perseguido, em outras palavras: “não se aproxime, mas eu quero te ver”. Ela segue o aluno e mostra-se afoita por saber dele. Se por um lado, não nos parece haver desejo sexual genital, após conhecê-lo Erika revela interesse pelo desejo de incorporação. Ver é uma forma de incorporar, uma vez que as imagens podem ser introjetadas e ganhar “lugar” na vida psíquica. Ademais, essa predisposição a tomar parte do masculino para si foi reforçada pelo interesse de Walter em mostrar-se como oferta disponível, acessível ao “interesse de pesquisa” de Erika. Quando ele a segue até o banheiro e a agarra, temos a impressão de que se seguirá uma relação sexual nos padrões conhecidos, ainda que em setting não convencional: estimulação, penetração, clímax e orgasmo são palavras que formam, em sequência, a ideia que nos surge. Erika, contudo, o recebe e o rejeita ao mesmo tempo para logo delimitar a regra de que seria dada continuidade àquela atividade somente se Walter se mantivesse apto para ofertar-lhe o pênis às suas mãos e lábios apenas, nada além disso. Ela almejava o pleno controle da situação. Nessa circunstância, anuncia que ele devia manter seu pênis ereto para que pudesse contemplá-lo e num determinado momento, se recusa-se a prosseguir com a estimulação, a fim de que ele não ejaculasse. Em outros termos, para mantê-lo em falta.

Qual tipo de homem toparia um jogo assim? “A sua atitude é completamente perversa” ele lhe disse. A ordem dela "quero que fique assim" (ereto) pode ser interpretada como uma condição para que o objeto fosse visto e incorporado. Ela buscava se ancorar em alguma coisa ao mesmo tempo em que rejeitava ser penetrada e entregar-lhe, assim, parte do domínio da situação. A atitude perversa era uma conduta dupla, que consistia em deixar o outro "na vontade" para manutenção da falta e ao mesmo tempo oferecer-se como provocadora de prazer, para seus interesses egoicos de introjeção. Ela faz advir o pênis ereto, para em seguida desmerecê-lo. Este é um protótipo da relação do neurótico com o desejo, em que se aproxima do objeto para em seguida negá-lo com sentimentos de rejeição e desprezo.

Essa ambiguidade é reforçada por uma carta direcionada a Walter em que ela oficializa as regras do jogo, demandando-lhe que a coloque como objeto, que a agrida, que a impeça de reagir ao ato, submetendo-a a uma condição de serva. Caberia a ele fazer-se ou não resposta a esse pedido. Não há como não se referir a noção de uma repulsa a primazia genital de que Freud falava, de modo que, a penetração é rejeitada enquanto prática para obtenção de prazer. A noção de sexo quando introjetada como algo imoral pode reforçar, ou apenas ser complementar à fantasia da mãe pura, que consentiu à atividade sexual uma única vez para fins de gravidez.

Ademais, Freud deixou-nos o legado em torno do masoquismo a partir do esclarecimento de funções da dor na vida mental. Assim, as fantasias de humilhação podem ser uma via para se aplacar um sentimento de culpa pelo exercício da sexualidade. A dor física era sentida por Erika como experiência de alívio. É como se ela se culpabilizasse por seus desejos eróticos e o ato masoquista fosse a solução para este problema; como se vivesse como “a filha ideal” para amenizar sua culpa para com a mãe pelos desejos sexuais fantasiados. Ao mesmo tempo, queria se ver livre desta mãe onisciente, castigá-la, portanto, infligir dor a essa outra parte dela mesma, e Walter seria utilizado para este propósito. Seria uma tentativa de Erika para livrar-se de si mesma e escapar a sua condenação? Quem a acusaria? Quem se levanta contra o neurótico para acusá-lo em atos de dominação e fazê-lo, portanto, cativo a um “não se sabe o que”? 


Haneke concede-nos a oportunidade de pensar quanto a que tipo de exercício sexual se instaura a noção de horror, e o porquê disso. O prazer na dor e a dor no prazer são jogos de palavras que não se esgotam por eles mesmos. Extrair um sentido a partir deles é uma tarefa que convoca o nosso masoquismo a entrar a jogo, de modo a suportarmos a aflição de se entender um caso, enquanto um fatídico não-saber continua a ser produzido. E o piano é o de menos.

Renato Oliveira

18.8.14

sonho de padaria tv

“Embarque nesse carrossel” não é a frase mais científica para começar esse relato de cunho interpretativo. Não haverá carrossel algum, mas sim um cavalo que, devo adiantar desde então, será um elemento-chave. É com este símbolo/objeto que tentarei amarrar as considerações que serão feitas.

Durante esses quase cinco quatro anos escrevendo análises de filmes a partir de conceitos da psicanálise, é evidente que apreendi alguma coisa para chamar de “muito valor”. Pense que quando você faz algo que realmente é importante para ti, é possível se dar ao direito de criar uma caixa imaginária para guardar aprendizados e outras coisas que não podem vir a ser desmanchadas com o tempo. Sobre o valor estimativo de uma caixa, escrevi há muito tempo atrás.

No meu caso – ou melhor, na minha caixa – encontra-se entre outras coisas, a certeza de que as interpretações prontas podem até funcionar bem, mas não são para mim porque não se aproximam do “coração do filme”. Ademais, nela também esta guardada a concepção de que A Verdade do filme não esta com pessoa alguma, mas ela pode ser patrimônio de cada um que ousar concebê-la enquanto tentativa de elaboração. Afinal, formamos interpretações para nós mesmos ou para algum grupo que supomos que atribuirá sentido às palavras. Na realidade, também interpretamos para conhecer os objetos internos dos roteiristas e diretores... Logo, não há como não admitir que conhecemos, ainda que muito parcialmente, o inconsciente deles, pois material para tanto se encontra disponível em seus trabalhos, só que deslocados e condensados, como os sonhos de Freud. 


Eu tinha Michel Gondry em mente enquanto escrevia estes pressupostos acima. Logo, tudo o que puder ser pensado de psicanalítico por hoje será em articulação com a Ciência dos Sonhos, inventada por ele – La science des rêves (2006).

No início de tudo, ele ousa-nos responder como os sonhos são fabricados. Stéphane | Gael Garcia Bernal |, no seu educativo programa de TV, nos dá a fórmula da composição onírica: pensamentos, reminiscências do dia (restos diurnos), lembranças do passado, canções, coisas que foram vistas, amizades e amor. Tudo isso, quando misturado, formará as imagens que aparecerão em nossa mente, as quais, quando lembradas, tornam-se geralmente risíveis ou terrificantes – “nos sonhos, as emoções fascinam”. Na verdade, ele era um cidadão absolutamente fascinado com a oportunidade de criar coisas, em descobrir o mundo criativamente, em imiscuir-se nas recordações e projetar um futuro acima da capacidade de compreensão das demais pessoas.


Certamente já fomos testemunhas de que os nossos sonhos (conteúdos oníricos) são produtos de uma mente cujo funcionamento não se pauta numa temporalidade comum. Não é por menos, que certas recordações da infância voltam como se você ainda não tivesse chego à casa dos 40, amores rompidos aparecem como objetos para uma primeira ou nova frustração e coisas do tipo. Ora, esta mesma característica retroativa esta presente no início da história, pois Stéphane decidiu voltar à casa de sua mãe e encontrar-se com o quarto em que viveu quando ainda criança e durante os anos da adolescência. No entanto, como um homem “já crescido”, seus dias seriam vividos não apenas nesta agridoce atmosfera mnêmica, mas também em um ambiente corporativo. Ele é admitido numa empresa para confecção de calendários. A princípio, pensou que criaria modelos originais, deslumbrantes e muito possivelmente relacionados com seus fantasmas internos, mas não, as fotografias já estavam impressas, e seu dever seria colar etiquetas conforme o gosto do cliente na fase de acabamento dos pedidos. 


Ele foi contratado para ser montador, quando almejava, na verdade, a função de criador. Sendo assim, apresentou propostas inusitadas a um dos superiores, mas como é possível deduzir, não se tratava de um contexto para a criação, para a arte e expressão do lúdico. O ambiente de trabalho é retratado desde então como o “cinza essencial” em que o sujeito se insere para que sua mão de obra (ou força de resistência) sejam gratificadas com o salário. Agora, se ao colaborador é possível ser sujeito na vivência corporativa enquanto portador de uma singularidade é uma questão que não será discutida hoje. Ainda assim, Gondry nos dá elementos para pensar na alienação que envolve o homem que nada cria, mas tudo obedece para que sua vaga não seja perdida.


Que fique claro desde então que para Stéphane era inviável uma vida sem criação. Ora, ele era um contador de histórias, que tinha um programa de TV imaginativo sobre seus próprios sonhos. E aqui, imaginativo não significa irreal. No roteiro, acompanhamos a “vida de sonhos” desse singular falante, bem como sua vida cotidiana como um morador do apartamento da frente. Da frente do quê ou de quem? Na ocasião em que dois homens tentavam transportar um piano, Stéphane presta-lhes auxílio e ao machucar sua mão esquerda, logo vai parar no apartamento de Stéphanie | Charlotte Gainsbourg |, sua nova “vizinha da frente”, que junto à amiga Zoé | Emma de Caunes | lhe oferecem socorros. 

Neste momento, vale um adendo. Antes mesmo da “catástrofe do piano”, um elo se estabeleceu entre eles quando, descautelosamente, Zoé fura a parede do apartamento da amiga, de modo que a broca da furadeira atinge o quarto do nosso querido falante. Guardem as denotações de cunho propriamente sexual para um outro dia, pois por hora, essa ideia inicial de furo, e principalmente, de passagem, já indica que haveria uma transição entre os mundos internos de Stéphane e Stéphanie.


Vou parar aqui. Quero enfatizar que não se faz preciso descrever os eventos que lhe sucederam nesta vivência no louco mundo de trabalho, e o encontro com seu quarto – com objetos internos antigos ali expressos em setting – perfurado com o apartamento da frente. Algo acima me parece sobressair muito mais aos olhos: os nomes. Stéphane e Stéphanie: precisa escrever que se trata de uma relação romântica colorida por afetos e papeis? Não apenas isso. É relevante comentar que eles não viveram uma paixão atroz, marcada por perfurações no corpo e dilatações afetivas. A princípio, tudo o que havia era uma timidez e uma acentuada “falta de jeito” de Stéphane em aproximar-se dela, em revelar o que ele sentia. Sabe-se lá quais eram seus reais sentimentos, mas em conversa com um ~~companheiro de firma~~ ele revela existir algo de mágico em relação a cidadã. Bastaram algumas poucas visitas ao mundo interno dela (seu apartamento), ainda em arrumação, para que ele a identificasse como uma criadora, alguém cujos eventos da vida representavam formas de arte. Tais como: as sensações mais sutis na pele, a montagem de um mezanino, até mesmo a criação de um cenário com um barco e uma ilha dentro, cerceado por nuvens de algodão e águas de papel celofane transparente e azul.

Há uma cena que representa o apreço que Stéphane nutria para com a jovem amada. Ele “perfura” o apartamento dela entrando pela janela, com a intenção declarada de fazer-lhe uma surpresa. Assim, ele recria um pônei (ou cavalo, somente, como preferirem) de tecido, incutindo-lhe baterias que lhe dariam movimentos. Esta atitude foi seguida de uma inscrição: o pônei passou-se a chamar “dourado” e tornou-se símbolo da fusão amorosa entre ambos.

Pois bem. Contudo, não me contento com o fato deles terem nomes tão próximos representar apenas a formação de um casal. Na realidade eram praticamente xarás. Isso sugere algo a mais. Na verdade, me faz pensar que a relação entre Stéphane e Stéphanie era a reprodução de um evento muito mais primitivo vivido nos primórdios da experiência do bebê com as fontes de gratificação. Não é de hoje que sabemos acerca do valor de relevância para a saúde mental de que o mundo seja apercebido pelo bebê como uma realidade boa, e isso somente é possível com a introjeção inicial de objetos gratificadores. Para tanto, é necessária a adaptação materna às necessidades físicas e emocionais do bebê, oferecendo-lhe um seio que lhe possibilitará investir seus próprios impulsos de amor e ódio, e que se manterá intacto mesmo quando atacado pelo lactente. Do ponto de vista de nós que estamos “de fora”, o seio é oferecido, apresentado como oferta louvável, mas a psicanálise muito bem iluminou o nosso entendimento a ponto de dar a compreensão de que este objeto de amor, o seio, é criado na mente infantil. As raízes do viver criativo estão nestas experiências iniciais em que o bebê acredita inventar o objeto de sua necessidade. Ele vivencia, portanto, um sentimento de onipotência ao constatar que o seio ali estava porque o seu poder criador o colocou como fonte de todo o suprimento e bondade.

E o que tudo isso tem a ver com Stéphane? Não seria Stéphanie a criação deste objeto completamente bom e gratificador? O amor é retratado com base na ilusão de onipotência de nosso cidadão falante, que elaborou uma figura para investimento afetivo, a qual, ao ser introjetada, tornou-se uma parte de seu ego, um eu ideal. Uma das principais consequências disso era sua crença em poder controlá-la. Em suas palavras, notamos a complexidade desta interação: “chama-se CPS. Casualidade Paralela Sincronizado. Sabe o porque? Acho que nossos cérebros criaram um vínculo, incrivelmente complexo. É incrivelmente raro. É como se fôssemos um quebra-cabeças”. Mas, que paradoxo é esse: Stéphanie já existia ou foi criada? As duas coisas, pois não se trata de uma oposição para ser resolvida, assim como o seio antecede a fantasia de onipotência do bebê, e continua a existir como uma criação do ego.


Stéphane não era somente um inventor de calendários, óculos 3D ou histórias, ele inventou uma mulher enquanto protótipo de uma boa experiência de satisfação anterior, aquela que o ajudaria a suportar a monocromia de cinza do mundo. Ele não experienciava um sentimento de irrealidade junto a ela, porque, enquanto eu ideal, ela era uma extensão de seu ego. E para além disso, eles estavam unidos por meio de Dourado, o cavalo, que ao ganhar movimento sugere que eles poderiam percorrer distâncias maiores a partir deste vínculo afetivamente produzido.

Assim, fico a pensar que o inconsciente de Gondry é dado a ver mediante os elementos presentes na Ciência dos Sonhos elaborada por ele. A presença do onírico em situações da vida cotidiana forma um retrato diferenciado de uma forma de paixão. Frente à drástica realidade do mundo, é possível que seja pertinente a recordação de que em algum momento da vida se criou um objeto da necessidade – seja uma história, um amor ou um cavalo de pano. Se esta criação teve a finalidade de auxílio para se vivenciar uma passagem, é certo que o poder investido para criá-lo deve ser redescoberto.

Feliz por estar de volta.

Renato Oliveira