15.12.16

o desejo de saber, mais ainda

“Mais do mesmo”: a expressão se difundiu nas redes sociais. Não é um termo interessante, contudo indica tanto monotonia quanto a possibilidade de uma escavação. Para os presentes fins, aqui se adotará este segundo sentido. Há alguns anos atrás, neste mesmo endereço eletrônico foi publicada uma resenha sobre o filme Blow-Up (1966) ou “Depois daquele beijo”, um dos mais notórios trabalhos do diretor Michelangelo Antonioni. Ora, por que novamente se fazer discurso sobre ele? As primeiras ampliações feitas em formato de texto não deixaram de produzir inquéritos no falante por trás delas. Sabe-se que a iniciativa primordial de Freud foi postular um saber ao inferir a existência do inconsciente. Tido enquanto lugar da verdade, o inconsciente freudiano não é “pegável” ou mensurável, não esta localizado em uma parte específica do corpo, mas é um saber que se faz conhecido por seus efeitos. O protagonista de Blow-Up é um fotógrafo, seu nome ou características pessoais não são relevantes, mas uma pergunta cabe ser feita: o que era a realidade para ele? Esta era-lhe demonstrável, passível de ser fotografada e ele exercia influência sobre a mesma ao registrá-la sob determinados ângulos. Ele não só dava as coordenadas para capturar a realidade como também estabelecia os enquadramentos. Logo, a fotografia enquanto expressão artística é uma prova da realidade. Em oposição, na psicanálise não há esta prova, mas sim um saber que é suposto no outro, primeiramente no analista, para em transferência se descobrir que o saber é proveniente do sujeito do inconsciente. É sobre estas noções que se discutirá hoje aqui. 


Quanto ao roteiro do filme, vale se deter ao problema posto em cena: o que tinha na foto? O protagonista fotografa um casal em um parque e ao revelar os negativos, detecta uma quarta pessoa naquele local, oculta entre a vegetação. As fotos eram o recurso para visualização, análise e reflexão da realidade, mas o que era esta realidade em questão? O filme não a define, há uma incógnita quanto a se esta realidade era, de fato, demonstrável. O fotógrafo se viu capturado em um engodo, ele esteve frente a um fragmento de realidade que não foi visto. Será que seu principal sentido, a visão, o enganava? Parecia-lhe quase inconcebível ter fotografado uma paisagem sem identificar o quarto elemento, o que gerou um efeito de surpresa, quase como se ele enquanto sujeito estivesse ausente no momento em que as fotos no parque foram tiradas. É concebível que foi o sujeito da razão quem sumiu. Não se trata de uma paranóia do fotógrafo, mas sim de seu desejo de ver e uma curiosidade pelo saber, que culminou no interesse pela comprovação da realidade, como se esta lhe pregasse uma peça. Ora, e o que vem a ser a realidade do inconsciente senão aquilo que prega uma peça no sujeito e gera efeitos de surpresa e angústia? Trata-se de uma realidade que se anuncia e que somente pode ser apreendida num só-depois. Era exatamente com esta dimensão de porvir que o protagonista estava implicado. Contudo, o que tanto ele viu naquelas fotografias? Ele reconheceu que não sabia com exatidão a natureza do relacionamento entre o casal, de modo que ao fotografá-los, esta realidade poderia ser assimilada. É mostrada a implicação profissional do artista no estudo de um fenômeno que se mostrava enquanto oculto, e para tanto o recurso de zoom foi sucessivamente aplicado por ele. Deve-se destacar que ele não viu duas coisas: uma arma e um homem morto. A presença de um mistério foi suscitada pela análise da expressão facial da mulher na foto, de modo que ele retornou ao “local do crime”, pois seu desejo era conhecer o objeto que até antes dos blow-ups (ampliações) estivera oculto e torná-lo assim demonstrável. Mais freudiano, impossível. 

É válido se deter na relação do fotógrafo com seu objeto de análise, o homem morto. Ao retornar ao parque, ele se deparou com um cadáver e o reconheceu como sendo o mesmo homem fotografado. Logo, o artista comprovou uma realidade, só que temporária e suspeita, dado que numa posterior ida ao local, o ambiente estava desabitado. Este paradoxo entre fazer-se presente e desaparecer é uma boa alusão ao Sujeito do Inconsciente, pois é assim que ele se revela em uma análise. Há momentos de seu aparecimento, entre uma fala e outra, nos quais é reconhecido pelo falante por seus efeitos de surpresa ou angústia. A relação entre psicanálise e fotografia pode ser pensada com base em uma articulação de um desejo de saber. Assim como o filme não se pauta em uma perspectiva explicativa, Freud não produziu um saber analítico para explicar uma realidade, mas sim para expor um mais-além. Em sua produção técnica, o austríaco realizou uma série de blow-ups com vistas a mostrar algo que existia sem ser visto – sintomas, chistes, sonhos e atos falhos eram produções humanas ignoradas pelo saber médico, portanto fora do interesse de investigação. A fotografia freudiana trouxe à vista o desejo inconsciente enquanto repetição na relação do sujeito com uma realidade. Ademais, na escuta analítica, o sintoma pode ser tomado enquanto um fenômeno visualizável e cabe, portanto o desafio de implicar o próprio analisante na direção de saber lê-lo.

Duas considerações devem ainda ser feitas. A personagem feminina capturada na fotografia é uma possível referência à resistência. Ela não se implica em retaliar o fotógrafo, mas sim na captura dos negativos. Tem por objetivo impedir que uma realidade registrada fosse impressa. Ela foi ao estúdio com vistas a obter as provas de um suposto crime. É uma personagem angustiada, o que indica que havia ali um não-dito, dado que a angústia é um afeto sinalizador. Mas qual o objeto desta angústia? Nada se pode provar e tão somente inferir que a ansiedade daquela mulher aumentou mais ainda o desejo do artista em ver, em realizar uma série de ampliações fotográficas na suposição de que um saber oculto poderia ser desvelado. Nota-se também que a revelação de um possível assassinato é uma boa imagem para evocar o horror relativo ao desejo recalcado, que tem a mesma natureza de existir sem poder ser visto num primeiro plano. É um desejo que esta por entre os galhos e folhas do inconsciente. É admissível assim que o campo do inconsciente seja um jardim de Alice para alguns, ou mesmo um pântano úmido com folhagens secas.

Até o ano que vem,
Renato Oliveira

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