14.11.16

kieslowski e a trilogia do bege

Krzysztof Kieslowski: um homem de poucas vogais, como é notório, contudo o que para alguns talvez não seja tão evidente assim é que ele foi um realizador cinematográfico que deixou um dos maiores legados para a humanidade. Para empregar um termo da psicanálise – e tornar esse escrito mais particularizado – seus filmes são obras fundantes. A respeito da “Trilogia do Bege” você não leu errado, dado que o senhor K. é atualmente conhecido por seus trabalhos finais intitulados “A trilogia das cores”. Ora, é certo que tais filmes derradeiros têm seu mérito, porém o cinema do polaco não se restringe aos mesmos. Desde o final dos anos 60, ainda enquanto estudante de cinema, ele já mostrava uma sensibilidade ímpar ao retratar a condição humana. Numa aproximação com a psicanálise, vale destacar seu objeto de filmagem numa declaração estilo Kieslowski por ele mesmo: 

“o campo das superstições, adivinhações, pressentimentos, intuição, sonhos, 
todos compõem a vida interior de um ser humano, e essa é a condição
mais difícil de se filmar. Tenho tentado chegar lá desde o início”. 


Nota-se que sua intenção era produzir um cinema autoral pautado numa abordagem sobre o humano e suas relações. É comum à Freud e Kieslowski a concepção de que há sujeito, um ser que pode existir mesmo quando reduzido pelas mãos do outro à mera força de trabalho. É por isso que na trilogia “do bege” que aqui será abordada – composta por três filmes dele do período de filmagem na Polônia – se destacará, acima de tudo, sua visão de homem. Há um elo de análise interessante entre os filmes “Pessoal” (1976), “Cinemaníaco” (1979) e “Calma” (1980). Em cada obra, destaca-se o lugar do indivíduo no ambiente corporativo e nas relações de trabalho. 


Em  “Pessoal” tem-se um jovem protagonista que, impossibilitado em dar continuidade aos estudos, obtém um emprego num ateliê de confecção. Ele testemunha a diferença hierárquica entre a equipe de produção e os atores/gerência, ao mesmo tempo em que se fascina pelo teatro. As oficinas de costura e cenografia enquanto "lugares do fazer" são mostradas como destituídas de sua importância pela gerência. “Cinemaníaco”, por outro lado, apresenta uma suposta ascensão do artista, que ao comprar uma câmera modelo “super 8” para realizar filmagens da filha, é convidado pelo administrador da empresa para filmar situações de interesse corporativo. Aos poucos, o protagonista abdica de seus interesses pessoais para atender a demanda ofertada. O roteiro do filme desvela a diminuição do sujeito em razão dos interesses de um grupo, ou seja, a “perda do eu” resultante da entrega de si próprio enquanto total mão de obra utilizável. Já a narrativa de “Calma” aborda um homem recolocado profissionalmente após três anos em uma prisão. Ele busca reconstruir sua vida e inicialmente não identifica a cisão corporativa entre o trabalho prescrito e o executado. As relações de trabalho são mostradas enquanto produtoras de uma identidade pessoal, de maneira que cabe a pergunta: como o sujeito continuará a existir se reduzido apenas a uma força de trabalho? Vale a alusão ao mal-estar civilizatório conhecido a todo aquele que já andou com Freud. A tese do autor de que a vivência social implica numa renúncia às pulsões pode aqui ser pensada não só numa alienação do trabalhador, mas principalmente em sua ausência de voz. Um fator complementa o outro: alienado por não poder falar – não haver sujeito porque o ambiente esta formatado para que os envolvidos renunciem seus impulsos, em especial, quaisquer críticas e agressividade. 

Kieslowski anuncia a existência da falta ao mostrar processos esvaziantes de sujeito, mas sua abordagem não é pessimista. Assim como Freud postula mecanismos de defesa pessoal, o polaco filma a defesa enquanto reação do indivíduo e de um grupo. Em “Pessoal”, o principal personagem reúne-se a um grupo de discussão acerca dos problemas locais; “Cinemaníaco” expõe a recusa e reflexão do próprio protagonista frente à atividade que de amadora tornou-se profissional. Ele se põe a pensar quanto a importância de sua família e ao significado das filmagens caseiras quando atender aos interesses da empresa tornou-se sua prioridade máxima. Em “Calma” se testemunha um grupo de oposição quando os funcionários, cientes da posição que lhes era atribuída, denunciam a injustiça local. A dificuldade de um funcionário para fazer-se sujeito e ter sua opinião ouvida torna-se menor quando ele se insere em um grupo reunido por objetivos comuns. A redução do sujeito à força de trabalho conforme os interesses de uma gerência foram tema de reflexão e análise de Kieslowski, que em sua abordagem revela um mais além ao mostrar um movimento contestatório. Há uma essência propriamente humana que em seus filmes é mostrada a partir da atitude do sujeito em questionar sua posição quanto ao desejo no outro. Logo, esse sujeito-freudo-reagente permanece, ele encontra forças e significado para existir além do prescrito e da monotonia do bege.

Renato Oliveira

Nenhum comentário: