1.3.10

Decifrá-la, pois não.

Tempos que não dou "o ar das graças por aqui". Muito tempo, realmente.
Nos próximos meses as atualizações serão menos frequentes, queridos. Mas os meus objetivos continuarão os mesmos: transmitir um saber novo, arrojado, usar de criatividade para abordar o desconhecido daquilo que conhecemos como 'existência humana' a partir de obras que em algum momento foram marcantes.

Tédio e normalidade são duas idéias bastante próximas. A relação do sujeito com a normalidade é algo bastante discutido na Psicanálise. Normalidade como sinônimo de comum, previsível, habitual. Aquilo que foge do esperado pode ser alvo de repulsa por muitos, mas igualmente provocar percepções novas e prazerosas.
Assim, o anormal é tido como nocivo por fugir à regra. Talvez alguns se questionem porque falei tudo isso (haha), estas idéias são úteis para que pensemos na sexualidade humana e o quanto a própria cultura e o momento histórico no qual o sujeito se situa mobilizam as suas investidas e lhe ensinam a desejar.

Como abordar a sexualidade feminina nos dias de hoje? É comum ouvir relatos sobre a relação da mulher com o objeto de seu desejo, mas como lidar (conceber) a imago feminina como aquela que ama, anseia, deseja, busca satisfação, um ser que visa ao gozo e simultanemente é capaz de fazer o outro gozar?


Aqueles que viram Belle dejour | A Bela da Tarde - 1967 | certamente se questionaram sobre alguns destes pontos que mencionei acima. O diretor Luis Buñuel nos incita a discutir a sexualidade feminina que durante décadas foi vinculada somente à procriação e a mulher tida como um objeto faltante e manipulável. Assim, imóvel quanto a uma atitude frente à seu desejo.

Interpretada por Catherine Deneuve, Séverine é uma mulher jovem, linda e comprometida. Ela trás um mistério em si. Bom, isso não é novidade pois o próprio Freud não conseguiu responder a seguinte questão: “o que deseja uma mulher?”

Logo no início do filme se apresentam alguns discursos sobre a censura que as pessoas atribuíam à atividade exercida por algumas mulheres que, voluntariamente trabalhavam em bordéis. Havia uma represália social no acesso a estes locais. As pessoas não negavam sua existência, mas relutavam em aceitar o quão (possivelmente) satisfatório seria explorá-lo.

Screens editados por Renato Hemesath

Descontente com a normalidade de seus dias, Séverine obtém o endereço do local e vai a seu encontro. Para Madame Anais | Geniviève Page | surgia-lhe a mulher ideal para ocupar um novo lugar. Desprovida de qualquer experiência, Séverine possuía o encanto, o mistério, a magia capaz de fundir fantasia e realidade. Tais elementos favoreceriam a busca pelo novo. Poucos diálogos foram o suficiente para torná-la a "Bela da Tarde", a qual trabalharia naquele local até as 17h, diariamente. Após este horário, retornaria para suas demais atividades, para sua outra vida.

Os fatos seguiram esta rotina? Na realidade, não havia rotina, mas a constante relação com o inesperado.


A "Bela da Tarde" sabia de sua atuação, mas não sabia de fato, do que desejava e o que potencializava o seu desejo. A monotonia era constantemente rompida pela chegada de um cliente desconhecido, pelo desejo subjacente a este e pela excitabilidade em talvez ser descoberta por algum ser familiar.

Relacionar-se com estes homens não apenas permitiu à Séverine satisfazer novos anseios sexuais, mas principalmente descobrir quem era este seu outro eu. Enquanto mulher, ela burlou as normas sociais, políticas, éticas e matrimoniais. Anormalidade, loucura? Séverine não compreendia a loucura de seu próprio desejo e seus riscos, mas reconhecia a necessidade em fazer demanda, em desejar.


Em alguns textos sobre a sexualidade infantil, Freud reconheceu que questões acerca da sexualidade da menina ainda eram desconhecidas à experiência clínica. Nos dias de hoje, alguns tabus permanecem.
Ao analisar a castração feminina a partir da diferença anatômica dos sexos, é desaconselhável olhar a figura feminina como desfavorecida ou privada. Embora esta conotação exista, ao mesmo tempo em que há esta falta, é o encontro com o outro e a certeza de ser desejada por este que valida uma falta também existente no outro. Nas relações que a mulher desenvolver, será possível testificar a 'falta no outro', colocando-se ela mesma como objeto capaz de suprir.


Estes ti ti tis acima foram expressos nas fantasias de Séverine. Sutilmente, Buñuel apresenta uma realidade fantasiosa aquém daqueles fatos concretos. Estas interrupções são valiosas pois retratam a posição feminina frente a seu objeto de desejo. Imaginativamente, é como se ela se visse à mercê dos intentos de um homem responsável e bruto o suficiente para reconhecer nela a fonte de sua atração. Estes momentos são ilógicos entre si, mas têm uma característica em comum: a colocam em uma posição de assujeitamento. Estas fantasias são a própria realidade do seu desejo, a qual não encontrava subsídios na sociedade e no mundo em que estava inserida, advindo o descontentamento. Portanto, o problema não estava em seu esposo ou algum outro sujeito especificamente. Séverine não era imoral, ela arriscou-se na descoberta de um novo significado, e tamanha ousadia poderia auxiliá-la a reconstruir um novo laço conjugal. A finalidade não é justificar ou mostrar repulsa/ aceitação à certas ações mas sim distanciar-se um pouco de certos julgamentos morais para apreender o sujeito enquanto ser faltoso, que demanda e que pode vir-a-ser muito menos previsível do que imaginemos. É exatamente esta imprevisibilidade que trás excitação às relações humanas, colorindo-a de uma forma diferenciada.

Esta resenha foi uma sugestão da minha querida Márcia Freddy, que temporariamente encontra-se aqui.

Super abraços,

Renato Oliveira

44 comentários:

Vanessa Souza disse...

Buñuel acredita ser o cinema “o melhor instrumento para exprimir o mundo dos sonhos, das emoções, do instinto”. (XAVIER, 1983.)

Este filme é bom demais!

Renato Oliveira disse...

Gentem, que super sono! (rs)
Mas amanhã com mais calma, carinho e dedicação responderei aos comentários do post anterior, assim como pretendo resolver outras coisinhas por aqui.

Cuidem-se, passar bem.

Beijos!

A Torre Mágica | Pedro Antônio de Oliveira disse...

Meu amigo Renato:

Fico muito feliz com sua observação e posso te garantir que eu também sou fascinado por sua área, a psicologia. Pena que a gente não consegue estudar tudo o que tem vontade.

Obrigado pela presença sempre tão simpática.

Parabéns pelo conteúdo do blog. Excelente! Adoro filmes.

Um abração.

Pedro Antônio

O+* disse...

“o que deseja uma mulher?”

*Mulher Asterisco responde*
- Querer!

Anônimo disse...

Olá Renato!!
Ótimo o texto! Como sempre! Gostei muito do final: "A finalidade não é justificar ou mostrar repulsa/ aceitação à certas ações mas sim distanciar-se um pouco de certos julgamentos morais para apreender o sujeito enquanto ser faltoso, que demanda e que pode vir-a-ser muito menos previsível do que imaginemos. É exatamente esta imprevisibilidade que trás excitação às relações humanas, colorindo-a de uma forma diferenciada."
Abraço!
A propósito, quanto a sua pergunta a respeito das fotos, são editadas minimamente, tento preservar o natural, tanto que na maioria delas não uso recurso de iluminação, a luz é sempre natural, a que se tem no dia...
Abraço!

... disse...

Mulheres... hehehe! Valeu pelo comment, man! Vc andava sumido, né? Hugz!

Anônimo disse...

Não sei se alguém sabe verdadeiramente o que quer a Mulher...são tantas as mulheres que existem em uma só...nem Lacan, nem Freud,nem Jung...
Sá a Bela Tarde....
beijos
Leva

Rafael Pinheiro disse...

que bom vc falar da mulher, e quão propício quando eu venho lutando contra os mesmo assujeitamentos do Desejo por esses dias.
fico muito feliz com sua volta. Vc sabe que ás vezes, menos é mais. Mas, bom seria tê-lo aqui mais vezes. bom texto. bjs.

Dil Santos disse...

Oi Renato, tudo bem?
Menino, como sempre ótima visão.
A mulher quer, deseja tanta coisa, mas nós homens tbm ñ ficamos atrás, eu ao menos ñ fico, haahahhaha
Ai menino, q bom q gostou de tudo, do poema, da cara nova do blog, rsrs
Se cuide heim?
Abraços
:)

Heliomar Melo disse...

Tudo que e diferente e anormal incomoda muito os chamados... dos conceitos normais.
bye the way, estou seguindo seu blog!
Estou adorando!!!
Abracos!!!

Marcos jim disse...

O anormal é muito complexo, eu concorodo com tudo que vc disse. Engraçado que meu amigo passou por uma situação dessa, e fiquei pensando porque que tudo que é diferente causa inquietação? pena que a resposta eu ja tive ele foi agradido. Uma pena

Anônimo disse...

Tenho que parabeniza-lo por essa belissima resenha!

Era justamente a visão que eu tanto aguardava.

Esse filme me suscita muitas coisas e agora eu entendo perfeitamente o porque.

Muito obrigada por atender o meu pedido!

Beijos!!

Ana Ponick disse...

ain super quero ver o filme depois deste post. parece ser mara. adoooorei.

;*

Flavih A. disse...

Adorei a resenha.
Vc escreve muitooo bem.

=D

Anônimo disse...

Oi Renato,

Que bom que voltou. As suas críticas são bastante pertinentes. Você sintetiza muito bem o enredo, a trama.

Beijos,
Ana Lúcia.

Érica Ferro disse...

"É exatamente esta imprevisibilidade que trás excitação às relações humanas, colorindo-a de uma forma diferenciada."

Concordo!
Suas resenhas são fantásticas.
Parabéns.

Um abraço.

B. disse...

Mulheres são enigmáticaas :D

Sônia Silvino (CRAZY ABOUT BLOGS) disse...

Renato, meu querido!
Eu estava com saudades do teu espaço com posts sempre tão brilhantes e interessantes. Há muito tempo assisti a esse filme. Muito bom.
Bjkas, meu amigo!

susana disse...

Vi este filme, não faz muito tempo!Passou num dos tv cines da tv cabo!Logo de início chamou-me a atenção e impediu-me de mudar de canal!
Concordo com tudo o que disseste! Mulher precisa de muita mais fantasia que o homem, para ter prazer sexual! Necessita de se sentir desejada, como se fosse sempre a primeira vez!O desejo morre com o tempo, por mais que amemos alguém!A sociedade condena,as práticas extra sexuais, mas elas são uma forma de fuga à rotina e ao vazio!
beijinhos

Bernardo Caldeira disse...

Olá, Renato!
Valeu pela força!
Estamos na área!
Abraço

Naty Araújo disse...

Vc sumiu mesmo.
Tenho sentido falta dos seus posts e dos comentários.
Apareça sempre...
Comente sobre os filmes em seu blog também.
Faz falta.

Bjão.

Anônimo disse...

Verdade, o desejo da mulher é pouco abordado de forma bacana nos filmes de hoje em dia e eu realmente não sabia que em filmes antigos abordavam isso com um ar estonteante.

parabéns! grata pela sua postagem ..
bjs

Danielle Crepaldi Carvalho disse...

Renato, primeiro queria te agradecer por visitar meu blog. O seu é sensacional.Que resenha incrível esta sobre a Bela do Dia, filme que vi quando era muito novinha, do qual pouco me lembro. Entendo um pouco mais que nada de Freud, mas me interesso muito pela leitura freudiana da obra cinematográfica. Com certeza serei sua seguidora!

Abraços
Dani

Clenio disse...

Oi, vim aqui só pra dizer que meu blog elegeu o teu como VIP... Não sei direito como funciona, mas tinha que indicar alguns blogs interessantes... vc tem que passar lá no blog pra pegar o selo, e participar do concurso... pelo menos foi isso que me instruiu a amiga que indicou o meu hehe.

Grande abraço, Clênio

Carolina disse...

Sexualidade em si, independente de feminina, masculina ou mescladas são assuntos para um jantar de, no mínimo, seis talheres.rs

Sinto cada vez mais, que sempre esteve latente "questões humanísticas e psiques" a respeito e, mas simplesmente elas se traduzima de outras formas para a sociedade. Sabe quando você pega um livro e fica complicado traduzir? è mais ou menos por aí...

Ótimo post, pra variar, né? rsrsrs
Ah nem vem que não quero saber de você sumir, peloamordedeus!

bjos meus

Pena disse...

Admirável Amigo Genial:
Um Post que faz pensar e reflectir sobre homens e mulheres e a sua relação entre eles e elas.
Poderoso. Cativante numa escrita cristalina e bela.
"...Interpretada por Catherine Deneuve, Séverine é uma mulher jovem, linda e comprometida. Ela trás um mistério em si. Bom, isso não é novidade pois o próprio Freud não conseguiu responder a seguinte questão: “o que deseja uma mulher?”..."

Para mim, exigem compreensão, desejo satisfeito e muito amor/segurança na sua fragilidade doce.
Parabéns. Adorei.
Abraço amigo de respeito, estima e constante admiração.
Sempre a lê-lo com atenção.

pena

Tati disse...

Parabéns pelo post moço!Ficou fantástico!
Olha,realmente é dificil saber o que uma mulher deseja mesmo,até eu mesma as vezes não sei rsrsrs.É confuso,mas isso é natural,em qualquer periodo da vida,é não só as mulheres,mas a qualquer ser humano.
Obrigada por nos presentear com seus textos mais uma vez.

Abraços!Até breve !

Renata de Aragão Lopes disse...

Excelente resenha!
Deu-me vontade
de rever o filme!

Um abraço,
doce de lira

Erica Vittorazzi disse...

Se não fôssemos faltantes, o que seríamos>

Psicóticos!!!

Lacan, o nosso querido, falou- 'amar é dar aquilo que não se tem à aquele que não se é'.

O amor começa na falta. Procurar no outro aquilo que não tenho e que supostamente acredito que o outro possui. O FALO CIRCULANTE...

Amo aqui.

Anônimo disse...

Oi Renato,

Por onde anda...?! Está tudo bem...?!

Beijos,
Ana Lúcia.

Carolina disse...

Você já viu o filme A Caldeira do Diabo? Ele é bárbaro!

bjos meus
Saudades daqui!

Renato Oliveira disse...

Meus queridos, como assim o site está fechado para balanço?
Hahaha, em termos sim!

Provas, livros, mil coisas na mente, idéias, vários intentos e pouquíssimo tempo!

Maaaaaas. . .

Em breve, um novo 'Cine Freud' - algumas reformulações já se iniciaram e não vejo a hora de retornar!

E aí, dicas e ti ti tis? fale mesmo que eu super te escuto!
cinefreud@rocketmail.com

Aguardo-lhes e até breve!

Renato Hemesath

Natália disse...

Ai, fiquei realmente muito curiosa pra ver o filme, tentarei alugar nesse fim de semana, bjos.

Anônimo disse...

Renato,

Dessa vez, eu estou passando por aqui, tão somente para lhe dizer que eu ficaria muito feliz se você fosse comer uma fatia de bolo, comigo, em meu blog...

Estou lhe aguardando.

Beijos,
Ana Lúcia.

Vinícius Alexandre Fortes de Barros disse...

Sinceramente, acho que esse aqui não bate os 50 posts de Elephant. hehehe

Anônimo disse...

Oi Renato,

Está muito sumido!! Volte logo!!

Beijos,

Anônimo disse...

Oi Renato...!!

Fico feliz por saber que em breve estará voltando e com novidades...

Obrigada por lembrar do níver de meu blog...

Beijos, lhe aguardando,
Ana Lúcia.

Anônimo disse...

Oi Renato,

Que o pão e o vinho sejam os alimentos de nossas almas, nesta Semana Santa, em memória de Cristo que morreu para nos salvar...

Façamos, pois, jus a esse Sacrifício...

FELIZ PÁSCOA...!!

Beijos,

Carolina disse...

Festim diabólico? Òtimo!!!

bjão.

Tte espero em abril, tá?

Bom coelho!!!

Juci Barros disse...

Muito boa resenha, como mulher e ainda por cima pretensa filósofa fiquei tentada a tentar discordar de alguma coisa mas realmente não consegui rs. Parabéns e até breve.

Anônimo disse...

Oi Renato,

Faz tempo...!! Espero que tudo esteja dando certo para você...

Quando puder, me visite...

Beijos,

Nathália Azevedo disse...

Volteeeeeeeee!

Cenira de Mello disse...

Renato!

Que delícia caminhar por essas estradas condensadas de preciosidades.
Andando daqui e dali e li muitas coisas ricas.
Comentar o que escreve? Comentar o que?
Tu cria, produz, sedus e dá de presente para todos com a maior verdade SINGULAR.
Te amo viu!
Lindo tudo, tudo!
Abraço
Cenira

comprar curtidas disse...

Adorei o post, parabéns!!