17.12.10

Tristeza não define

O Cine Freud de hoje se apresenta em uma versão macabra e sinistra. Caveiras, pânico e sangue não são bem vindos. Trata-se de outro tipo de horror, que por sua vez, apóia-se no surrealismo de Buñuel. Um horror chamado desejo, mas, reconheço também que há todo um toque sinistro e relativamente treze em Tristana | Tristana – 1970 |. O tema da morte é apresentado para dar início a uma mudança na vida da jovem Tristana | Catherine Deneuve | que com o falecimento de sua mãe foi morar com o tio Dom Lope | Fernando Rey |. Não era apenas um tio, tratava-se de um tutor e como podemos maléficamente supor, favores sexuais e afetivos fariam parte do pagamento (contrato) por esta ação tão boa e justa de acolher a pobre moça.


Ao ser recebida por Dom Lope, lhe é dito: “me veja como pai”. As falas de Dom Lope apresentam suas noções sobre o feminino, para ele em questões de amor e mulher, não há pecado algum e uma mulher honrada possui uma perna quebrada e encontra-se em casa. Conjuntamente com estas idéias, ele buscava tratar Tristana como uma mulher de valor. Cordialidade e cavaleirismo também se faziam presentes, uma vez que lhe fosse possível encontrar-se sob controle de toda esta situação. O controle a que me refiro diz respeito a capacidade em exercer domínio sobre a mulher muda, aquela que não é capaz de avançar em relação a seu desejo, mas o submete à economia do desejo do outro. Num primeiro momento, parece-nos que é dessa Tristana que Buñuel se refere: uma trist(e)Ana, pois ela encontrava-se há semanas sem sair de casa e sua vida resumia-se as tarefas domésticas. Segundo a empregada Saturna | Lola Gaos | ela ía à missa mais para respirar ar fresco do que por devoção.


Contudo, no decorrer do roteiro há um giro em todo o discurso e um novo modo de posição frente ao desejo. Esqueçam a trist(e)Ana. Vejam, ainda neste primeiro momento, ao ser beijada por Dom Lope, ela simplesmente ri. Embora ela cedesse aos desejos de seu tutor, Tristana não se limitou a se silenciar, submetendo-se ao desejo e lei deste outro. Num passeio com Saturna, ela encontrou uma galeria e um artista que evocaria novos tons a sua rotina. Foi este encontro com Horácio | Franco Nero | que alteraria a condução daqueles dias. Ele se propôs a pintar um retrato dela, dando abertura a um laço entre ambos que foi seguido de constantes saídas e encontros. 


Tristana passou a posicionar-se de outro modo, mas ainda assim reconhecia a existência de uma lei sobre ela, pois dizia: “já não o suporto”, “oxalá me quisesse menos” e “se o velho soubesse... o que iria aprontar?”. Mas estes temores não a impediam de dar novos passos que a orientavam em direção a seu desejo. O desejo que me refiro refere-se a uma falta, evidentemente, mas também à uma fala que queria ser expressa e que, naquele momento, ainda não aparecia. Tristana tinha algo a dizer e elaborou um roteiro para isso: arrumou suas malas e viajou com Horácio para outra cidade. Passaram-se dois anos, ambos retornaram. Neste retorno, o enigma e a direção do desejo de Tristana em relação a Dom Lope seriam revelados.


Referimos-nos aqui ao desejo da histérica, no qual, há pouca organização. Para compreendê-lo, não basta juntar as partes que o compõe, mas é preciso se atentar a fala e o modo como a própria linguagem revela o que está oculto. Primeiro, a linguagem do sonho de Tristana que em seu conteúdo manifesto apresentava um sino que balançava, mas este era composto pela cabeça de Dom Lope. O sonho ocorre em dois momentos: no início (versão Triste-ana) e no final. Logo, o conteúdo do sonho parece claro, Tristana desejava ver Dom Lope morto, uma vez que ele era hostil e lhe provocava asco. Não vamos nos contentar com isto. A histérica possui por sua estrutura segundo Lacan, uma grande demanda de amor e que em Tristana pode ser analisada pelos momentos em que ela apontava Dom Lope como um homem hostil, nas situações de revolta. Ela dizia: “que vida de escrava que eu levo!” e “eu o odeio, mas o trato como um pai, com carinho”. Esta contradição é admissível quanto se trata de um desejo inconsciente que determina o sujeito. O que não está explícito no filme é o que entendemos como o seu enigma: TRISTANA GOZAVA COM ESTA SITUAÇÃO. Para ela, o inadmissível era reconhecer que aquele velho sem atrativos que exercia poder sobre ela lhe era desejante. 


Tristana buscava de vários modos possíveis anular esta sentença. Ela até reconheceu em um momento que poderia amá-lo caso ele a tratasse como filha. Vejam o deslocamento: como filha até tudo bem, seria admissível, afinal uma filha não deseja sexualmente o seu pai. Este lugar de pai e esta representação eram necessários para anular o verdadeiro desejo de entregar-se a ele. O sonho no qual Dom Lope aparecia com a cabeça enquanto um sino revelava o desejo desta mulher em vê-lo morto, por que o odiava? Não, mas porque o amava e somente morto é que ela não seria invadida por esse desejo e não precisaria reconhecê-lo. Vocês perceberam que não é preciso caveiras e facas para tratar-se de algo sinistro. Afinal, para a histérica não há nada que lhe provoque um horror maior que o seu próprio desejo. 

Abraços fraternais,

Renato Oliveira

30 comentários:

renatocinema disse...

Texto perfeito. Parabéns. Fiquei com desejo de assistir. Sou fã de certas loucuras cinematográficas: "Cão Andaluz" é o maior símbolo, na minha visão dessas viagens da sétima arte.

"Perdoa-me Por Me Traíres" de Nelson Rodrigues, no meu conceito bebe na mesma fonte de profundidade.

Abraços.

.Luks disse...

Muito bom seu texto, parabéns!

Realmente deu vontade de assistir ao filme.

Abraço forte!

ANTONIO NAHUD disse...

Pulsa o cinema
por estar vivo!
Pulsa!
Cheio de emoção!
Gostei do blog. Vou segui-lo.
Abração

www.ofalcaomaltes.blogspot.com

Sônia Silvino (CRAZY ABOUT BLOGS) disse...

Oi queriiiido!
Estamos vivendo uma época especial!
Trouxe uma oração de Natal,
pois desejo tudo de bom a você, nestas Festas e sempre!

ORAÇÃO NO NATAL


Jesus, que neste Natal, Seu olhar de luz penetre nossa alma, como a brisa morna da primavera, e acorde a esperança adormecida sob as folhas secas das ilusões, dos medos, da indiferença, do desespero...

Que Seu perfume, suave como a ternura, envolva todo o nosso ser, confortando-nos e despertando a alegria que jaz esquecida por trás das lamúrias e distrações do caminho...

Que o bálsamo do Seu amor acalme as nossas dores, silencie as nossas queixas, socorra a nossa falta de fé.

Que, neste Natal, o calor da Sua bondade se derrame sobre o nosso Espírito e derreta o gelo milenar do egoísmo que nos infelicita e faz infelizes nossos semelhantes...

Que Seu coração generoso afine as cordas da harpa viva que vibra em nossa intimidade, e possamos cantar e dançar, até que o preconceito fuja, envergonhado, e não mais faça morada em nós...

Que o Seu canto de paz seja ouvido por todos os povos, do Oriente e do Ocidente, e as guerras nunca mais sejam possíveis entre a raça humana...

Que, neste Natal, Suas mãos invisíveis e firmes sustentem as nossas, e nos arranquem dos precipícios dos vícios, da ira, dos ódios que tanto nos infelicitam...

Que a água cristalina da Sua misericórdia percorra nossa alma e remova o lodo do ciúme, da inveja, do desejo de vingança, e de tantos outros vermes que nos corroem e nos matam lentamente...

Que o bisturi do Seu afeto extirpe a mágoa que se aloja em nosso íntimo e nos turva as vistas, impedindo-nos de ver as flores ao longo do caminho...

Que, neste Natal, a pureza da Sua amizade faça com que possamos ver apenas as virtudes dos nossos amigos, e os abracemos sem receio, sem defesas, sem prevenções...

Que Seu canto de liberdade ecoe em nós, para que sejamos livres como as falenas que brincam na brisa morna, penetrada pela suavidade da luz solar...

Que o sopro da Sua fé nos impulsione na direção das estrelas que cintilam no firmamento, onde não mais se ouvem gemidos de dor, e onde a felicidade plena já é realidade.

Ensine-nos, Jesus, a amar, a fazer desabrochar em nossa alma esse sol interior que nos fará luz por inteiro...

Ajude-nos a desenvolver o gosto pelo conhecimento, para que possamos encontrar a verdade que nos libertará da ignorância pertinaz...

E, por fim, Jesus, que neste Natal cada ser humano possa sentir a Sua presença sábia e amiga, convidando a todos a uma vida mais feliz...

Tão feliz que Sua mensagem não mais seja um tímido eco repercutindo em almas vacilantes, mas que seja uma grande melodia que vibra o amor em todos os cantos da Terra...

Beijinhos!

Sônia Silvino's Blogs

Franck disse...

Alguns dos citados, ou quase todos, não assistir ainda, já estão na lista dos recomendados por vc... Afinal, uma tristeza tbém faz parte!
Abçs*

Gabriela Marques de Omena disse...

Nossa, adorei a sinopse desde filme. Quando puder, o verei.
Obrigada por sua visita em meu cantinho e pelos belos elogios!
enorme beijo a ti
ótimo fim de semana

Zé alberto disse...

Olá,
Renato, fico muito contente por fazeres uma análise de um dos mais complexos filmes que me passaram à frente. Desejava muito uma análise tua deste filme, e ela chegou.
Aínda não a li, mas a vontade é imensa, logo que o fizer reportarei aqui as minhas impressões.

Grande abraço!

M. disse...

Renato,

Como sempre você arrasa! Essas análises são realmente maravilhosas e muito inteligentes.
Lá no meu blog tem um selinho para você!

Um grande abraço!

M.

Évelyn Smith disse...

Olá caríssimo Renato!

Como todas as outras resenhas que você faz, está também ficou excepcional!

Gostei bastante deste contexto, esse surrealismo provoca um certo mistério... No caso, através da moça, a Tristana. E até mesmo pelo trocadilho "Trist(e)Ana", eu não havia percebido isto antes de ler a sua resenha.

Gostei muito também do desfecho, esse movimento que ocorre na relação da moça com o seu pai, a anulação do desejo daquela. Como você sabe, eu não entendo sobre as teorias de Lacan ainda, mas estou começando a entender alguns pingados... Rsrs...

Querido, como eu faço para colocar a tag num link para o seu blog? Eu pensei que fosse só fazer as tags no meu blog. Agora fazer para o seu blog me pareceu um bucado difícil... Eu e a minha mentalidade de 42 anos... Rsrs...

Te respondi as outras coisas por e-mail, tá!

E continue assim, com o seu potencial imenso que impressiona a todos nós!

Tudo de bom pra você e até mais ver!

Beijo,
Évelyn

Erica Vittorazzi disse...

Renato, que análise!! Perfeito!!

Ah, Lacan querido. Obrigada por você ter existido.
Eu tenho um fascínio por estudar nomes e como eles nos influenciam em nossa personalidade (e quando falo isto, as pessoas me chamam de louca). Tristana: um nome que já carrega um destino!
Quando li o seu texto, pensei, que fácil para ela colocar a culpa em alguém pela sua infelicidade , e tudo por 'EM NOME DO PAI'!! É muito mais fácil, embora com consequencias, anular o desejo ou camuflá-lo. E quantas histéricas existem e outras histriônicas por aí. Mas, o inconsciente aparece de alguma forma, ele sempre aparece. Pena que nem todos sabemos psicanálise!

beijos

ps: Bom, só para você rir um pouco: minha irmã 364 dias mais velha do que eu se chama Daniela. Quando nasci, queriam me colocar o nome de Danila. E sempre falo aqui em casa que a nossa relação seria super diferente do que é hoje. Quem seria a Dani? Eu seria a outra Dani?
Os nossos nomes nos influenciam. Somos quedados ao sucesso ou fracasso por causa deles, ou aos fantasma. O que você acha?

Anônimo disse...

Olá! Não tem um post seu que eu não adore...você dá leveza as resenhas..você deixa a gente com vontade de assistir todos! Hehehe. Sobre este...é um filme forte..emoções..lutas mentais em querer fazer uma coisa..mas tb outra...Interessante... Abraços !!

albuquerque júnior disse...

[excelente.

...fato é que não são poucas as Tristanas por aí, não, embora anônimas.

e o link pra baixar esse filme hein?
quero dual audio e com duas legendas, inglês e português... rsrs

forte abraço!]

Anônimo disse...

Vou baixar esse filme, fiquei com desejo depois da sua analise UAHUHAUHUA

respondendo: a biografia é muito boa, eu gostei. Só achei que deveria um extra melhor ( com todos os trailers dos filmes dela) adoro trailers. :D
O meu filme preferido dela, dos que já vi, é Cinderela em Paris e Como roubar um milhão de dólares.
Muito obrigada pelos links (((:

Beijos, isa.

Gustavo Darwich disse...

Ótimo texto. Parabéns pelo blog!
Abraço.

Gustavo Darwich disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Evandro Oliveira disse...

Obrigado pela visita, me senti muito honrado, afinal seu blog é simplesmente incrível.
Em 2001 li um livro interessantíssimo chamado "Os filmes que vi com Freud", ele me fez repensar a forma de captar os sentidos da sétima arte. Foi um momento de ruptura na minha vida intelectual, acho que degustar seu blog também será.

Forte abraço, estou de adcionando nas redes sociais.

www.sabordaletra.blogspot.com

Carolina disse...

Interessante este filme,nunca vi,mas me deu "coceiras" para assistir.
Que dualidade de sentimentos,hein? Em se tratando de sentir nada é muito reto e simples. Concordas?

Um beijo meu amigo.
Saudades daqui...

Zé alberto disse...

Olá,
Renato, acabei de ler a tua análise deste filme cuja trama tanto me intrigou quando o vi ha cerca de 2 anos.
O que me deixou mais impressionado, depois de ler a tua análise, foi a reunião de duas facetas do DESEJO no indivíduo (Tristana): o desejo da libertação da submissão (OBJECTO passivo do desejo castrador do tio) e, por oposição, SUJEITO do desejo inconsciente pelo amor do tio., e disso é forte testemunha, a sequência em que ela vai à varanda e se despe, exibindo o seu corpo amputado para assim despertar o desejo do jovem que a olha, do jardim. É assim, amputada, passiva face ao desejo do homem, que a sua sexualidade se moldou.

Espero ter interpretado correctamente o teu ponto de vista, Renato.

Grande abraço e Feliz Natal!

Guilherme Navarro disse...

Caramba que blog é esse? Muito bom!

Anônimo disse...

com mais um texto completo tu despertas em mim, mais uma vez, uma vontade de assistir o filme.
:)

Anônimo disse...

Renato

Hoje não vou comentar muito sobre seu post macabro cheio de sangue e Tristanas....rs.rs....

Não ia deixar de vir aqui para te dar um Feliz 2011, tudo de bom e que esse seu blog continue firme com essa qualidade que todos nós goatamos.

Um abração

Luiz disse...

Renato, adorei seu blog e sua análise do Buñuel. Ele é um dos meus cineastas favoritos.Quanto ao blog, me pareceu o melhor sobre cinema que já visitei. Um abraço!!!

Anônimo disse...

Beneficial info and excellent design you got here! I want to thank you for sharing your ideas and putting the time into the stuff you publish! Great work!

Juci Barros disse...

Análise perfeita!
Beijos.

Anônimo disse...

Renato, vim até aqui agradecer sua visita e seu comentário e tive um grata surpresa! Quando eu pensava que 2010 já tinha oferecido tudo o que era possível de interessante, me deparo com um blog como o seu, pra lá de interessantíssimo, de um extremo bom gosto e inteligência. Tornei-me leitor assíduo!

Grande abraço!

M. disse...

Oi Renato!!!!

Desejo à você um maravilhoso e mais inspirado 2011. Beijos mil.

M.

Beatrix Kiddo disse...

Bette davis eyes no post em cima :)

Dil Santos disse...

Renato menino, como está?
Ai menino, feliz ano novo pra vc tbm, um mundo de coisas boas pra tu viu? rs
Abração menino

Anônimo disse...

Great site. A lot of useful information here. I’m sending it to some friends!

Anônimo disse...

Olá! Venho aqui registrar que citei esse seu post no meu humilde blog...adorooo seus posts...com certeza chegaria uma hora que eu ia citar...abraços e ótimo ano.

http://blogfernandarocha.blogspot.com/