Estou me preparando pra escrever sobre algo que ainda não sei como definir. Tragédia ou comédia? Eu suponho que se trate dos dois, mas há uma fala presente no filme que irei apresentar hoje que diz o seguinte: com uma mulher nunca se sabe. Vocês certamente observaram que com frequência tenho escrito sobre filmes que abordam a temática do feminino. Esta é uma questão bastante discutida na psicanálise, e pensando históricamente, envolve questões culturais, políticas e sociais. Há diretores que sabem muito bem disso e fizeram uso deste tema para realizar comédias e tragédias.
Em outra ocasião, discutíamos aqui sobre a questão deixada por Freud: “O que deseja uma mulher?” e vimos que o assunto é tão amplo. Hoje, será a partir de um trabalho de Jean-Luc Godard que lançaremos novamente luz sobre o tema. De início, o título do filme parece responder uma indagação sobre o que é o feminino: “Uma mulher é uma mulher” | Une femme est une femme – 1961 |. O roteiro nos conta exatamente sobre o desejo de uma mulher. Angela | Anna Karina | mostrava-se bastante curiosa pelo livro: “espero um filho” e foi neste momento que os assuntos relativos à gravidez lhe provocavam frisson. Era este o desejo que sua fala anunciava: ter um filho. Angela era stripper para alguns e dançarina para outros. Será válido refletirmos sobre um verso cantado por ela: “♪ os homens não protestam porque sou muito bela ♪”. Muito bela, realmente, mas ela foi contestada sim. Afinal, o desejo sempre passa e dirige-se em relação a um outro. O seu namorado Émile | Jean-Claude Brialy | não se dispôs a atender o pedido de lhe dar um filho. Game over? Claro que não. Nos referimos aqui ao lugar do feminino que se posiciona ativamente frente a seu desejo. A mulher que Godard nos presenta neste trabalho é aquela que por meio da linguagem articula e apresenta o lugar do seu desejo.
Angela decidiu averiguar sua fertilidade com precisão científica. Não havia erro, ela estava no momento fértil. Para nós, esta fertilidade que ela se refere trata-se muito mais de uma ordem psíquica do que biológica, pois diz respeito à uma compreensão interna que a fazia se ver enquanto uma mulher com um filho. Uma mãe? Não. Neste momento, não é da maternidade que me refiro, mas sim da função que um filho exerce na economia desejante de uma mulher. Em algumas situações, o filho pode ser representante do falo materno, tornando-se alvo dos investimentos libidinais da mulher mediante a sua identificação com ele. Sendo assim, com muito bom humor, o diretor brinca com este anseio de Angela, de modo que o tão sonhado filho aparece no discurso como um desejo que não passaria pelas questões biológicas, como se fosse possível comprá-lo. É válido ressaltar que o desejo de Angela não se restringia somente à gestação de um bebê, mas estava relacionado com a busca pela correspondência do masculino em relação ao feminino.
E foi assim que Angela decidiu posicionar-se de outro modo para obter o objeto de seu desejo. Já que Émile não se mostrou recíproco, ela recorreu a Alfred | Jean-Paulo Belmondo | afim de que este pudesse lhe atender. Deste modo, temos então um trio, que por meio das mais inusitadas falas, danças e com o uso de vários objetos contextualizados, criarão uma atmosfera para apresentar a insistência da mulher que anseia ser atendida. Émile e Alfred questionavam-se: “tragédia ou comédia? Com uma mulher nunca se sabe”. Ambos riam de Angela e esta se perguntava: “e eu... o que sou?”. Ela nos parece autêntica, bem humorada e incisiva. Era aquela que sabia consertar canos e quando Émile lhe disse “esta saia não lhe cai bem”, ela logo respondeu: “melhor, não quero agradar ninguém”. Pois então, estes traços a definem? Eu suponho que não.
Quando Angela se pergunta “afinal, quem eu sou?” não são de suas características ou do seu estar no mundo que ela anseia saber. Me parece que se trata de uma questão mais complexa: “quem eu sou enquanto mulher... o que é uma mulher?”. O ser uma mulher a que me refiro diz respeito a estrutura e o modo como esta pode ser representada. No entanto, o que representa uma mulher? No inconsciente não há um significante que dê conta de representar o sexo feminino. Se pensarmos a partir da sexualidade infantil, veremos que a menina na descoberta de sua genitália não obtém uma idéia representativa do que lhe define, por que de fato não há. Ela se depara com o vazio que deverá ser simbolizado de algum modo, sendo que este processo ocorre por meio da constatação de que há um sexo diferente do seu. Logo, no inconsciente há um único sexo cuja representação é o pênis ereto. Deste modo, em relação ao masculino, a dinâmica do desejo da mulher é outra. Observem que, de modo geral, uma mulher não admite ser identificada com outra mulher. Em festas isto se evidencia, pois ainda que com pequenas variações, os homens se assemelham e encontram-se uniformizados em suas roupas, as mulheres, não.
A ausência de um significante que represente a mulher faz com que esta busque algum modo de ser representada afim de dar conta da angústia do vazio. Há uma busca pela representação e pela singularidade. Freud apresenta que um filho é capaz de exercer esta função, de modo que a mulher passa a ser representada enquanto mãe. Lacan afirma que “à mulher não falta nada”, pois esta é unicamente um ser diferente do homem, talvez esta formulação esteja de acordo com o próprio Godard que nos apresenta uma mulher que é uma mulher. Pois bem, ainda que a questão não se solucione, os tricôs encerram-se hoje por aqui com uma frase da Angela que diz em relação ao masculino: “quando estamos juntos, não estamos e vice-versa”.
Super abraços, queridos.
Renato Oliveira
20 comentários:
Adorei o texto :)
E Anna Karina é demais.
Ela é linda, e o tema abordado é sempre questionado por mim. Creio que toda mulher um dia chega a se perguntar o que vem a ser uma mulher de fato. Por que nós é quem damos a luz? E por que somos tão mais apaixonadas que vocês.
A verdade, é que ainda não encontrei respostas, talvez porque uma mulher seja uma mulher e pronto.
O que achei de mais interessante neste filme, é o fato do diretor ser exatamente um homem, e abordar um assunto tão complexo, como a mulher. Nós mesmas não sabemos quem somos, imagine um homem nos abordando assim.
Olá, Renato,
Realmente discutir sobre este encontro dos casais é fascinante e, ainda mais, se embasado por esta óptica lacaniana do desejo: ora, porque falo tanto sobre os encontros amorosos, do feminino com o masculino se, como Lacan já dizia, "não existe relação sexual", não existe este encontro?
Mas é ai que fica interessante, pois podemos nos aprofundar nesse interim, no que fica "no meio".
Ótimo post... gostei.
Abs.
Oie! Uma temática interessante nesse post hoje. Toda mulher sempre busca uma identificação acredito eu. A mulher para se sentir completa precisa estar plenamente realizada com sua vida...se ela desconfiar que algo falta...aí recomeça a busca pelo o que ela nem sabe o que é. As vezes é um filho, as vezes o que ele representa...as vezes nenhuma das alternativas.
Abraçosssss!!!
Essa questão do ser mulher é assunto para lá de mil páginas hehehehehehe... Eu acho! Ô serzinho complicado! Mas referindo-me ao seu texto aqui vai meus parabéns mais uma vez!!!!! Adoro vir aqui. Um abraço grande.
Olá Renato.
Adorei o tema, fiquei super curiosa.
BeijooO*
Como sempre você nos brinda com um post que demonstra sua escrita que tem propriedade. gosto de te ler por isso, pois sinto propriedade em sua escrita. Valeu! Um abraço!
Muito legal, Renato!!!! Luciana Piva
Eu adoro suas dicas de filme, são tão vintage.
Olá, caríssimo e querido Renato!
Amei esta sua análise. Excepcionais como todas as outras.
Ficou muito bem elaborada! Um estudo prático e sucinto sobre o universo feminino, de acordo com a vertente Psicanalítica.
As mulheres se diferenciam uma das outras, isso é notável. Tem a ver com a descoberta antiga ainda da sexualidade, na infância. E de fato, é compreensível que a mulher tem um filho para manter o seu desejo com o homem. Desejos libidinais... Interessante, nunca parei para pensar sobre isso.
Obrigada por comentar sempre em meu blog!
Beijo e até mais ver! E tudo de bom pra você! =)
Évelyn
Tematica pra lá de interessante...discutir a alma e o universo da mulher é sempre novo, é sempre surpresa, sempre há algo mais a falar...(somos seres surpreendentes!!kkk)
bjossssssssss
Oi Renato,
sempre interessante a sua análise, repleta de pontos de reflexão novos.
um abraço!
Renato, que texto perfeito. Tragédia ou Comédia? Com uma mulher, nunca se sabe... :)
Por um lado, é bom, não ter significante para nos marcar. Não sermos rotuladas, mas por outro lado, isto pode nos fazer histéricas... não temos limites para agradar o nosso desejo. (Existe coisa mais histérica que gravidez psicológica?)
Beijos
Pois é...
quem é que conhecerá as mulheres
em sua profundidade?
acredito que este filme é muito bom
e já estou com vontade de vê-lo.
Muito bom seu blog amigo
e obrigado pelo carinho exibido no meu.
Dan
Acho que ser mulher, deve ser bem mais complexo que ser homem, claro. Mas acho que antigamente, essa dúvida era mais "avassaladora" pelo fato da mulher empenhar um papel pequeno na sociedade. Mulher era aquela que cozinhava, cuidava da casa e propriamente servia para pocriar. Hoje em dia, não. Mulher já tem um espaço maior na sociedade e um papel mais atuante. Saiu daquele padrão.
O que é ser mulher? Creio que quase a mesma coisa que ser homem. No fim, é tudo ser humano mesmo, rs
Abraços :)
Renato, ótimo post! Não gosto de Godard, mas amo Anna Karina e dois filmes dele/dela: VIVER A VIDA e UMA MULHER É UMA MULHER.
Abração
www.ofalcaomaltes.blogspot.com
Nossa, adorei o jeito como tu escreve, tudo intrinsecamente ligado e com os pensamentos todos em ordem. Obrigada pelo recado, realmente cisne negro está sendo superestimado.
E sobre teu post, muito bom, fiquei curiosa sobre o filme, e pretendo vê-lo inclusive, depois dessa loucura de projeto :D
Fiquei intrigada para saber aonde tu me achou haha! Ótimo blog. Se quiser uma parceria estamos aí =]
Apesar do meu blog ser pobre, ele é limpinho hahaha!
Bons filmes o/
Creio que é um assunto que não se esgota...
Beijos.
Lacan e Godard estão perfeitos no seu discurso e do de Angela ! òtimo
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