25.11.11

Incompleto charme burguês

O Cine Freud de hoje virá fantasiado de mesa de jantar a fim de testar a sua paciência. Devo adiantar-lhe que a ingestão de cafeína talvez seja indicada para que alguns permaneçam acordados e não confundam sonho com a realidade de vigília. Neste festerê parece que tudo poderá ser válido para que o propósito final seja atingido. Haverão os legítimos convidados, aqueles que aparecerão de surpresa, e cidadãos que, de fato, não combinarão com a proposta do evento. As regras e imposições já estão previamente ditadas e foram estabelecidas com muito rigor por aqueles que acreditam ser altamente dignos de mérito. Há todo um charme que envolve as simpáticas convenções de um grupo de amigos, nas quais, terroristas e homens do povo não são bem vindos. À quem destina-se, então? O cinema de Luis Buñuel nos trás muitíssimas indagações, não seremos indiferentes à tais. Para a presente ocasião acompanharemos um jantar e poderemos ser contagiados ou não pelo “O discreto charme da burguesia” | Le charme discret de la bourgeoisie – 1972 |.


Os charmosos convidados para o jantar são: Dom Rafael | Fernando Rey |, Simone Thévenot | Delphine Seyrig |, M. Thevenot | Paul Frankeur | e Florence | Bulle Ogier |. De início parece-nos que houve uma pequena divergência, pois o grupo de amigos compareceu um dia antes da data estabelecida. Tendo em vista que a ocasião era propícia para um jantar eles lembraram-se de um modesto restaurante. A anfitriã Alice Sénéchal | Stephane Audran | a princípio, recuou diante da proposta – “não estou bem vestida” – mas, por insistência, acompanhou-os. Após chegarem ao restaurante, quanta decepção! Além de não terem sido cautelosamente bem recepcionados, os preços eram absurdamente baixos – “um restaurante barato e vazio é de se duvidar”, conforme foi dito. Os estranhamentos permaneceram. Ao observar que os funcionários mostravam-se tensos, foi descoberto que o proprietário havia falecido e sua morte era velada em um ambiente ao lado. Pávidos diante de tamanha barbárie optaram por realizar o evento em uma data próxima. 


E sendo assim, após alguns dias retornaram os quatro amigos à residência de Simone e Henri Sénéchal | Jean-Pierre Cassel |. Eles chegaram em uma complicada ocasião, pois os anfitriões estavam trancados no dormitório e devidamente ocupados. Para desvencilhar-se do impecilho chamado visita eles resolveram apartar-se ao jardim com a finalidade de dar continuidade as práticas amorosas interrompidas. Subitamente, o grupo encontrou um modo de dar sentido àquele des-encontro: ao ouvirem a empregada dizer que os patrões fugiram para o jardim, eles sentiram-se apavorados, cogitando a possibilidade da polícia tê-los encontrado – “por qual outro motivo fugiriam assim?”. A reação foi unânime: todos saíram desesperadamente daquela casa. Pois bem, a ênfase em questão não será descobrir quem eram estas pessoas, mas sim considerar que todas tinham um mesmo intento: concluir um jantar – esta simples e célebre constatação revéla-nos a essência do charme burguês proposto por Buñuel.


Ainda assim, seguem alguns apontamentos peculiares àqueles sujeitos: chama-nos a atenção o Complexo de Euclides que Florence admitia ter vivido em sua trágica infância. Sabe-se também que Dom Rafael, encantado pelas mulheres, se encontrava às escondidas com Simone, a mulher de seu amigo M. Thévenot. Pode parecer inadequado considerá-lo traficante, mas não ficamos alheios às negociações underground de Dom Rafael com M. Thévenot e Henri, assim como à curiosa cena em que ele espanta uma vendedora de bichos de pelúcia mecânicos com uma espingarda, classificando-a como parte do grupo terrorista.


O terrorismo, entretanto, será desvelado a partir de agora. Vejam, o que impediu o primeiro jantar? O velório de um homem. Qual causa inviabilizou a transa entre os anfitriões? A chegada dos amigos. Por que o segundo jantar não ocorreu? Pois os donos da casa partiram. Seguindo este raciocínio: uma terceira tentativa de jantar é impedida pela chegada de soldados do exército. Houve uma quarta tentativa? Sim, entretanto, interditada pelo aparecimento súbito de um coronel anunciando ordem de despejo aos soldados. As carícias entre Dom Rafael e Florence foram inviabilizadas pela inoportuna chegada do marido. Simone, Florence e Aline solicitavam chá em um estabelecimento, não mais havia. Café? Acabara. Água, também findara. Insistiram. À meus cálculos, foram sete tentativas de concluir o quase mitológico jantar. Todas frustradas. A incompletude é a característica principal que define as convenções sociais deste grupo burguês. Eles saiam do lugar mas não alcançavam destino algum, não andavam em círculos mas encontravam-se constantemente com a impossibilidade de estabelecer um fim. 


Nesta obra Buñuel indicá-nos a existência de uma lei, um limite para o alcance da satisfação absoluta até mesmo entre aqueles socialmente instituídos em uma posição de absoluto controle. Aquilo que não se completava – representado pelo jantar – originara uma metonímia a fim de que em algum momento o esperado prazer da plena satisfação pudesse ser obtido. O diretor nos dá elementos válidos para pensarmos na repetição estrutural do neurótico que, situado em uma posição de não ter tudo e não ser todo assume ao que poderíamos nomear por linha de frente de batalha. Não deu certo? Pode-se arriscar uma segunda vez e multiplicá-la por um número consideravelmente alto. A insistência daquele grupo em realizar o que desejavam remete-nos, portanto, ao conceito de Pulsão de Morte, pois diz respeito àquilo que será buscado, insistido mas que não será apropriado em sua totalidade. Pois, a totalidade não existe. O neurótico é marcado por uma falta inicial originária do desejo que o leva a buscar objetos substitutivos ao gozo primário. Os objetos tendem a ser encontrados, mas a falta e a não-completude permanecerão. Em outros termos: o sonho de ser um sujeito completo e completado pelo outro é destituído em Freud e representado por Buñuel.


Sendo assim, pode-se sonhar? Para o diretor, devo revelar que não há saída, porque até mesmo em sonhos a completude não será obtida e o jantar não será concluído. O estado onírico seria outro impecilho nesta militância. O grupo de amigos demandava o desejo de alcançar um prazer absoluto, pleno e para tanto utilizavam-se de uma ocasião em que prazeres orais poderiam ser consumados, mas que no entanto, não eram. A falta prevalecia. E algo de semelhante ordem ocorre com o neurótico em sua busca pelo todo, o qual encontra-se com a angústia decorrente da existência de um hiato. A burguesia, pensada enquanto uma posição de controle e detenção fálica é portanto destituída deste lugar de todo-saber, e pelo o que foi visto, o charme burguês é uma consequência da celebração do nada.

Até mais ver, queridos.

Renato Oliveira

14 comentários:

Anônimo disse...

Olá Cine Freud, sempre com conteúdo de análise bem abrangente. Quando disse sobre o trabalho de máscara, fiquei feliz, já ouvi falar desse tipo de análise, é muito legal mesmo.
Os posts de Gêmeos te fez refletir então, fico feliz que entenda um pouco mais de sua persona, eu também fico tentando entender meu Sagitário. Obrigada sempre por visitar meu blog, sucesso pra vc, Cynthia.

Gilberto Carlos disse...

Renato, adoro os filmes de Buñuel, mas ainda não vi esse clássico. Vou tentar baixar. Abraços.

ANTONIO NAHUD disse...

Um filme inesquecível do mestre Buñuel. E que elenco!

O Falcão Maltês

Valéria lima disse...

Parece bem interessante, ainda não assisti.

BeijooO*

Unknown disse...

Dois pontos acho que resumem bem o seu ponto de vista:
+ A Celebração do Nada; e
+ A incompletude é a característica principal que define as convenções sociais deste grupo burguês.

Incrível como as suas análises nos levam além do que já é ótimo, para uma visão de excelência.


Adorei!

;D

David Iannini disse...

Oi!
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Mas nos outros posts fique a vontade para deixar seu link.( Se me seguir sigo devolta!)

Abraço! Boa Sorte!

Évelyn Smith disse...

Olá caríssimo e querido!!!

Mais uma belíssima resenha, ainda mais sendo inspirada em mais um grandioso filme do Buñuel. Interessante a correlação com a Interpretação dos Sonhos de Freud. E engraçado que muitos filmes (se não for todos) do Buñuel tem um tom latente de Psicanálise Freudiana.

Vou responde o seu e-mail agora. Estou de férias, graças a Deus! Confesso que essas últimas semanas foram muito efusivas, mas as férias chegaram, finalmente.

Tudo de bom pra você!

Beijo,
Évelyn

Évelyn Smith disse...

OBS.: Atualizei o meu blog, programei a publicação da postagem pra hoje. Agora escrevi de forma mais coerente do que a outra vez... Rsrs... =)

Sergio disse...

Muito boa a dica, adoro vir aqui e saber mais sobre este delicioso e intelectual mundo cinematográfico. Abç!

Película Criativa disse...

É o meu filme preferido do cineasta!

M. disse...

WOW! Adorei o texto. Luis Buñuel, um outro gênio do cinema sem dúvida. E eu feliz demais por vir aqui e ler esta obra prima. Abraços!

Rodrigo Mendes disse...

Olá Renato estou de volta. Faz um tempinho que não tricoto aqui, rs!

O que mais posso dizer de seu belo texto sobre um clássico do cinema? Adoro este filme! Um dos meus favoritos de Buñuel perdendo apenas para o hipnótico Um Cão Andaluz, fita jurássica na qual ele estréia como diretor trabalhando com o notável Dalí. Nunca me esqueço da antológica cena da navalha cortando o globo ocular. Enfim...

"Discreto Charme" é belíssimo! Tb escrevi um post algum tempo atrás. Gosto como você relaciona Freud com os filmes. Aqui não poderia estar mais correto na definição da incompletude destes seres humanos. As convenções sociais é um luxo artificial e desnecessário.

Abs.

e-Chaine disse...

Uma boa recomendação intrínseca.

Feliz Natal...

Daniel disse...

Sempre com boa reflexão sobre as histórias dos filmes não é? Uma ótima pedida para um dia assistir. Pois bem, as vezes as pessoas insistem em terminar algo, principalmente os burgueses, e este algo parece que nunca será realizado. Quanta trama nas palavras hehe um ótimo final de ano amigo, suas palavras conseguiram desvendar algumas partes do filme proposto pelo diretor. parabéns!

Dan