15.6.12

Procura-se, no deserto, um sentido

Há milhares de décadas atrás falava-se sobre um místico elemento químico capaz de transformar a vida daquele que o localizasse. Este bem estava reservado ao uso exclusivo de uma única família, caso fosse encontrado. Seria preciso, portanto, disposição e persistência para percorrer um deserto à sua procura. Esse conto que você acaba de ler não possui procedência verídica, acabo de inventá-lo. Mas se a narrativa por um lado é fictícia, não é improvável que a temática de um deserto seja propícia para abordar o sofrimento humano. “Todos podem amar, em maior ou menor medida” – os diálogos de Michelangelo Antonioni serão suscitados para que possamos conhecer uma dimensão real que envolve pessoas e suas indagações quanto a variabilidade de seus afetos, o quais serão evocados por meio da análise do filme O deserto vermelho | Deserto Rosso – 1964 |.


Na linguagem de Antonioni as cores são utilizadas como uma referência à ótica de Giuliana | Monica Vitti |, para examinar o mundo ao seu redor. Assim, aquilo que não é dito via campo das palavras pode ser manifesto por meio dos tons expressos na fotografia filmográfica. Observe que existe uma poesia implícita na condição daquele que se revela mediante a veracidade de sua dor. O que vemos, no início do filme, é um estado de cinzas, neblina e pessoas que caminhavam caladas e sem expressão. A respeito da condição mental de Giuliana, seu esposo Ugo | Carlo Chionetti | é enfático ao afirmar que ela “ainda não raciocina com clareza”. Se na suposta relação do homem com sua mente admitia-se a existência de lapsos ou danos de outra espécie, na relação deste mesmo homem com a máquina qualquer indício de imprecisão não era admitido. Observa-se os escassos diálogos entre funcionários de uma fábrica que mostravam-se racionalmente concisos em suas devidas responsabilidades corporativas. Sucintamente constata-se uma oposição entre a sabedoria do homem-máquina com o estado de desrazão de Giuliana, aquela que em sua particular razão de ser nos aproximará de uma similitude entre estes dois lugares.


Esta mesma bela mulher que sofria de problemas mentais também mostrava-se identificada na condição de mãe e esposa. Assim, para que o seu mundo interno de Giuliana encontrasse uma âncora na realidade externa foi preciso tão somente a existência de um interlocutor, a saber, Corrado Zeller | Richard Harris |, um outro disposto à ouvi-la. Ele poderá ser considerado uma espécie de eixo mediador em uma possível correspondência entre o homem-máquina com os afetos de Giuliana, pois trabalhava conjuntamente a Ugo e, pelos indícios que serão mostrados, era entendido em matérias de fabricas e relações humanas. No súbito encontro entre os dois, Giuliana comentava a respeito de cores que utilizaria para pintar um ambiente. Na ocasião eles conversavam sobre o sentimento de estar em algum lugar. Observem o emprego do verbo estar, que neste contexto possui um sentido superior a uma mera estadia. O estar encontra-se relacionado ao sentido de existência em ocupar um lugar no mundo. Corrado dizia-lhe: “às vezes acredito que não tenho o direito de estar onde estou. Possivelmente por isso sempre tenho vontade de partir”. O desejo de partir relaciona-se, assim, a um possível anseio de encontrar-se consigo próprio, manifesto no discurso de Corrado, mas que também será expresso por Giuliana em suas tentativas de compreender a atmosfera que a envolvia. 


Para abordar este sentimento de procura, Antonioni utiliza-se de um correspondente físico: os olhos de Giuliana, pois “é como se tivesse os olhos molhados. O que querem que eu faça com os meus olhos? O que devo olhar?”. Em extensão a esta fala, se indagaria: para onde olhar se as pessoas próximas parecem-lhe distantes? Este sentimento de suposto bem estar coletivo é ilustrado pela reunião de três casais em uma pequena casa construída sem grandes ornamentações. Neste lugar, Giuliana, Ugo, Corrado e os demais falavam livremente sobre assuntos triviais. O pequeno espaço físico deste ambiente favorece uma aproximação entre os participantes do grupo, a qual ocorre apenas no âmbito físico, pois embora juntos eles não se mostravam em uma mesma relação, de maneira que para Giuliana os olhos permaneceriam molhados como reflexo de sua desesperança. Há um sentido de não correspondência no encontro daqueles casais, o que evidencia novamente o sentimento de não ser feliz em lugar algum.


A estadia naquela casa foi subitamente interrompida com o hastear de uma bandeira amarela próximo ao local. Este sinal era indicativo da necessidade de prevenção, pois os habitantes estavam suscetíveis a alguma enfermidade infecciosa. Após a atribuição de sentido ao signo todos retiraram-se imediatamente, demarcou-se assim um fim àquele encontro. A linearidade deste trabalho não tem por objetivo conduzir-nos a um ápice dentre as eventualidades apresentadas. No entanto, pode-se apreender os diálogos de Giuliana e Corrado a respeito do valor subjacente ao fato de encontrarem-se nos lugares em que estavam. A condição humana é retratada por Antonioni como aquilo que não possui uma definição. Em termos analíticos, contudo, compreende-se que aquelas pessoas se angustiavam com a invasão do Real sobre o Simbólico, pois o estar no mundo era da ordem do impossível de ser representado. A angústia era, portanto, consequência da produção constante de um não-saber. É perceptível que o diretor utilizou-se da atmosfera produzida para abordar o sentimento de infelicidade em paralelo com a incomunicabilidade, característica esta que recai sobre as relações do sujeito. 


A incomunicabilidade em questão não se assemelha à ausência de discurso, trata-se, no entanto de uma condição de não se produzir entendimento e sentido no encontro com o outro. A Giuliana destinava-se o desafio de encontrar-se com alguém que a permitisse colocar-se subjetivamente em seu discurso. A fala, deste modo, é capaz de produzir orientação e o olhar do outro é evocativo de entendimento. Nesta acepção pode-se pensar que a superficialidade das relações humanas é produtora de uma “desregulagem”. Pessoas mostram-se desprovidas de algo que norteie e traga sentido para suas vidas. 


Esta condição é representada no filme pela constância da névoa que enquanto fenômeno da natureza produz no homem uma confusão e equívoco em seu olhar. Retrata-se deste modo a dificuldade daqueles sujeitos em se olharem e aperceber-se como pessoas capazes de positivar a existência do outro. O que prevalecia era a desesperança e a suscetibilidade ao perigo de que suas vidas continuassem e nada pudesse intervir em suas próprias causas. A racionalidade e rigidez presente na condição do homem-máquina podem, no entanto, ser imiscuída à imprevisibilidade discursiva daqueles que falam de sua própria dor, que a expressam e que visam, absolutamente, encontrar sentido em meio à névoa, em maior ou menor nitidez.  

Abraços à todos vocês,

Renato Oliveira

10 comentários:

M. disse...

Olá Renato! Aqui estou lendo sobre este tão curioso filme italiano. Uma pena que os que assisti foram raríssimos! E este sim vai para meu famoso caderninho de filmes que devo assistir! VOcê como sempre super hiper inspirado e com análises de arrepiar. Abraço.

Tati disse...

Parece ser um belo filme, vou procurar para ver. Essa questão da falta de um outro que te escute afetuosamente ou desse encontro verdadeiro entre duas pessoas é algo que provoca muita dor e angústia hoje em dia. A impressão que passa é que a solidão no mundo aumenta proporcionalmente ao acréscimo do número de pessoas e tecnologia. Você já assistiu "Um dia muito especial", do Ettore Scola? É bem interessante e trata dessas questões de falta, angústia, encontros, recomendo. Ao ler sua resenha lembrei muito dele.
Beijos
Tati

Ana Ponick disse...

hmmm, ótima dica de filme pra hoje! hehe

;*

Évelyn disse...

Caríssimo!

Comecei a ler esta resenha e me vieram vários não-entendimentos em minha mente. Ao final do texto, percebi que ocorria um "leve recalque" de minha parte com os conteúdos descritos sobre o filme. É normal não querermos deparar com aquilo que nos faz sofrer em algo tão prazeroso. No caso as suas resenhas me fazem muito bem, porém encontrei frases chaves através do relato do filme, que caem como uma luva em situações presentes em Minha Vida.

Enfim... As suas resenhas são muito válidas a mim e tenho certeza a todos que lemos, obrigada por escrevê-las!

Muito interessante as diversas correlações contidas no filme, apenas para retratar algo em específico. Muitos filmes fazem diversas analogias apenas para passar uma única mensagem, acho isto incrível!

É, como enxergar diante uma névoa... Às vezes por mais que a fala e o olhar do outro estejam tão próximos nos parecem tudo tão distante, como se uma imensa névoa ocupasse todo o território entre mim e o outro. Eis a peça que regula a máquina: "encontrar sentido em meio à névoa".

Como você diz, "avanti"! =)

Tudo de bom pra você, magnífico mentor!

Beijão

Gilberto Carlos disse...

Um deslize. Não conheço muito do cinema de Antonioni, mas todos elogiam e parece ser muito bom.

ANTONIO NAHUD disse...

A Monica Vitti está preciosa neste filme. Não é um dos meus Antonioni favoritos, mas é cheio de talento, com destaque para as imagens de Di Palma.

O Falcão Maltês

Sergio disse...

Antonioni é demais; vou procurar por esse filme! Obrigado pelo carinho; um maravilhoso fim de semana pra ti!!!

Anônimo disse...

Eu tb sumi e voltei hoje, prometo voltar pra comentar esse post, obrigada pela visita. Cynthia

ANTONIO NAHUD disse...

Desculpe-me pelo sumiço. Estava enrolado com o lançamento de dois livros.Mas já estou de volta! E vc, por onde andas?

O Falcão Maltês

Chrno disse...

Primeiramente, parabéns pelo blog e pelo texto! Amo cinema, esse filme, e estou começando a estudar psicanálise, então, adorei o blog.

Monica Vitti está maravilhosa nesse filme, dando vida a psicótica (concorda? Levando em conta que na verdade é impossível dizer isso com certeza, claro...) Giulliana. Além da genial atuação dela, o destaque acho que obviamente vai pra fotografia. Maravilhosa a cena da ''orgia'' que não se concretiza e que, enquanto os personagens interagem, as excitações se acumulando, os tons de vermelho se intensificam progressivamente. Incrível como ao fim da cena, quando Ugo nega a relação sexual que Giulliana pede, esta logo cai em outra crise.