Se você está cansado do mundo na mesma formatação de todos os dias, devo dizer-lhe que alternativas não faltam. Em cada época da vida é comum que tenhamos uma tendência a questionar os lugares em que os móveis estão colocados e a maneira como as pessoas se comportam em relação aos mesmos. Se não estivesse declarada a finalidade de escrever uma análise, poderíamos utilizar todo esse espaço para elencar os nossos dissabores, fomentar alguma discussão a esse respeito, mas acontece que “existe esperança aos que sonham, apesar de tudo”. É evidente que alguma coisa não compreendida ficará da resenha de hoje, inclusive a fatídica diferença entre impassável e impossível. Será que esta primeira palavra realmente existe? Há tempos também existem aqueles que questionam se o inconsciente existe... E onde localizá-lo?
Com a Interpretação dos Sonhos, Freud inaugurou a descoberta para um mundo que se difere daquilo que é conhecido por vida de vigília, a qual, em meados de 1898 na Áustria provavelmente não era exacerbada como nas grandes cidades de hoje, mas tinha lá os seus infortúnios também. É da dimensão onírica que nos aproximaremos hoje, afinal Alice se pôs a sonhar e nós a acompanharemos em sua terra de fascínios e contratempos | Alice in Wonderland – 1951 |.
Enquanto ouvia uma história narrada por sua governanta, a jovem Alice se entretinha com um gato e uma coroa de flores nada fúnebre sentada ao galho de uma árvore. Ela revela que não era possível se envolver com uma história sem fotografias, e acrescenta: “se eu tivesse meu próprio mundo, tudo seria tolice. Nada seria o que é, porque tudo seria o que não é. O contrário, o que é, não seria. E o que não seria, seria”. Esta fala representa uma alusão ao que seria este mundo com imagens.
Muito provavelmente todos ouviram em algum momento da vida a história sobre a entrada de Alice em uma Terra de Maravilhas, e caso isso não tenha acontecido com você, não diga que não teve infância, porque você também pode ter acesso a um universo onírico. Por hora, sabemos que ela se colocou a sonhar e tornou-se uma aventureira ao percorrer caminhos ainda não explorados, nos quais emergiam seres excêntricos, desconhecidos e, sobretudo, faltantes, um dia criados por ela.
No momento em que Alice encostou um dedo em uma branda correnteza de águas surgiu um coelho com colete, óculos, gravata, guarda-chuva e um relógio. Ele anunciava desesperadamente que estava atrasado e corria mais que alunos desesperados pelo fechamento dos portões em dia de prova. A jovem arqueóloga o segue a procura de um entendimento para tamanha ansiedade, até que ela observa que o coelho entrou por um galho. Ela o segue e caminha por este apertado espaço para em seguida cair numa atmosfera nunca antes sonhada. A queda de Alice, por si só, é mais que um desafio à lei da gravidade, é o retrato de uma fantasia em que é preciso pensar como os que sonham para poder assimilá-la. O seu vestido se tornou o seu próprio paraquedas e logo ela estava entre objetos hilários conforme vagarosamente se aproximava do solo. Ela nota o seu reflexo invertido no espelho e em seguida observa que o coelho andava de cabeça para baixo. Mais alguns passos apressados e um novo desafio estava posto: Alice era maior que a porta de acesso ao caminho pelo qual o distinto coelho seguira. Enquanto conversava com a maçaneta da porta, ambos recém-conhecidos falantes tentavam formular uma solução.
De repente surge uma pequena garrafa acima de uma mesa com a etiqueta “drink me” (beba-me, em inglês). Como observado em contos infantis, ela suspeita se o líquido contido no frasco não era veneno. Ela decide arriscar e em instantes o seu corpo diminui de tal modo que ela poderia atravessar a porta. Entretanto, faltou-lhe a chave, e já não mais seria possível alcançar a mesa para poder pegá-la. Assim, aquela pequena maçaneta – o único outro deste diálogo – faz com que apareça um pequeno baú com elementos comestíveis. Bastou ingerir um pequeno pedaço para que ela se tornasse grande e absolutamente desproporcional ao tamanho da passagem. Esta não confluência de propósitos parecia ser um entrave inicial para que Alice pudesse atribuir sentido ao desespero do coelho e desvendar o enigma daquilo que estava para além da porta. Afinal, mesmo não sabendo como chegar ela supunha que havia um universo a ser explorado, mas a priori se diminuir era o requisito necessário.
Atravessar a porta não era impossível e nem mesmo impassável, e nota-se que a redução de tamanho implica uma diminuição do sujeito. Ora, a jovem Alice estava diante da entrada em um universo inconsciente, prestes a se encontrar com os seus objetos internos. A princípio, ela nada queria saber de sua casa, ou, em termos freudianos, de sua vida de vigília, mas sim de se relacionar com estes objetos. Diminuir implicava em aplacar uma resistência de acesso a estes conteúdos, em tamponar o sujeito da consciência. Foi assim que a aventureira conseguiu acesso enquanto velejava dentro de um pequeno vidro. Logo, ela observou pequenos animais que dançavam alinhadamente. Alice se pôs a dançar esta mesma música para posteriormente encontrar em meio à vegetação o coelho que apressadamente seguia o seu caminho. Ela era tratada por aqueles objetos como uma desconhecida e notável arqueóloga, os quais se entretinham com o desejo de saber da jovem, mas que dificultavam o percurso da mesma para o encontro do coelho. Ademais, todos pareciam malucos, a seu modo, cada.
Conforme ela parecia estar próxima a obter uma resposta para este percurso, outros entraves eram suscitados, de maneira que a viagem tornava-se ainda mais intrigante e desprovida de um propósito racional. Naquele lugar, Alice não tinha o seu próprio caminho, ela se conduzia a partir de fatos inesperados que surgiam diante dela. O coelho, conforme comentado, era o condutor do trajeto, mas cujo aparecimento ocorria de maneira súbita e temporária. Neste “lugar encantado” ela encontrou um gato de listras roxas, que curiosamente também tinha o dom de desaparecer. Estes dois objetos serão analisados a seguir.
Com a Interpretação dos Sonhos, Freud inaugurou a descoberta para um mundo que se difere daquilo que é conhecido por vida de vigília, a qual, em meados de 1898 na Áustria provavelmente não era exacerbada como nas grandes cidades de hoje, mas tinha lá os seus infortúnios também. É da dimensão onírica que nos aproximaremos hoje, afinal Alice se pôs a sonhar e nós a acompanharemos em sua terra de fascínios e contratempos | Alice in Wonderland – 1951 |.
Enquanto ouvia uma história narrada por sua governanta, a jovem Alice se entretinha com um gato e uma coroa de flores nada fúnebre sentada ao galho de uma árvore. Ela revela que não era possível se envolver com uma história sem fotografias, e acrescenta: “se eu tivesse meu próprio mundo, tudo seria tolice. Nada seria o que é, porque tudo seria o que não é. O contrário, o que é, não seria. E o que não seria, seria”. Esta fala representa uma alusão ao que seria este mundo com imagens.
Muito provavelmente todos ouviram em algum momento da vida a história sobre a entrada de Alice em uma Terra de Maravilhas, e caso isso não tenha acontecido com você, não diga que não teve infância, porque você também pode ter acesso a um universo onírico. Por hora, sabemos que ela se colocou a sonhar e tornou-se uma aventureira ao percorrer caminhos ainda não explorados, nos quais emergiam seres excêntricos, desconhecidos e, sobretudo, faltantes, um dia criados por ela.
No momento em que Alice encostou um dedo em uma branda correnteza de águas surgiu um coelho com colete, óculos, gravata, guarda-chuva e um relógio. Ele anunciava desesperadamente que estava atrasado e corria mais que alunos desesperados pelo fechamento dos portões em dia de prova. A jovem arqueóloga o segue a procura de um entendimento para tamanha ansiedade, até que ela observa que o coelho entrou por um galho. Ela o segue e caminha por este apertado espaço para em seguida cair numa atmosfera nunca antes sonhada. A queda de Alice, por si só, é mais que um desafio à lei da gravidade, é o retrato de uma fantasia em que é preciso pensar como os que sonham para poder assimilá-la. O seu vestido se tornou o seu próprio paraquedas e logo ela estava entre objetos hilários conforme vagarosamente se aproximava do solo. Ela nota o seu reflexo invertido no espelho e em seguida observa que o coelho andava de cabeça para baixo. Mais alguns passos apressados e um novo desafio estava posto: Alice era maior que a porta de acesso ao caminho pelo qual o distinto coelho seguira. Enquanto conversava com a maçaneta da porta, ambos recém-conhecidos falantes tentavam formular uma solução.
De repente surge uma pequena garrafa acima de uma mesa com a etiqueta “drink me” (beba-me, em inglês). Como observado em contos infantis, ela suspeita se o líquido contido no frasco não era veneno. Ela decide arriscar e em instantes o seu corpo diminui de tal modo que ela poderia atravessar a porta. Entretanto, faltou-lhe a chave, e já não mais seria possível alcançar a mesa para poder pegá-la. Assim, aquela pequena maçaneta – o único outro deste diálogo – faz com que apareça um pequeno baú com elementos comestíveis. Bastou ingerir um pequeno pedaço para que ela se tornasse grande e absolutamente desproporcional ao tamanho da passagem. Esta não confluência de propósitos parecia ser um entrave inicial para que Alice pudesse atribuir sentido ao desespero do coelho e desvendar o enigma daquilo que estava para além da porta. Afinal, mesmo não sabendo como chegar ela supunha que havia um universo a ser explorado, mas a priori se diminuir era o requisito necessário.
Atravessar a porta não era impossível e nem mesmo impassável, e nota-se que a redução de tamanho implica uma diminuição do sujeito. Ora, a jovem Alice estava diante da entrada em um universo inconsciente, prestes a se encontrar com os seus objetos internos. A princípio, ela nada queria saber de sua casa, ou, em termos freudianos, de sua vida de vigília, mas sim de se relacionar com estes objetos. Diminuir implicava em aplacar uma resistência de acesso a estes conteúdos, em tamponar o sujeito da consciência. Foi assim que a aventureira conseguiu acesso enquanto velejava dentro de um pequeno vidro. Logo, ela observou pequenos animais que dançavam alinhadamente. Alice se pôs a dançar esta mesma música para posteriormente encontrar em meio à vegetação o coelho que apressadamente seguia o seu caminho. Ela era tratada por aqueles objetos como uma desconhecida e notável arqueóloga, os quais se entretinham com o desejo de saber da jovem, mas que dificultavam o percurso da mesma para o encontro do coelho. Ademais, todos pareciam malucos, a seu modo, cada.
Conforme ela parecia estar próxima a obter uma resposta para este percurso, outros entraves eram suscitados, de maneira que a viagem tornava-se ainda mais intrigante e desprovida de um propósito racional. Naquele lugar, Alice não tinha o seu próprio caminho, ela se conduzia a partir de fatos inesperados que surgiam diante dela. O coelho, conforme comentado, era o condutor do trajeto, mas cujo aparecimento ocorria de maneira súbita e temporária. Neste “lugar encantado” ela encontrou um gato de listras roxas, que curiosamente também tinha o dom de desaparecer. Estes dois objetos serão analisados a seguir.
Pelas evidências apresentadas imagino que vocês compreenderam a charada. Espero que sim, porque o conto escrito por Lewis Carroll ainda parece-me como uma caixa fantasmática em que sempre há possibilidades não pensadas. Contudo, com base no caminho que levou Alice àquela Terra de Maravilhas e pelas características de dois personagens (o coelho e o gato), supõe-se que ela estava perdida em seu caminho porque não era senhor em sua própria casa. A frase parece não ter sentido. Explico-me: o coelho pode ser tido como o guia condutor de todo o percurso feito. Ele era o objeto bom a ser introjetado, como se de algum modo ele detivesse um saber sobre a própria Alice. É como se ele fosse também o último, o impossível. Alice o perseguia sem conseguir alcançá-lo, ou seja, o coelho representava o desejo inconsciente, aquele que para existir enquanto tal deve permanecer na condição de inatingível e irrealizável. Mas ainda há ensejo para uma questão: o que na vida se persegue e nunca se alcança? A pergunta, se formulada ao inverso, teria uma resposta precisa: a morte é o que não se persegue, mas um dia será alcançada. Todavia, a causa do desejo pode ser esse algo que se persegue na vida, o sujeito anseia saber o que lhe faz desejar, ele quer desvendar e ser “senhor em sua própria casa”, dono de sua própria razão, ainda que a escolha seja manter o desejo na condição de desejo, ou seja, como falta, como não realizado. A esta compreensão acrescenta-se a queixa acerca do atraso que pode ser pensado como “estar fora do tempo”. O desejo não conhece tempo, época ou ocasião. Não é por menos que é comum nos relacionarmos constantemente com desejos infantis e absolutamente bizarros ou despropositais à época. Chega um momento em que pela confusão evocada pelo coelho-desejo, Alice não mais quer saber dele e interessa-lhe somente encontrar o caminho de casa. Em outras palavras, ela passa a querer retornar a uma condição de estabilidade e segurança.
O gato que aparecia a Alice e ostentava um sorriso sarcástico tem a função de instigá-la a continuar no desafio rumo ao coelho. Ele se apresenta como o tempo oportuno para que a busca continuasse e para tanto a enlaça no discurso apontando o desejo como alvo, como finalidade e anuncia o caminho que ela deve seguir para encontrar a rainha. O gato desvenda a ocasião para que a busca pelo desejo continue, a ao fazê-lo coloca o desejo como atualizado em relação a ela. O desejo continua a existir e o gato faz questão de mostrar a realidade deste fato.
Os eventos eram inesperados e Alice não poderia contê-los porque naquele lugar ela não mais era um sujeito racional, ela se movia por uma lei outra que não a lei do discurso consciente e da razão compartilhada entre pessoas. Aos poucos o passatempo tornou-se desesperador porque ela constatou que não mais exercia controle sobre coisa alguma. Nem sequer a comunicação exercia um efeito organizador, pois a significação compartilhada entre os objetos era improvável por não se supor outro sujeito apto a compreender o que a ele foi dito. No mundo de Alice todas aquelas criaturas nada mais eram do que excêntricos seres falantes e uma vez imersa nesta realidade não havia outro caminho senão procurar uma saída e em uma oportunidade futura reconsiderar se aquilo que se mostra impassável também não deva ser entendido como impossível. Da próxima vez, pergunte ao tempo: qual o tempo que ele tem?
Renato Oliveira
6 comentários:
Muito legal, Renato!
Alice é um dos clássicos supremos, deve ser sempre reverenciado e revisitado. Suas análises são sempre embasadas, notamos que você mergulha a fundo nos detalhes para poder nos passar.
Grande abraço, sucesso e grato pela visita!
É Renato adorei a sua analise do desenho, mas, cá entre nós eu vivo no mundo da lua e mais fácil teoricamente. bjs
Alice é um conto e tanto. Não cheguei a ler o livro de Lewis, mas assisti o filme ainda pequena - quem não assistiu mão teve infância né? Seu texto me despertou uma vontade de rever este filme e analisar-lo melhor, não mais como uma criança. Essa história é complexa. Adorei a comparação com a vida de vigília, de Freud. Beijos e bom final de semana <3
Renato, parabéns pelo blog e pelos didáticos e excepcionais textos. Pena que você tem postado tão poucos!
Adoro Alice no país das maravilhas. Na minha juventude li o livro de Lewis Carrol e quando o filme passou pela 1ª vez no SBT foi um acontecimento. A versão de Tim Burton é boa, mas eu ainda prefiro o clássico da Disney. Abraços.
Caríssimo!
Finalmente, eis-me aqui. ;-)
Que belíssima resenha! Quanta criatividade! Com certeza Freud teria publicado em sua alguma de suas obras a sua resenha e você se tornaria um seguidor freudiano... que tal?!
Gosto das diversas versões de filmes que trazem o enredo de Alice, principalmente as versões que envolvem algum transtorno psíquico. Já viu o filme "A Menina no País das Maravilhas"? Ou "Phoebe in Wonderland"? Me lembrei agora deste filme, é de uma menina portadora da Síndrome de Tourette e do Transtorno Obsessivo-Compulsivo Infantil. Recomendo!
Tudo de bom pra você!
Beijão
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