9.11.14

doce desejo

O Cine Freud de hoje vem vestido de confeitaria para mostrar que os desejos de uma criança crescida não são nada doces. Na verdade, não precisa nem sequer ser crescido para saber que desejos não são agradáveis ao paladar da mente. Lógico que não me refiro a desejo por doce, sobremesa, casa na praia, vodka com suco de laranja ou coisa do tipo. Faço menção ao desejo como ele aparece na psicanálise enquanto campo do saber e na clínica psicanalítica: desejo daquilo que causa horror, que deseja ser evitado, mantido afastado da consciência. As fias David Slade e Brian Nelson sabem disso, afinal articularam esse entendimento ao criar um filme sobre o qual muito já foi falado, mas não o bastante. A história da brilhante e deliciosa maçã que ao ser mordida deu abertura para a saída de uma larva ganhou novos horizontes, tais como se percebe no filme Hard Candy (2005), que fomos forçosamente obrigados a conhecer por menina má.com.

Não estou nem um pouco disposto a discutir sobre os perigos da era contemporânea e o quanto pode ser nocivo a crianças conversarem em chats – leia-se atualmente: redes sociais – e marcarem encontros. Há inúmeras enciclopédias eletrônicas sobre o assunto e não precisa ser expert na área para saber que gente má intencionada esta em toda a parte, inclusive, os que escrevem resenhas. A questão é: eles estavam conversando em uma sala de bate-papo qualquer e pelo que lemos, já havia um acentuado teor erótico na conversa. Logo marcaram de se encontrar. Tudo assim, absolutamente rápido. Você pode ter a impressão de que duas pessoas trocaram algumas palavras num site e marcaram de se ver, contudo, logo descobrimos que o contato entre eles se estendia por três semanas.

Vemos a seguir um close numa fatia de bolo sendo cortada. Mesmo os mais avessos à glicose sentirão vontade de comer algo com açúcar após essa cena. Ela, Hayley Stark | Ellen Page | extasiava ao sentir o doce sabor do chocolate como um lençol macio sobre a língua. 


Essa sensação de júbilo se tornou ainda maior com a chegada de seu “amigo virtual” em formato humano e 3D: o fotógrafo Jeff Kohlver | Patrick Wilson |, que como acontece habitualmente em filmes, as pessoas se reconhecem muito facilmente. Ah, e tem mais: nos mesmos, gente real “saída da internet” nunca é feia. Que seja, não é ocasião para se discutir sobre isso. Eles conversavam entre café latte descafeínado e mais doce e chocolates, e devo acentuar que Hayley não conseguia disfarçar que não estava nem um pouco decepcionada pela aparência dele. Ela levanta uma questão aparentemente boba neste momento, mas muito relevante: “o meu rosto mente?”. Pois bem, ela tinha 14 anos e a idade dele será revelada mais adiante. Jeff anuncia que ela parecia ser mais velha, o que dá a entender que os seus assuntos eram de “mocinha mais madura”.


Eram eles jovens com compatibilidade musical, com um discurso bastante fluído... Tudo isso para dizer que não se tratava daqueles encontros em que cada um não sabe onde pôr as mãos. Uma história de um mp3 da banda Goldfrapp serviu de ocasião, senão pretexto, para a emergência da possibilidade da guria ir para a casa dele. Claro que isso somente pode ser entendido por nós como cortinas abertas para o sexo, e mais evidente ainda é que era isso o que eles queriam. Nada do que eu possa explicar sobre uma frase de Hayley fará mais efeito do que mencioná-la literalmente: “você disse que seria loucura eu ir a sua casa e, bem... Quatro, quatro em cada cinco médicos acham que sou louca. Logo, eu preciso ir à sua casa para ser eu mesma, certo?” Com uma pessoa assim você nunca precisará pedir que ela diga para que veio. Só que claro que a revelação da teenager não foi levada a sério por ele – “não me leve a sério, me leve para sua cama”. Perdoem-me o jogo de expressões, mas preciso sintetizar tudo ao declarar que logo estava Hayley com sua blusa vermelha de frio com capuz, que lembra-nos a figura icônica de chapeuzinho vermelho, agora sim, dentro do lugar para ser vítima da voracidade de um lobo que não dera indício algum de sê-lo. O rosto dele mentia?


Na casa dele, ela sentiu-se muito a vontade, e observava todas as acomodações. O sexo, a princípio era algo propriamente insinuado por meio não só dos olhares deles, mas do interesse declarado dela em querer saber sobre ele e acerca das modelos que se entregavam às suas lentes. Não sei se na cultura estado-unidense não é desagradável uma pessoa semiconhecida abrir a geladeira, mas o que é válido se deter é o diálogo que se estabeleceu entre eles enquanto ela fazia uma bebida com vodka: “cara saudável, heim!” – “quero viver o máximo que puder” – “viver não é muito bom” – “você não quer chegar à velhice?” – “pra quê? Quando tiver 80 anos vou me divertir com o que?” E essa discussão filosófica terminou com Jeff dizendo que quando ela tivesse 80 anos, ele teria 98 e não poderia ser útil a ela. Mas, no final ele atualiza esta conclusão, ao indagar: “E como eu posso ser útil a você?”. Logo a pergunta foi respondida.


Enquanto bebiam, após conhecer o quarto dele e seu estúdio fotográfico, Hayley pede que tire algumas fotografias dela. Durante os primeiros enquadres, ele desmaia e por alguns segundos a história parece ser confusa. O “clímax” do roteiro forma-se a partir dos eventos que sucederam a esta perda momentânea de consciência: Jeff foi amarrado por ela e tornou-se fisicamente cativo ao seu interesse de aniquilá-lo. Ela utilizou uma substância que nos é desconhecida para provocar aquele desmaio e poder capturá-lo. Sim, seu intuito era fazê-lo sofrer, mas posso afirmar que mediante um sofrimento pouco convencional. Na primeira etapa, ela pretendia desvendar sua alma e seus segredos, a situação teria uma característica muito mais verbal, para, numa segunda, executar um plano que atravessaria a dimensão do corpo. 


Hayley anuncia que Jeff estava à caça de uma adolescente de sua idade. Ela o acusava de ser um voyeur, um molestador e pedófilo. Aos poucos, ela menciona casos de meninas que supostamente foram vítimas deste “cordeiro amordaçado”. Para Hayley, a declaração de Jeff de que ele não se relacionava sexualmente com as modelos que fotografava era falsa e ademais, ela procurou elencar sucessivas acusações contra ele.

Observem que primeiramente é estabelecido um setting profano pautado nas palavras que eram expressas por eles, ou seja, o horror relativo a quem ele era e quem foi de verdade e o que ela estava por realizar tinha uma característica de oralidade. Lembrem-se da imagem inicial da torta degustada por Hayley. Há um momento em que ela diz: “aposto que você tem coisas tão saborosas”. Desde então esta marcada uma correspondência entre o que diz respeito à oralidade e a obtenção consequente de prazer sexual. A princípio, o prazer da conversação via chat, seguido da degustação daqueles doces, e, posteriormente, a suposta satisfação obtida com as bebidas para chegar a presente situação do prazer na fala, em desvelar a alma do acusado por meio das palavras que ela o persuadia a proferir. É certo que há um prazer sexual possível a se obter a partir daquilo que é passível de incorporação. Essa ideia foi popularmente traduzida em: “pecado não é o que entra, mas aquilo que sai”.


Esta mesma frase serviria para justificar o próximo delito de Jeff aludido por Hayley: a pornografia. Ela relata que olhou em todas as partes da casa e não encontrou um item sequer – “estava pensando que essas fotos na parede talvez fossem a sua pornografia. Mas aposto que você não se masturba com elas”. Assim, ela descobre um cofre e se defronta com a tarefa de adivinhar a senha a fim de confirmar sua hipótese de que ali se encontrava o verdadeiro material pornô com o qual Jeff obtinha prazer. O que será que havia de tão proibitivo e particular para estar dentro de um cofre escondido entre pedras na casa de um homem que vivia sozinho? Quero ressaltar que a pornografia também pertence ao mesmo eixo de obtenção de prazer sexual já mencionado, a oralidade. Trata-se da introjeção de uma imagem criada (seja a partir de imagens reais, fotos, ou cenas reais ou imaginadas) que serve como estimulação física para fins de prazer autoerótico.


A cena do cofre, bem como todo esse verbal setting nos leva a seguinte questão: Jeff era realmente o “lobo mau” revelado por Hayley, ou as acusações e retaliações eram tão somente projeções dela? Quais eram os seus segredos e o que, na verdade, o fazia gozar? O que são os nossos segredos? Nesse momento quero aludir à palavra inglesa “core”, usada para definição daquilo que se encontra no núcleo, é o miolo de alguma coisa, o seu âmago, como o cofre de Jeff enquanto metáfora de sua Verdade Oculta. Tem segredos que compartilhamos com uma ou outra pessoa, tão somente, inclusive, aqueles que são contados ao analista. Mas o que dizer de “segredos do core”, para além do coração, mais do núcleo do miolo do âmago do ser, que você mesmo não quer lembrar de que eles existem e são teus? É desses que me refiro, “segredo-horror” que precisa ser mantido enquanto secreto. Nesse contexto, como se encaixaria a expressão hardcore? Faz sentido pensá-la como um núcleo duro, literalmente, ou seja, aquilo que é tão nosso que não pode ser descrito nem sequer verbalizado de maneira alguma, o átomo, o indivisível, o que não é passível de ser dividido com ninguém. Sim, era o hardcore de Jeff que Hayley queria trazer a consciência. Isso é ou não uma tortura? E não tem analista que, sem tato da ocasião certa, procura fazer o mesmo?

Hayley queria o hardcore porque ela era o hardcandy, um doce revestido de muito açúcar e chocolate, porém intragável, duro, difícil de ser incorporado. Ela se fez de advogada de acusação para obter uma Verdade, ela queria provar que Jeff era pior do que ela, que suas partes más se tornariam inócuas próximas ao grande pecado dele.


Num segundo momento ela se aproxima do “pecado dele” enquanto instrumento ligado ao corpo. Sim, a frase ficou esquisita. Mas o fato é que nesta parte a tortura sai um pouco do plano verbal para atingir a dimensão corpórea. Vemos um saco de gelo cobrindo a área genital de Jeff enquanto ele permanecia amarrado sobre uma mesa. Vocês entenderam o que está prestes a acontecer – “você é um escândalo em potencial. Todos ficarão mais seguros se eu fizer uma pequena manutenção preventiva”. Roupa de médico, lâmina de barbear, espuma e tesoura: ela pretendia castrá-lo. Acreditava que assim meninas estariam seguras de serem assassinadas por ele. Hayley tenta provar que ele tem um pênis composto de tudo o que há de mal, capaz de causar estrago ao mundo, que seu pênis esta associado à sujeira, tortura, ao sadismo e as perversões no geral. Portanto, “agonias impensáveis” são representadas nas cenas já formuladas na mente de vocês. É necessário acrescentar que o pênis de Jeff é também um hardcandy, isto é, quando ereto, é um doce tentador, mas que não deve ser provado – “aposto que você tem coisas tão saborosas”. A ereção é concebida como um alerta de perigo para a sociedade. Trata-se, assim, de um doce “envenenezante” que precisa ser rejeitado, que não pode sob circunstância alguma ser incorporado.


Dessa maneira, Jeff foi levado a descobrir seu hardcore, o seu cofre foi encontrado e ele teria que se haver com suas partes boas e com as más, principalmente. Como puderam notar, o meu intuito não foi analisar a presença de uma possível psicopatia em Hayley, mas sim a cena montada. Sobre esta, farei uma última observação, mas não menos monstruosa: há uma finalidade no horror da castração ilustrado no filme. Logo no início se tem a impressão de que Jeff  será o lobo-mau que usufruirá do corpo de Hayley, a levará para casa e fará sexo com ela unicamente para seu próprio êxtase, ou seja, que será uma relação sexual sádica e torturante, em que a jovem se submeterá enquanto virgem. Esta cena imaginária alude a uma prática de pedofilia, claro, e, por sua vez, remete a proibição do incesto, (o desejo sexual pelos pais existente apenas em estado latente). Ora, toda essa cena inicial é recalcada na mente do expectador e temporariamente esquecida, de maneira que a inversão de posições (Jeff como objeto) é sentida na consciência enquanto se assiste ao filme com um prazer sádico e sensação de alívio porque é mais fácil admiti-la do que a imagem em estado de recalcamento. Assim, tenha, portanto, cautela ao dizer em público que você precisa de um doce, algum julgamento a partir disso será inevitável.

Abraços a todos,

Renato Oliveira

5 comentários:

Evandro L. Mezadri disse...

Olá Renato!
Grato pela visita e ótimo início de semana!
Mais uma análise muito interessante, detalhada e magistralmente escrita.
Grande abraço e sucesso!

Iza disse...

Já haviam me indicado esse filme...pela sinopse, achei que fosse pesado e não quis assistir. Mas, sabe, que agora fiquei bastante curiosa? Parabéns, pelo texto, maravilhoso como de costume <3
Beijos <3

P.S: Já assistiu Map To The Stars, novo filme do Cronenberg? Filmaço! Gostaria de uma análise sua dele...é um filme bem...David Cronenberg, hehehehe.

Francys Oliva disse...

Sabe o mais chato da sua escrita? É quando chega o final, porque sempre acho que vou ler mais e me deparo com um ponto final.
Beijos.

Samuel Lima Xisto disse...

Caro Renato, perturbador esse filme. Interessante seu comentário a respeito do core de Jeff. Será que cada um de nós possui algo tão inconfessável que prefira a morte a ter isso revelado? O que nós escondemos de nós mesmos?
Eu me lembrei de uma música do Pink Floyd, disco The Wall, The Trial:
.
"In all my years of judging I have never heard before
Of someone more deserving of the full penalty of law.
[...]
Since, my friend, you have revealed your deepest fear
I sentence you to be exposed before your peers.
Tear down the wall!"
.
Eu ressaltaria, aludindo ao filme comentado e ao filme/ disco do Pink Floyd, nada é mais violento e causa mais sofrimento do que estar sob o olhar do outro.
Abraço.
PS: como se usa tags? Tentei publicar algumas coisas com efeito, mas me alertaram que meu comentário não poderia ser publicado porque eu não fechei a tag.

Renato Oliveira disse...

Oi Samuel. Ah, eu acredito que sim, que muitas pessoas tenham alguma lembrança ou qualquer conteúdo que seja cuja revelação lhes seja dolorosa. Quando absolutamente detestável, a melhor saída que a mente pode empregar é tornar isso inexistente por todo tempo que possível for. Foi essa a descoberta mais arcaica de Freud e acredito que ainda tá em alta! Agora, entre preferir a morte ou a revelação, não sei, pois considero o instinto de preservação da vida uma coisa tão forte. No filme, a construção da personagem de um pedófilo é interessante justamente por não haver um estereótipo disso, parecendo inconfessável e até inconcebível que o cara fez tudo o que é revelado ali.

Muito boa essa letra do Pink Floyd! :D

E sobre o uso da tags, acho que funciona assim haha: se abriu < b > por exemplo, tem que ter < /b > (tudo sem espaço) do contrário não rola, entendeu?

Um abraço!