11.3.15

o quarto-mudo

Quando Freud disse que veio trazer a peste, algumas pessoas na época riram e desdenharam dos primeiros pilares teóricos por ele apresentados, às quais não parecia haver lógica nem mesmo relevância em suas concepções iniciais acerca de uma etimologia sexual como determinante dos sintomas histéricos. Será exagero dizer que ele veio para os seus (médicos) e eles não o receberam? Mas, não vim aqui para fazer seminário. Gostaria tão somente de introduzir com esta ideia o fato de que a peste ainda tá aí, nos livros de psicanálise, muito certamente, mas também nas experiências que vamos vivendo nesse mundo louco, e, consequentemente, a peste se desvela quando nos colocamos a falar de nossas vivências.

E, claro, quem sou eu para dizer que vim apresentar uma peste nova.  Pelo contrário, os temas aqui abordados são sempre os mesmos. Creio que o ineditismo cabe à presença de leitores como vocês e a linguagem produzida na relação com os filmes, que faz com que certos assuntos não se esgotem. Os temas de hoje não são aqueles que farão da vida uma coisa mais linda, mas são tópicos que apontam para a beleza inevitável da experiência de estarmos aqui. Para falar de afetos, vínculos e morte, escolhi o filme La Stanza Del Figlio (2001) sem saber que ao revê-lo, não saberia bem o que dizer. Na verdade, nunca sei exatamente o que digo aqui, contudo, se não for paranoia minha, creio dizer alguma coisa. Estou lacaniano nessa tarde nublada nível 4+1 da coisa. 


Este filme dirigido por Nanni Moretti tem como eixo principal algumas experiências vividas por uma família. O principal sujeito em questão, que de certo modo, seria aquele a ser tomado para análise, é Giovanni | vide diretor |, o pai, que antes de ser analisado, era primordialmente o analista de alguns falantes. Sua casa tinha um compartimento utilizado como consultório, e, ademais, ali viviam a esposa Paola | Laura Morante | e os filhos Andrea | Giuseppe Sanfelice | e Irene | Jasmine Trinca |. Apresentações feitas, vale ressaltar que a história tem início com uma dúvida colocada em cena: quem roubou um fóssil? Acredito que os jovens da tua cidade, como os de minha, realizam delitos piores. Anyway, seria Andrea culpado ou inocente? 


A questão inicial é quanto a quem esta com a verdade. Os adolescentes e seus pais são chamados a dar testemunho de inocência, e os argumentos apresentados não nos permitem entender quem é o "autor do crime". É possível desde já inferir que o roubo é apenas um apêndice ao filme quando o que estava realmente em jogo era a questão da verdade acerca do valor essencial de estar em família. E refiro-me ao “essencial” não como aquilo que não pode faltar, pois se assim fosse, tudo pareceria doutrinário. Faço menção, de fato, ao essencial como ‘essência’, tendo em vista que este núcleo é formador de pessoas e o quanto as mesmas se aproximam ou se repelem entre elas faz com que a experiência de estar juntos nunca seja sentida com neutralidade.


Acompanhamos no filme alguns fragmentos de sessões de análise em que nos é mostrada a singularidade dos “temas de sempre” de cada analisante. Contudo, o que se sobressai é a relação familiar de Giovanni, mostrada de uma forma tão natural que fica-nos a impressão de ser co-testemunha de parte da rotina de uma família comum. Acompanhar fragmentos da vida daqueles quatro membros desperta-nos afetos provenientes das lembranças que temos do que é estar reunido com pessoas que desde muito cedo nos encheram de nomeações, para o bem ou o contrário. Ainda quando filmadas algumas cenas deles separadamente, é formado em nossa cabeça o entendimento de que eles estão unidos por algum laço. Estar em família talvez seja isso.

Pois bem, não é de um documentário “como se vive em núcleo italiano” de que se trata, mas sim de uma história marcada pelo fatídico tema da morte. Pois numa manhã de domingo em que Giovanni é chamado a atender um paciente em domicílio, Andrea retira-se para um passeio em que mergulharia com amigos, ocasião esta em que ele morre afogado. Gostaria de esclarecer que não tenho como descrever os principais eventos que se sucederam, e quaisquer iniciativas para uma análise descritiva deste filme a mim parecem inviáveis, uma vez que todo o desenvolvimento da história retrata propriamente a atmosfera deixada pela perda de um ente amado. Ainda com este entendimento em vista, devo ressaltar que a principal dificuldade em analisar esta obra esta em encontrar palavras que produzam uma compreensão mínima do que é a angústia. 


Creio que a angústia não é somente aquilo de que não se quer falar, mas sim um impasse em se produzir palavras que a descrevam. É realmente a invasão e constante presença do Real sobre o Simbólico, que demarca uma condição em que o sujeito se vê desprovido de palavras que deem conta de expressar a experiência. É o encontro com o mudo, o vazio, o silêncio, o nada. A morte é o que representa com exatidão este "estado de coisas".

Não se trata apenas de uma reflexão sobre a morte a ser extraída deste filme, mas sim a experiência do valor da vida. Após o falecimento de Andrea, nos são apresentadas as tentativas de cada um dos familiares em prosseguir com suas ocupações, em retomar as inevitáveis rotinas. O realismo com que tudo é retratado fez-me pensar sobre o desafio em se produzir um filme sobre os efeitos da morte desvelados via a constante presença da falta. Criar um roteiro cinematográfico com o tema da morte é arriscar a procura no Simbólico – campo das palavras – por aquilo que não pode ser dito. É querer discursar sobre o mudo. Alguns detalhes presentes no período de luto da família, suponho, ajudarão a elucidar melhor estas questões. Comentarei brevemente sobre a divisão da casa, alguns objetos quebrados e a tentativa de escrever uma carta.


I.
A residência abrangia os compartimentos de uma “casa normal” e um espaço adicional delimitado para o consultório, o setting de escuta enquanto forma para cuidado de alguns tantos outros. É como se fosse o local apropriado para que Giovanni se afastasse de seus interesses pessoais, para advir àquilo que muito comumente seria chamado de profissionalismo. Mas, a questão é que a repartição física não é equivalente a uma divisão pessoal fácil de ser alcançada – ser pai num compartimento e estar no lugar do analista, em outro. Se o espaço clínico, no entanto, lhe conferisse este pleno distanciamento emocional necessário para a escuta analítica, então, é concebível que seria um local apropriado para a atuação profissional de Giovanni. Seria, ademais, um ambiente propenso à reabilitação. O que não ocorria. Ele não deixava de ser o pai angustiado, cuja falta do filho era constantemente sentida mesmo durante as sessões clínicas.

Eu empreguei um termo sobre o qual quero me deter por um momento. É de uma reabilitação que se trata na questão do luto? Se sim, supomos que uma pessoa deixou de estar hábil após a morte de alguém amado, e o processo de recuperação nada mais seria do que tornar-se hábil novamente. A experiência confirma que isso não é pouco frequente. Parece, contudo, um entendimento muito frio da questão. No estudo freudiano sobre o luto e a melancolia há alusão às catexias que se retiram da realidade externa para serem investidas no próprio objeto morto, introjetado no ego. Aquilo que se perdeu pode ser fundido com o eu do sujeito, de maneira que o sentimento de separação é similar à perda de uma parte de si próprio. Posteriormente, não se fala em uma reabilitação, mas sim em um restabelecimento de relações objetais, com a transferência de parte da libido, até então toda concentrada no ego/objeto morto para objetos externos (um trabalho, a arte ou uma atividade social), estabelecendo novos pontos de interesse na realidade externa.

O horror da morte nos desperta um sentimento de cautela em abordá-la, justamente por ser algo que tememos. Esse temor é decorrente de sua irrevogável verdade? Creio que o medo de morrer se relaciona à certeza de que não sabemos o que é a morte, uma vez que ela representa a própria invasão do Real sobre o Simbólico, como comentado, de modo que o esforço em retratar o que é a morte é frustrado desde o seu início. Para alguns, uma passagem, para outros, tão somente um descanso ou um acesso a algo melhor. Ora, não são poucas as tentativas de atribuição de significado à morte, contudo, nada que dê conta de desvelá-la em sua verdade. A contribuição da psicanálise nesse sentido é a de afirmar a presença de uma ausência, e nos levar a se contentar com isso.


II.
Sobre os objetos quebrados. Para ser mais exato, rachados. Na companhia de Paola, sua esposa, Giovanni comenta sobre chaleiras e xícaras que deveriam ser substituídas, ainda que, algumas delas, haviam sido coladas após o desastre e não mostravam sinais aparentes de reparação. Símbolo mais rico que este, impossível. Os utensílios serviam como objetos de projeção. Trata-se de uma alusão à própria condição deles, sujeitos quebrados, destruídos pela separação súbita, corpos fragmentados, mas inteiros, ainda que as marcas do rompimento fossem visíveis. Tudo naquela casa estava rachado, e admitir esta condição poderia ser uma primeira etapa para a construção de algo novo a partir disso, afinal, não é com um entendimento similar a este que se inicia um processo de análise?


III.
Paola recebeu uma carta de uma jovem que se correspondia com Andrea e até então não soubera sobre o seu falecimento. A mãe, ao lê-la, notou um grau de intimidade entre eles, e interessou-se, portanto, em saber de quem se tratava. Ela tentou anunciar o que ocorrera a seu filho em uma ligação para Arianna | Sofia Vigliar |, porém não conseguiu expressar-se em palavras, em virtude, evidentemente, da dor suscitada ao se tentar falar sobre a perda. Giovanni, em conduta similar, recorreu ao recurso de escrever uma carta a jovem, mas sem êxito. A dificuldade na escrita explicativa sobre a morte confirma a existência de um sentimento de limite, como mencionado, de uma impotência por se tratar justamente da intenção em dar representação àquilo que não tem.

Observem que, diferente de como costumo proceder nas resenhas que aqui escrevo, desta vez não fiz menção a diálogos literais. Não selecionei frases do filme por não encontrar aquelas que poderiam exprimir o que eu tinha em mente abordar. Penso também não se tratar de um filme de palavras, diálogos, do Simbólico em si, mas exatamente daquilo que não se é capaz de dizer, como procurei mostrar. É um filme sobre o encontro com o limite, o destino da vida, a certeza da qual não se escapa e sobre a qual as pessoas não querem falar, nem mesmo aproximar-se disso até que se torne inevitável um dia fazê-lo.

Cumprimentos cinéfilos,

Renato Oliveira

Um comentário:

Iza disse...

Filmes italianos sempre nos deixam pensamentos no ar.
É por isso que o cinema deles é tão bom.
Gostei da sua review.
Beijos <3 <3