O amor é tema que não se esgota. Sabe-se que alguns afirmam senti-lo e por isso são supostamente indicados a contribuir via testemunho. Trata-se de caso antigo. No clássico Banquete de Platão, cada um dos participantes era convocado a compartilhar uma contribuição a respeito do amor. Um mais embriagado que o outro e ainda assim tais relatos são tomados enquanto ditos de verdade até hoje. No início da psicanálise o amor não só se fez presente como foi a mola inaugural da coisa: o amor de Ana O. por Breuer, dele por ela e das histéricas que amaram o saber suposto em Freud, condição imprescindível para que houvesse transferência e consequentemente análise. Só se fala desse assunto neste blog. A repetição é proposital para testar o paladar do leitor, afinal não se trata de um jantar, mas sim de um banquete. Logo, o amor se apresenta em maior variedade de sabores e significações. Com a direção de Daniela Thomas, O Banquete (2018) não é um convite à reflexão apenas, mas sim a oportunidade inescapável de servir-se do amor, de tomar doses deste xarope, de embriagar-se dele, portanto, e ainda assim manter-se de pé até o final da sessão.
Em termos mais diretos e realísticos, o filme é a ocasião certeira para romper a ligação do amor com o romantismo, este que implica na doação de si ao outro para unificação de dois seres. A abordagem retrata-o com um amargor consequente de relações reais. No roteiro, tem-se uma anfitriã que promove um banquete em comemoração aos 10 anos de casados de amigos. A mesa foi luxuosamente ornamentada e cada um dos oito lugares seria ocupado por um convidado que contribuiria com algum discurso sobre o amor. Certo é que o tema de um jantar foi algumas vezes trabalhado no cinema. Ainda assim, tem-se aqui uma singular atmosfera de tensão e expectativa. Desde a chegada do proprietário alcoolizado seguida pela amante do homenageado é notória a percepção de que vai dar merda. Esta não é uma expressão adequada a um veículo de comunicação como este, no entanto, poderia ser substituída por qual? Vale a reflexão de que “dar merda” nada mais é que a certeza da emergência daquilo que o corpo repugna. É o que obrigatoriamente tem que ser expelido e cuja forma não é agradável de modo que assim deve ficar fora da visão. Pois bem, é justamente este o conteúdo do banquete, o amor. Ora, um material que atinge a consciência enquanto excrescência certamente é da ordem do recalcado. No roteiro, isso não poderia ser mais verdadeiro, já que se trata de uma ocasião especial para um acerto de contas, para se revisitar o passado bem como as diferentes formas de amar até então vividas. O filme sustenta-se em uma abordagem que vai contra a cultura que demarca e valoriza o amor enquanto afeto ligado à ternura, sensibilidade e compaixão. A celebração dos anos de casados, no estilo em que foi feita, é um mais além do “final feliz”, de maneira a afirmar que este não passa de uma ilusão. Em síntese, este trabalho de Daniela Thomas é uma desconstrução de tudo o que a sociedade se apoiou no que diz respeito à sustentabilidade de um casamento. Os discursos sobre o amor denunciam não apenas a fragilidade das alianças matrimoniais como também a sordidez e o escapismo humano frente ao dever de manter-se unido e fiel ao ser amado.
Assim como o filme desconstrói o romantismo envolto na noção de amor, seu roteiro vem ao encontro da noção de completude tão comentada em psicanálise. Desde sempre, sustenta-se que a busca do sujeito por se tornar completo no encontro com o outro amado e eleito é uma ilusão. Contudo, é nesta que se baseiam os encontros amorosos, é uma perspectiva para resolução do problema da falta. Sabe-se que é da singularidade da escuta analítica o fato de que o amor enquanto encontro é tomado como solução para posterior descoberta de sua problemática, a permanência da falta. Ora, é um encontro de faltas não-exitoso a matéria-prima do que se ouve em análise. Tem-se o sujeito em confronto com a queda de uma perspectiva e com a necessidade de lidar com um vazio inesperado. O testemunho sobre o amor implica na testificação de que algo não saiu como planejado, em palavras mais belas, a emergência da falta supostamente já resolvida foi sentida como dissabor. Cada analisante é, portanto um contribuinte à noção do amor. Em seu percurso, ele pode transpor uma condição inicial de desilusão na qual há a procura pelo erro, pelo que faltou, para assim, deparar-se com a sordidez envolvida nestes encontros. Pode-se sentir os discursos do filme como puramente sórdidos em sua composição, já que eles testemunham o retorno do recalcado, a derrota da censura e um acerto de contas entre seres que não mais se apegavam ao romantismo das relações amorosas. São personagens para as quais o encontro de faltas, um dia sonhado, não deu certo... O que não significa que elas deixaram de amar. O fato de reunirem-se e se colocarem a dialogar sobre o amor é a maior evidência de que eram capazes de amar, em uma dimensão tanto física quanto emocional. O que lhes escapava era a já derrotada ilusão de um amor incorruptível, sagrado e permanente. A linguagem do amor expressa no filme não apenas cede lugar à zombaria das ilusões como se mistura a esta. Assim, o mal-estar decorrente de uma abordagem des-romantizada do amor é resultado previsto. Prevalece, contudo, um sentimento apaixonado em meio ao resto, aos traços, as sobras, aos seres despojados, aos cacos. É este que viabiliza ainda alguma forma de ligação. Certo é que não há faltas bem resolvidas em sua plenitude, de forma que filmes assim se configuram libertadores.
Abraços,
Renato Oliveira
Abraços,
Renato Oliveira